Eddie Jaku. Morreu o mais velho sobrevivente do Holocausto

Eddie Jaku. Morreu o mais velho sobrevivente do Holocausto


Na sua biografia, lançada poucos meses depois de ter completado um século de vida, Jaku conta a sua trajetória e os obstáculos por que passou. “Vivi um século e sei o que é encarar o mal de frente. Vi o pior da humanidade, os horrores dos campos de extermínio, os esforços nazis para exterminar a minha vida e…


A sobrevivência, por vezes, pode ser a melhor vingança. Em vez de se juntarem a tantos que se afundam num silêncio negro onde tudo se contradiz, salvam-se alguns aferrando-se a esse não mitigado talento para encontrar motivos de regozijo a cada dia, escapando às memórias e ao deserto onde a morte é legião. Eddie Jaku, meses antes de morrer, ainda arregaçava a manga do braço direito para expor orgulhosamente a tatuagem já meio desvanecida com o número 172338 que lhe foi feita pelos nazis nos campos de morte. Sorrindo, e com um olhar bastante terno, assim quis ser lembrado, nessa foto que surge na capa da biografia que lançou pouco depois de completar um século de existência. O título é O Homem Mais Feliz do Mundo (ed. Objectiva). Numa entrevista ao Expresso a propósito da edição do livro, deixou claro que a felicidade foi a melhor forma que encontrou de se vingar depois de ter escapado com vida de Buchenwald e Auschwitz, tendo visto os seus serem gazeados. Antes sobrevivera já à “Noite dos Cristais”, e passou por outros dois campos de concentração, tendo poupado pelo homem que ficou para a História como o “Anjo da Morte”, Josef Mengele. Liderou uma fuga de prisioneiros que se evadiram num comboio, tendo abandonado a Marcha da Morte, e escondendo-se numa floresta onde viveu a sós durante meses, alimentando-se de lesmas e caracóis até ser resgatado pelo exército norte-americano. E se prometeu a si que não voltaria à sua Alemanha natal, do outro lado do mundo, na Austrália, onde chegou de navio em julho de 1950, reconstruiu a sua vida e prosperou nos negócios, formando família, e deixando filhos, netos e bisnetos. Devotou o resto dos seus dias à defesa da paz, da tolerância e da resiliência, começando por dar o exemplo: “Não odeio ninguém. O ódio é uma doença que até pode destruir o teu inimigo, mas que te irá arrastar também a ti com ele”, disse certa vez. Morreu na passada terça-feira, em Sydney, aos 101 anos.

“Queriam que morresse, não morri. Queriam que odiasse, não odeio. Queriam que fosse mau, não o sou. Esta é a minha vingança. Estive quase morto, condenado a morrer, e tenho um casamento de 75 anos. A vingança é estar vivo, e eles não estão. Perdi uma centena de pessoas e nunca vou substituí-las. Mas construí uma ótima família. Tenho dois filhos, quatro netos e cinco bisnetos”, disse na entrevista ao Expresso. Era o mais velho dos sobreviventes do Holocausto em todo o mundo, e, além da tatuagem, a única coisa que preservou depois de deixar o Velho Continente foi um velho cinto de cabedal. Em Sydney continuou a dar provas de perseverança, e foi fabricante de instrumentos médicos, investindo em negócios que lhe permitiram gozar de uma vida desafogada, como uma estação de serviços e uma imobiliária. Contudo, nunca cedeu à noção do triunfo que resvala na ostentação, em cercar-se de luxos, preferindo viver o milagre de uma vida que podia ter acabado 75 anos antes. “Se não acredita em milagres, olhe para mim. Sou um milagre. Deveria ter morrido e não morri. E desfrutei cada momento.”

À medida que os anos se foram somando, Jaku foi assumindo cada vez maior proeminência, tendo partilhado a sua história numa popular TED Talk, na já referida biografia, que se tornou um best-seller, e como voluntário no Museu Judaico de Sydney, que ajudou a fundar. “Vivi por um século e sei o que é encarar o mal de frente. Vi o que há de pior na humanidade, os horrores dos campos de extermínio, os esforços nazis para pôr fim à minha vida e às vidas de todo o meu povo. Mas agora considero-me o homem mais feliz da Terra”, afirmou.

Jaku nasceu Abraham Jakubowicz em Leipzig, na Alemanha, em 1920, no seio de uma família que se considerava “primeiro alemã, segundo judia”. Era o único estudante judeu na sua escola, o que não constituía um problema, isto até Adolf Hitler chegar ao poder. Então, foi expulso, vindo a concluir o liceu num colégio interno noutra cidade, tendo-se inscrito com um pseudónimo por receio de que as suas origens lhe voltassem a trazer problemas. A partir de 1938, Jaku e a família foram enviados para vários campos de concentração, incluindo Buchenwald, Gurs e, eventualmente, Auschwitz, que mais tarde descreveu como “o inferno na Terra”. Tendo estudado engenharia, viu-se poupado à câmara de gás e, em vez disso, sendo usado como trabalhador escravo. Os seus pais e outros membros da família foram mortos.

Depois de ter sido resgatado pelas tropas norte-americanas, nesse mesmo ano deixou a Alemanha e foi para a Bélgica, onde conheceu casou com a mulher com quem viveu até ao último dos seus dias, Flore. Cinco anos depois, mudaram para a Austrália, onde Jaku arranjou trabalho numa garagem e Flore como costureira, isto até conseguirem juntar algum dinheiro e investirem no ramo imobiliário em Sydney. Mas apesar de ter deixado todo aquele pesadelo para trás, como recordava na sua palestra do TED Talks, em 2019, após a guerra não conseguia tirar a miséria e a desolação do seu horizonte, o que só mudou quando ele e a mulher tiveram o primeiro filho.

“Foi então que o meu coração se curou e a felicidade regressou em abundância”, explicou ele. “Fiz a promessa de que desse dia até o fim da minha vida, seria feliz, iria sorrir, ser educado, prestável e gentil. Também prometi nunca mais pôr o pé em solo alemão. Hoje, o homem que têm à vossa frente cumpriu todas as suas promessas.”