Covid suspende direitos dos passageiros

Covid suspende direitos dos passageiros


O Tribunal de Contas Europeu realizou uma auditoria à efetiva aplicação dos regulamentos de proteção dos direitos dos passageiros, no período da pandemia, cujas conclusões são deveras importantes para que todos os Estados-Membros tomem medidas adequadas, relativamente aos desvios observados.


A legislação europeia em matéria de direitos dos passageiros aéreos é clara e estabelece que a mesma deve ser aplicável nos seguintes casos: se a origem e destino do voo for um aeroporto da União Europeia (UE), independentemente de o voo ser ou não operado por uma companhia aérea da UE; se o voo, com origem num aeroporto situado fora da UE, tiver como destino um aeroporto da UE e for operado por uma companhia aérea da UE; se o voo tiver origem num aeroporto da UE e o seu destino for um aeroporto situado fora da UE, independentemente de ser ou não operado por uma companhia aérea da UE; se ainda não beneficiou de nenhumas prestações (indemnização, transporte alternativo, assistência da companhia aérea) por problemas relacionados com o voo em questão ao abrigo da legislação em vigor num país que não pertence à UE.

A legislação em vigor, refletida em toda a União Europeia, garante aos passageiros reembolso (cash refund) pelos voos cancelados, e compensação financeira por voos alterados com menos de duas semanas de aviso prévio, ou ainda para atrasos superiores a três horas. Na aplicação dos direitos dos passageiros é ainda relevante a forma como a viagem é adquirida e organizada, em pacote turístico ou em aquisição não conexa.

O Tribunal de Contas Europeu (TCE) realizou uma auditoria à efetiva aplicação dos regulamentos de proteção dos direitos dos passageiros, no período da pandemia, cujas conclusões são deveras importantes para que todos os Estados- Membros tomem medidas adequadas, relativamente aos desvios observados. Obviamente que a pandemia teve um impacte brutal nas companhias aéreas, deixando-as praticamente sem capacidade financeira, o que naturalmente contribuiu para o elevado número de irregularidades no cumprimento da legislação relativa à proteção de passageiros.

Segundo a auditoria do TCE, “em abril de 2020, houve 88% menos voos na UE do que no mês homólogo do ano anterior. Além disso, o número mensal de passageiros na UE caiu de 70 milhões em janeiro e fevereiro de 2020 para apenas 1 milhão em abril, ou seja, menos 99% do que em abril de 2019. A redução total do número de passageiros foi estimada pelo Eurostat em 346 milhões nos primeiros seis meses do ano e pela Organização da Aviação Civil Internacional em 800 milhões (ou seja, 67%) para a totalidade do ano. O Tribunal estima que tenham sido cancelados cerca de 50 milhões de bilhetes entre março e maio de 2020”.

Os reembolsos tiveram inicio apenas em junho de 2020, e com atrasos significativos. Os passageiros não estavam suficientemente informados sobre os seus direitos, o que levou ao cumprimento dos direitos dos passageiros de forma incoerente, e com uma utilização generalizada e excessiva de vouchers, aceites pelos passageiros devido à falta de alternativa. De salientar que muitos desses vouchers foram emitidos por companhias/agências que entraram em processo de falência conduzindo ao anulamento desses vouchers. É evidente que a omissão dos intermediários na legislação relativa aos direitos dos passageiros dificultou a possibilidade de estes obterem o reembolso.

A auditoria apurou ainda que vários países introduziram derrogações à legislação em vigor. A título de exemplo, o relatório do TCE refere os seguintes casos: o governo da Bélgica emitiu um decreto (19 de março de 2020) em que suspendeu a obrigação de os operadores turísticos reembolsarem viagens organizadas canceladas entre 20 de março e 19 de junho de 2020. Durante esse período, os passageiros não podiam recusar os vales; nos Países Baixos, o ministro responsável pelos transportes instruiu os organismos nacionais de execução a não obrigarem à aplicação do Regulamento (CE) nº 261/2004 entre 1 de março e 14 de maio de 2020, aplicando apenas a substituição por vales no caso de um voo cancelado; em França, uma nova lei autorizou as agências de viagens a emitir vales sem oferecer a possibilidade de reembolsar as viagens organizadas canceladas entre 1 de março e 15 de setembro de 2020, impedindo os passageiros de solicitarem o reembolso.

A auditoria deteve-se também sobre o caso português e constatou que em 2020, foram cancelados 5,5 milhões de bilhetes pelas principais transportadoras que operam em Portugal (87% dos passageiros de voos de ou para Portugal), dos quais: 60% (3,3 milhões de bilhetes) foram reembolsados aos passageiros no decurso do ano; 28% (1,6 milhões de bilhetes) foram convertidos em vales, sem garantia de que os passageiros estivessem de acordo; 5% (mais de 300 000 bilhetes) não tiveram resolução até ao final do ano; 7% (360 000 bilhetes) incluem casos em que os passageiros não reclamaram o reembolso nem encontraram uma possibilidade de reencaminhamento.

Os prazos de reembolso variaram em função da companhia aérea. Mas, de forma genérica foi apurado que esses prazos aumentaram exponencialmente após março de 2020; atingiram um pico entre junho e setembro (entre 31 e 59 dias) e começaram gradualmente a regressar à normalidade entre setembro e dezembro.

Ainda segundo o que a auditoria do TCE apurou, em fevereiro de 2021, as companhias aéreas a operar em Portugal informaram o organismo nacional de execução de que estavam a reembolsar bilhetes entre 2 e 22 dias após o cancelamento.

De entre as conclusões da auditoria, a mais significativa é a de que as autoridades dos Estados-Membros não têm informações para poder atuar. A este estado de coisas chama-se tecnicamente “captura das autoridades” que se materializa em: as companhias aéreas consideram que os dados sobre atrasos no reembolso são comercialmente sensíveis, e por isso não partilham; a maioria dos organismos nacionais de execução não tem direito legal a ter conhecimento sobre os detalhes das reclamações.

Obviamente que as companhias aéreas estão numa situação financeiramente muito delicada, contudo coloca-se a questão de quem deve suportar as consequência desse desaire económico provocado não só, mas também, pela pandemia. Certamente que não deverá ser o passageiro, consumidor final desta cadeia de valor. Cabe aos reguladores a reflexão sobre a falência dos direitos dos passageiros, e de como assegurar a recuperação dos mesmos.

 

Professora e investigadora em transportes

Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico