Palavras a mais

Palavras a mais


Uma filactera final chegava e sobrava para acomodar os murmúrios do argumentista se fosse conhecido e meditado no dístico do poeta Alberto de Lacerda: “Palavras / Quase todas a mais”


Na BD existem os artesãos, os artistas e os fora de série, inimitáveis, apesar de as tentativas de emulação ou cópia, cuja marca permanece para sempre. Nos quadradinhos há centenas de bons ou muito bons artistas; mas um Will Eisner ou um Jean Giraud estão num patamar a que a maioria não acede.

Giraud (1938-2012), explode em 1963 com a abreviatura Gir, assinando um grande fresco intitulado Fort Navajo, cujo protagonista é o célebre Tenente Blueberry – tantas vezes já por aqui referido, mas ainda não aprofundado. Assistente de Jijé (1914-1980), na série Jerry Spring, que indica o nome de Giraud para trabalhar o argumento de Jean-Michel Charlier (1924-1989), dele dirá Tibet (Chick Bill, Ric Hochet), numa entrevista já aqui referida, que Gir fazia Jijé melhor que o próprio…

Moebius, é o pseudónimo que adota na mesma época, mas só na seguinte é assumido como uma via paralela, principalmente com o esplêndido Arzach (1975), com a prevalência de um onirismo liberto, que se contrapõe ao realismo cada vez mais sujo, cada vez mais belo, de Blueberry. Mas apesar de os dois trajetos se distinguirem bem, é interessante ver como, ao mesmo tempo, Gir importa de Moebius alguma tonalidade e fluidez. Embora se desempenhasse bem como argumentista, inclusivamente em Blueberry, após a morte de Charlier, o encontro com o chileno Alejandro Jodorowsky (Tocopilla, 1929) ocorre pouco depois de Arzach, e vem dar a Moebius o nefelibata que lhe faltava, e com quem assinará, entre outros trabalhos, O Incal (1981), que nos é dado a conhecer através da prospeção atenta de Jorge Magalhães, na Editorial Futura.

Os Olhos do Gato (1978) é Moebius no seu esplendor, a partir de um texto minimalista de Jodorowsky, Publicado como brinde destinado aos leitores fiéis dos Humanoïdes Associés, que publicava a Métal Hurlant, foi objeto da avidez desses bichos estranhos que são os colecionadores, suscitando ainda uma edição pirata por outros marginais da edição, bem-humorados, que se auto designaram por Androïdes Dissociés… Tornado um livro de culto, os humanoides lançariam a edição comercial em 1981. São 48 ilustrações BD e um frontispício num permanente campo e contratempo: nas páginas pares projeta-se a figura de um rapaz de costas e sempre na sombra com contornos de Yellow Kid (a obra pioneira de Richard F. Outcault, criada em 1896), “mirando” o skyline de uma cidade que dir-se-ia um misto de Metrópolis e Urbicanda. Nas ímpares, uma vinheta/ilustração cheia, em que o cenário parece ruinoso e pós-apocalíptico. “Mirando” veio atrás entre aspas, uma vez que a criatura tem os olhos vazados, comunicando telepaticamente com a águia Meduz, cuja missão bem definida é a de prover um novo e fresco par de olhos ao suposto tutor. Moebius é aqui o tal fora de série. Uma filactera final chegava e sobrava para acomodar os murmúrios do argumentista, se houvessem conhecido e meditado no dístico do poeta Alberto de Lacerda (1928-2007): “Palavras / Quase todas a mais”.

Os Olhos do Gato

Texto Jodorowsky Desenho Moebius

Editora A Seita e Ala dos Livros, Prior Velho e Estoril, 2021

 

BDTECA

ABECEDÁRIO.
O de Olivier Rameau (Dany & Greg, 1970). Um jovem ajudante de notário do Mundo-onde-todos-se-aborrecem, embarca com um colega à beira da reforma, Alphonse Pertinent, num elétrico que conduz a um estranho país. Em Rêverose, não há pressas nem dinheiro, e até os espantalhos são amigos dos pássaros. Além disso, há também a menina Colombe, esplendorosa, por quem Olivier Rameau se apaixona. Um paraíso, que só é ameaçado quando alguém deste mundo em que nos aborrecemos lá vai parar. Uma grata fantasia utópica que ainda não disse tudo.

LIVROS
Amor de Perdição, por João Lameiras e Miguel Jorge, a partir da obra de Camilo Castelo Branco. Depois de Os Maias, de Eça de Queirós, uma arqueologia da farsante sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX, um breve vendaval romântico na metade anterior. Camilo presta-se mais à BD do que Eça? (Levoir) 

Quarentugas, de André Oliveira & Pedro Carvalho. “Um dia, estávamos a fintar pessoas no shopping, a pedir mais um copo na esplanada ou a desesperar na fila da bilheteira do cinema. No dia seguinte, ficámos fechados em casa, a tentar que o vírus não deslizasse por debaixo da porta.” (Polvo)