O habilidoso desnorte de António Costa na República dos contribuintes inflamáveis


O tempo não está para habilidades. Os cidadãos estão irritadiços, em parte pelas limitações pandémicas, no resto pelo modelo de gestão seguido.


Os contribuintes estão a ficar num ponto de ignição perigoso para quem está no exercício do poder. Estão inflamáveis, com o acumular de situações de injustiça, de incompreensão com as opções políticas e com os espetáculos de degredo que são dados diariamente na gestão da coisa pública. O risco de ignição soma à irritação que já fervilhava e teve uma expressão relevante nas eleições para as autarquias locais, que, aliás, parece não ter sido compreendida por quem está no poder e pelos que com ele partilham as convergências da sobrevivência política de um Portugal sem rumo, equilíbrio ou visão estratégica.

O BE passou de 12 para quatro vereadores em todo o país. O PAN não elegeu nenhum vereador em todo o país. O PCP perdeu a liderança de autarquias importantes para a sua implantação eleitoral, o seu financiamento como partido e para a rotação dos seus funcionários políticos, que são muitos. O Ghega elegeu vereadores em territórios marcados por dificuldades na integração de comunidades e pela existência de tradições tauromáquicas e de caça.

O que faz o PS de António Costa persiste na deriva do desnorte e aprova a proibição do acesso de menores de 16 anos de forma autónoma nos espetáculos tauromáquicos, com total desprezo pelas centenas de eleitos do partido em territórios rurais e urbanos com essas expressões das vivências das comunidades, com relevantes impactos nas economias locais. Noutra dimensão, alia-se ao Bloco para concretizar a implosão do SEF– Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, dando expressão a uma segurança interna fofinha que não existe em nenhuma parte do Mundo. Quando as questões de segurança interna são modeladas a toque de caixa pelo Bloco que é contra a NATO e tem simpatias com movimentos internacionais adversos à ordem pública está tudo dito.

Há desnorte quando cresce a indignação com os preços da eletricidade e dos combustíveis fundamentais para as dinâmicas individuais, comunitárias e da economia nacional em tempo de retoma das atividades e tens o governo a reiterar o essencial da linha de agravamento num dia e a dar um ar de que mexe qualquer coisa no dia seguinte, enquanto diz que baixa imposto a par de mais uma rajada de aumentos de impostos indiretos. Mas a perda de habilidade do habilidoso, mago das manigâncias, não é um exclusivo do poder executivo, o Presidente da República está irmanado na deriva.

Os portugueses e as empresas, algumas grandes criadoras de emprego, exportadoras e geradoras de riqueza, estão a sentir hoje os impactos negativos do elevado preço da energia carregado de imposto da energia e modelado pelos mercados internacionais, o inquilino do Palácio de Belém resolve afirmar esperar que “a situação não se prolongue nos termos que existem hoje para além de março e abril”.

Portugal está hoje refém de gente sem noção do equilíbrio e da realidade concreta do quotidiano de quem não vive em função das grandes proclamações ideológicas, à esquerda ou à direita, das necessidades de sobrevivência política em função do imediatismo e do mediatismo ou do afago a nichos parciais de segmentos eleitorais sem nenhuma convergência com os interesses gerais da nação. É uma espécie de deriva inicial da ASAE, de passar do 8 para o 80, de querer passar em dias o que outros fizeram em décadas, com atropelo de tradições, realidades e vidas concretas de pessoas.

Uma gestão política que se limita a gerir o quotidiano, acorrendo às ocorrências, sem uma visão estratégica, é uma tragédia. Pode revelar habilidade e evidenciar o habilidoso, mas não deixa de ser idêntico ao número de circo do malabarista que põe vários pratos a rodar em cima de varas, acorrendo a eles para os manter como uma barata tonta, ainda que saiba os ritmos e entretenha a audiência.

O tempo não está para habilidades. Os cidadãos estão irritadiços, em parte pelas limitações pandémicas, no resto pelo modelo de gestão seguido. Depois de não ter ganho as eleições em 2015, mas ter imposto uma solução governativa formatada na reposição de direitos e rendimentos. Depois de ter ganho as eleições de 2019, uma vez mais sem maioria absoluta, sem solução formal de sustentação do governo e com novas dificuldades de sustentação da narrativa de poder haver tudo para todos, a pandemia impôs um interregno para responder à emergência de saúde pública. A perda das dinâmicas de encaixe de receita com a carga fiscal e do crescimento alavancado no turismo e nas exportações colocou o exercício num caminho ainda mais sinuoso, que foi salvo pela bazuca europeia. A bazuca possibilitou evidenciar a continuidade da lógica de distribuição, mas, uma vez mais, ampliou as expectativas de que chegava para tudo e para todos. Mas não chega e os problemas adensaram-se. Pelo meio, António Costa descartou o PSD, ao afirmar, em 28 de agosto de 2020, que “no dia em que a sua subsistência depender do PSD, este governo acabou”, ainda que a ele tenha recorrido para salvar alguns diplomas no parlamento. Entregue nos braços políticos do PCP, do BE, do PAN e de deputados independentes radicalizados, António Costa manteve o estilo, atitude e perfil de governação, julgando-se confortado pelo poder da bazuca de milhões. A soberba levou-o a pisar linhas vermelhas com os parceiros de solução governativa, ávidos de recuperar eleitoralmente o peso perdido. O problema é que já nem o passado conta o que contava, já nem o futuro serve de engodo, os contribuintes estão altamente inflamáveis e querem respostas no presente. Não perceber que o tempo mudou, nas circunstâncias, incluindo a da liderança do PSD, e no nível de tolerância dos eleitores, é estar a leste da realidade. É pôr-se a jeito da ignição. Pode acontecer a todos, em especial, aos habilidosos.

O tempo não está para habilidades.

 

NOTAS FINAIS

LANÇA-CHAMAS. Na ânsia de arrebanhamento de impostos com tudo o que mexe, há coisas que não se percebe como é que o Estado mantém privatizadas atividades que poderiam ficar na órbita de reguladores ou do poder judicial para financiamento desonerando o Orçamento de Estado, não cumprindo bem as que devia. O negócio das plataformas de contratação públicas foi entregue a privados, estando sujeito a reguladores. O sistema de inscrições, selos, vinhetas e afins que as empresas concorrentes têm de pagar aos privados é pornográfico e poderia gerar receita direta ao Estado, por exemplo na órbita do Tribunal de Contas.

ISQUEIRO. Depois da eleição de Rui Costa, há espaço para haver um ambiente geral menos crispado no futebol português, desde que os programas de bitaites sobre o tema, a dualidade de critérios jornalísticos – irrelevância dos passivos de alguns e das comissões de 15 milhões perdidas no trânsito – e Pinto da Costa o deixem e não persistam em andar de isqueiro a tentar novas ignições. O “mete veneno” tem de acabar, por reprovação social.

CAIXA DE FÓSFOROS. Lisboa tem o Moedas, o Porto tem o Muletas. Depois de tanta azia e agressividade em campanha, Vladimiro Feliz, do PSD, fez no Porto o que Rui Rio tinha feito várias vezes ao governo da República, ser muleta.

Escreve à segunda-feira