A burla democrática


Goste-se ou não de ex-Presidente e ex-primeiro-ministro, neste ponto, como em muitos outros do seu texto, Cavaco Silva tem razão. A política portuguesa alimenta uma fraude, que não é apenas democrática, mas também económica, social e de valores.


É verdade que em Portugal podemos pensar e dizer tudo o que nos passe pela cabeça em liberdade, mas isso não quer dizer que exista um verdadeiro regime democrático. Desde logo porque o acesso à comunicação social não é para todos, porque existe uma barragem de comentadores permanentes muito influentes, em particular nas televisões, o que modela o pensamento de uma grande parte da opinião pública, e porque existe um muito baixo nível médio de educação e de formação política na sociedade portuguesa. Porventura não menos importante, será a existência de um crescente número de cidadãos desiludidos que desistiram de participar na vida política e deixaram de considerar o voto como importante.

Seja como for, a verdade é que a opinião pública e publicada, mas também a visível nos resultados das diversas eleições e das sondagens, revela uma apreciação desfocada da realidade. O exemplo porventura mais evidente é o do julgamento negativo feito por milhões de portugueses da governação de Pedro Passos Coelho, julgamento que está longe de ser uma análise séria e equilibrada daqueles quatro anos. De facto, a governação do PSD/CDS retirou Portugal de uma situação de descrédito internacional com efeitos extremamente graves na economia e nas finanças nacionais e deixou o país numa situação completamente diferente, para melhor, da forma como o encontrou. Tendo recebido cerca de 7% de défice no orçamento do Estado deixou a António Costa um défice de pouco mais de 3%. Tendo herdado uma dívida pública de 117 % do PIB e juros de mais de 7%, legou ao governo seguinte uma dívida de 129% do PIB, é verdade, mas as taxas de juro da dívida a dez anos rondavam os 2%, ou seja, a crise de credibilidade tinha sido ultrapassada.

Por outro lado, se é verdade que a governação desse período seguiu um padrão de grande austeridade, não é menos verdade que essa era ao tempo a política da União Europeia e Pedro Passos Coelho procurou sempre dar alguma protecção às famílias a viverem na pobreza extrema, sendo que ainda hoje é detestado principalmente pelos reformados da classe média. Ou seja, é justo culpar o Governo PSD/CDS pelos desmandos dos governos anteriores de José Sócrates e pela consequente bancarrota?

O segundo erro de apreciação de muitos portugueses reside na forma como julgam as políticas sociais e económicas dos governos de António Costa e a qualidade dos governantes, deixando-se iludir com a barragem de promessas do PS e das supostas conquistas do PCP e do Bloco de Esquerda. De facto, são estes dois partidos que acusam com frequência o Governo de não cumprir as promessas feitas, sendo que as promessas concretizadas se destinam principalmente a criar o apoio eleitoral ao PS, ou não são sustentáveis do ponto de vista financeiro, ou são injustas. Por exemplo, a redução das horas de trabalho dos funcionários públicos, é simultaneamente injusta e insustentável pelo custo acrescido que implica, dinheiro retirado a outros apoios sociais a todas as famílias portuguesas e não apenas a algumas. Trabalhar menos é um confessado fim da geringonça, quando num país com uma das mais baixas taxas de produtividade e de maior pobreza da União Europeia, se deveria privilegiar trabalhar melhor e com mais e melhores recursos organizativos e tecnológicos. Além de que os governos de António Costa distribuem sem critério a riqueza que o País não consegue criar, aumenta o número de trabalhadores da administração pública e cria custos fixos insustentáveis, que são uma bomba relógio lançada a quaisquer governos futuros que os portugueses venham a escolher. Mais tarde ou mais cedo, teremos o remake do Governo de Passos Coelho, levado a cabo por um governo de esquerda ou de direita, é indiferente, porque não haverá alternativa, até porque a Europa não aceitará sustentar para sempre a má governação nacional.

Cavaco Silva fez recentemente um aviso sobre o que nos espera se não mudarmos de vida. Como seria de esperar, foi acusado de tudo e de mais alguma coisa e insultado, mas ninguém avançou para debater com ele cada uma das suas afirmações, ou apresentou quaisquer alternativas credíveis. Por outro lado, bastará comparar os níveis de crescimento económico dos três governos de Cavaco Silva com a média dos três governos posteriores do PS, para fazer um julgamento objectivo destes diferentes períodos da nossa história recente.

Pessoalmente, sou muito sensível quanto aos perigos democráticos salientados por Cavaco Silva, quando escreve: “A aposta socialista no silenciamento do empobrecimento relativo do país é uma expressão da perda de qualidade da democracia portuguesa, a que se têm referido vários autores e relatórios internacionais, sublinhando que Portugal deixou de ser uma democracia plena.” Acrescenta depois Cavaco Silva: “Esta realidade portuguesa tem sido classificada como “democracia deficitária”, “democracia com falhas”, democracia meramente eleitoral” ou “democracia claustrofóbica”, e as atitudes e abusos do Governo socialista qualificados como bullying, assédio ou asfixia da democracia”.

Tenho com outros cidadãos dedicado algum tempo a escrever e a chamar a atenção dos portugueses para estes perigos existentes na nossa democracia. Democracia conquistada pelos capitães no 25 de Abril, mas também pelo PS e por Mário Soares ao PCP, nos idos anos de 1974 e 1975. Democracia que pouco a pouco deu lugar ao crescente domínio partidário, sustentado pelo Estado, sobre o voto do povo. O que temos hoje é o chamado centralismo democrático da ex-União Soviética, com que uso fazer humor dizendo que é uma democracia onde os chefes escolhem os índios e estes agradecidos elegem os chefes.

De facto, os portugueses não podem escolher ou rejeitar os seus representantes, que lhes são apresentados em bloco, como resultado da escolha do chefe partidário e aquilo que os eleitores podem fazer é votar, ou não votar, no partido, sendo que muitos portugueses já deixaram de o fazer por compreenderem a burla eleitoral que lhes é proposta.

Para terminar com essa burla eleitoral, o ex-deputado José Ribeiro e Castro apresentou uma bem elaborada proposta de alteração às leis eleitorais e a criação de círculos uninominais que permitam a cada eleitor escolher o seu deputado, proposta apresentada à Assembleia da República por milhares de cidadãos. Sem surpresa, os partidos fazem de conta que a proposta não existe e o Partido Socialista em particular tem usado essa burla democrática para dominar o poder político em Portugal ao longo do último quarto de século.

Assim, goste-se ou não do ex-Presidente e ex-primeiro-ministro, neste ponto, como em muitos outros do seu texto, Cavaco Silva tem razão. A política portuguesa alimenta uma fraude, que não é apenas democrática, mas também económica, social e de valores. Porventura a corrupção será a sua maior consequência.

 

Empresário

Subscritor do manifesto Por Uma Democracia de Qualidade