O pós-pandemia de cá


Diziam que era o regresso ao novo normal, mas o normal deixou de existir e temos de alterar os nossos ritmos, os padrões de consumo e os hábitos, com maior imprevisibilidade.


Depois do tempo em suspenso da pandemia, o gradual regresso às rotinas que estamos a viver decorre numa espécie de tempo diferido, em que alguns dos padrões anteriores de consumo estão completamente alterados, restando saber se a alteração é estrutural ou um resquício do condicionamento das atividades humanas e das suas consequências nas cadeias de distribuição.

A pandemia sublinhou a importância de as cadeias de fornecimento de matérias primas importantes, de bens e serviços não estarem longe da vista e do coração dos europeus, mas aliviada a pressão dos surtos do território europeu, parece que a preocupação deixou de ser prioridade, não sendo os PRR de cada Estado Membro que vão assegurar essa visão global, alguns nem sustentam essa preocupação no país.

Com a emergência de saúde pública mitigada em Portugal e na Europa, mas pujante noutros pontos do mundo onde a vacina ainda não chegou a boa parte da população, não é só o risco de surgimento de novas variantes que existe, o que já é muito grave e desigual, é a manifesta impossibilidade de retomar dinâmicas por ausência de resposta dos fornecedores dos pressupostos das vivências individuais e comunitárias.

Antes da pandemia, havia um padrão de consumo em que, com dinheiro, se podia aceder a todos os bens e serviços, ter um cardápio de oferta quase infindável para as intenções em diversas áreas, do quotidiano às viagens. Agora, há um retrocesso em que temos de configurar as nossas intenções ao dinheiro disponível e às disponibilidades da oferta recondicionada.

O setor automóvel é hoje um expoente máximo deste recondicionamento, que acrescenta a outros que já tinha ocorrido antes da pandemia, por exemplo em matéria de stocks de peças. Já antes da pandemia, quando se tinha um problema, a probabilidade era ter de se esperar por uma peça para a reparação que teria de vir do exterior, pois os stocks na marca ou em Portugal eram inexistentes. Agora pode demorar meses e ninguém tem alternativa além do encostar do veículo com problemas. Qualquer intenção ou problema tem a resposta ou a solução diferida para semanas ou meses, havendo mesmo marcas que não disponibilizam serviços de emergência para o diagnóstico dos problemas mecânicos ou veículos de substituição perante as falhas do sistema.

O exemplo pode não parecer pujante das alterações em curso, conjunturais ou não, mas se alguém que precisa de grande mobilidade para locais dispersos no território nacional ficar apeado para o desenvolvimento das suas obrigações familiares, escolares ou profissionais, sem resposta nos transportes públicos existentes, a situação ganha outra relevância.

E tudo isto acontece num momento em que somos enxameados com a ideia de que há dinheiro para tudo na bazuca. O problema é que, como em todas estas questões do nosso tempo e das circunstâncias que estamos a viver, o dinheiro não consegue comprar tudo e continuará a ser assim quando estamos dependentes de cadeias de fornecimento longínquas, com demasiadas variantes, além das questões de divergência com os valores e os princípios europeus.

O problema é que, na ânsia de gastar o que nos foi disponibilizado na bazuca, provavelmente não vamos assegurar sustentabilidade no reforço da nossa autonomia, resiliência e sentido de salvaguarda dos interesses nacionais no acesso a bens e serviços essenciais. Uma vez mais, não faremos o essencial, mas mostraremos à Europa e ao Mundo que somos bons a passar do 8 para o 80 em questões como a transição digital ou energética, por vezes, com atropelo de marcas da nossa identidade, dinâmicas comunitárias e especificidades nacionais que outros, noutras latitudes, preservam ou concretizam com outro ritmo.

É preciso bom senso, rigor e sobretudo sintonia com as pessoas e os territórios. O tempo é de procurar novos equilíbrios, que permitam a retoma das dinâmicas que são importantes para as pessoas, as comunidades e o país. Não está fácil, porque as limitações e as contenções do tempo da pandemia plena são geradoras de ânsias de abuso, mas há acessos a bens e serviços que continuam completamente condicionados, com impactos desastrosos nas dinâmicas. O tempo mudou, a disponibilidade permanente de várias opções de bens e serviços, mesmo com dinheiro, é coisa do passado. E o Estado não dá o exemplo positivo. Há serviços públicos a precisarem de uma coordenação tipo task-force da vacinação para voltarem a ter mínimos de eficácia na resposta às necessidades das pessoas.

Diziam que era o regresso ao novo normal, mas o normal deixou de existir e temos de alterar os nossos ritmos, os padrões de consumo e os hábitos, com maior imprevisibilidade e definitivamente o dinheiro não é tudo.

A narrativa da bazuca para toda obra, em linha com outras conversas políticas seguidas em 2015, foi geradora de grandes apetites orçamentais, particulares, dos interesses e do povo em geral. A expectativa foi gerada, alimentada numa campanha eleitoral em que surgiu como o bodo discursivo em cada território. Agora será o tempo da negociação orçamental, do confronto com a realidade e, tal como acontece com os cidadãos no acesso a bens e serviços neste tempo pós-pandémico, alguns vão perceber que, mesmo havendo dinheiro, não vão ter o que queriam.

O Mundo mudou mesmo, não vale a pena fingir que está tudo na mesma.

NOTAS FINAIS

AUTÁRQUICAS. Escrever em dia de eleições para ser publicado quando já se conhecem os resultados, é sempre arriscado. A campanha foi fraca de ideias e forte em bazuca, mas teve o condão de colocar o enfoque na questão da habitação, faltou discutir a qualidade da construção em função da realidade nacional e das alterações climáticas. É de espera um aumento da dispersão de votos e alguma pulverização do espetro eleitoral com impactos nas condições de governabilidade nas autarquias. Será importante ver se a espuma dos dias dos populistas, candidatos mediáticos e partidos de nichos temáticos vingaram. E depois a questão da abstenção na escolha dos eleitos mais próximos das pessoas e dos territórios. E já agora, depois das eleições, impõe-se o debate sobre os mastodônticos Torquemadas das eleições, a Comissão Nacional de Eleições, e o anacrónico dia de reflexão que apenas serve para a preparação logística do ato eleitoral.

SINISTRALIDADE RODOVIÁRIA. A sinistralidade rodoviária regressou aos níveis pós-pandemia. É normal quando as únicas alterações que se introduzem é a dimensão de fiscalização e sancionamento. Quando o Estado nada faz nos pressupostos de mobilidade e os cidadãos, por não poderem ou não relevarem, descuidam os veículos de um parque envelhecido, os resultados só podem ser estes. Eram melhores quando havia menos carros na estrada, pioram quando regressam os automóveis. Não é preciso ser Einstein.