A queda de Cabul nas mãos dos talibãs e o resultante apelo do Secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, a implorar pela vida das pessoas em perigo, recordou-me dois textos que escrevi em tempos, um publicado e outro que mantive como pessoal até hoje. Textos que tratam um dos meus temas favoritos: a incapacidade dos governantes do nosso tempo de aceleração da mudança em prever os acontecimentos e em saberem enfrentar esses acontecimentos em tempo útil.
O primeiro texto foi escrito a quente no dia do ataque às torres gémeas de Nova Iorque a 11 de setembro de 2001 e publicado no jornal Notícias de Leiria dois dias depois. O título do texto Parar para Pensar indica o que desejavelmente deveria então ter sido feito e, infelizmente, não foi. Recordo agora algumas passagens por acreditar que algum efeito pedagógico poderá ter nas atuais circunstâncias do Afeganistão, mas também entre nós portugueses tão carecidos que estamos de parar para pensar.
Aqui vai parte do que escrevi no dia 11 de setembro de 2001:
“Trata-se de um acontecimento histórico, cuja dimensão aumenta à medida que passam os minutos desta informação global em que vivemos, o que vai implicar uma mudança de paradigma sobre o conceito de guerra e abre uma nova fase na capacidade de acção e de organização do terrorismo internacional, representando uma “vitória”, ainda que temporária e trágica, para os extremistas de todo o mundo. Vitória que projectada pelos meios de comunicação, representa uma capacidade acrescida de recrutamento sobre os milhões de seres humanos que vivem na mais extrema miséria e na mais absoluta ignorância, seres humanos que são também povos e culturas sem alternativas dignificantes que a nossa civilização abandonou à sua sorte e se recusa a tentar compreender”.
Acrescentei depois: ”Os Estados Unidos, ou a civilização ocidental, reagirão certamente em força, castigando os culpados pela barbaridade dos atos cometidos, talvez cerquem e ataquem o Afeganistão ou qualquer outro local onde pensem encontrar os criminosos, mas melhor será que nos interroguemos sobre as causas de tudo isto e se abram novas perspetivas de desenvolvimento equilibrado e justo em todo o planeta, nomeadamente através de um diálogo genuíno e não da habitual imposição dos nossos interesses e dos nossos valores a outros povos, civilizações e culturas.”
O segundo texto, que mantive pessoal, foi uma carta que há cerca de três anos enviei a António Guterres com três sugestões que pensei essenciais para permitir ao Secretário-geral das Nações Unidas colocar na agenda política global três dos mais prementes problemas que afligem o planeta e, naturalmente, a ele próprio na sua missão. Escrevi então:
“Decidi por isso fazer-lhe três desafios que sei arriscados e sem nenhuma garantia de sucesso. De facto, o risco para a sua carreira, aí no topo do mundo, é enorme, mas esse risco existe sempre e também para que serve uma posição como a sua se limitada ao previsível e ao óbvio?”.
O terceiro dos desafios dizia simplesmente o seguinte: “As Nações Unidas devem ter o poder de regular a venda de armas através do voto na Assembleia Geral, por proposta do Secretário-Geral”.
António Guterres acusou a receção da minha carta através de um funcionário dizendo que o Secretário-geral não tinha o poder de criar a política das Nações Unidas, algo que dificilmente era uma novidade. O problema não era esse, nem essa era a minha intenção, apenas sugeri ao Secretário-geral “colocar na agenda política”, isto é, dizer publicamente que as resoluções daquelas três questões eram essenciais ao bom desempenho das Nações Unidas na sua missão histórica.
António Guterres, previsivelmente, preferiu não fazer ondas e escolheu lançar, de tempos a tempos, apelos lancinantes à comunidade internacional, apelos cujos resultados todos conhecemos, como agora no caso do Afeganistão. Mas não só, em muitas partes do mundo, nomeadamente em África, morrem milhões de pessoas todos os anos, assassinadas com as armas que são fornecidas sem nenhum controlo aos assassinos. Que isso não inquiete o Secretário-geral das Nações Unidas, ao ponto de nem sequer falar do assunto, transcende a minha compreensão.
Como fonte de rendimento os talibãs não têm mais do que o ópio e algum apoio do terrorismo internacional, o que, contudo, tem chegado para adquirir com total impunidade as armas com que matam os seus concidadãos. Que os Estados Unidos, a mais poderosa potência do globo, tenha consumido um trilião de dólares em vinte anos e não tenha conseguido parar o tráfego de armas dos talibãs, ou que as Nações Unidas se limitem a fazer apelos, retrata bem o problema que o mundo enfrenta no nosso tempo. Pior, que a carreira de funcionários e de políticos valha mais do que a vida de milhões de pessoas, deixadas ao abandono pelas nações mais ricas e mais poderosas do globo, só pode gerar revolta. Para melhor compreensão, terminei a minha carta com os dois parágrafos seguintes:
“Estes três desafios que lhe faço terão, se debatidos e aplicados, o poder de mudar o mundo em que vivemos e, em larga medida, de condicionar as ideologias mais extremistas do nosso tempo, que se consomem em debater o acessório em vez de tratarem do essencial. Entretanto, é claro para todos nós que estes três desafios que aqui lhe deixo, se confrontam com quase todos os grandes poderes e interesses existentes no nosso planeta, nomeadamente para quem, como o Secretário Geral das Nações Unidas, tem tão poucos poderes.”
“Sei disso, mas por isso mesmo vale a pena a iniciativa de colocar estes três desafios na agenda política mundial, por quem tem a visibilidade pública suficiente para o fazer. Muitos dos grandes avanços civilizacionais não tinham no seu início melhores condições de sucesso. Por outro lado, a alternativa dos pequenos passos já foi procurada por outros e certamente terá continuidade no futuro. O problema é que com a aceleração do tempo tecnológico, político e económico, ficaremos cada vez mais longe de uma sociedade que possa sobreviver em boas condições”.
António Guterres ficará certamente na história como um Secretário-geral das Nações Unidas devotado à causa pública e diligente, ou seja, tal como os seus antecessores, cumprirá a sua missão.
Empresário
Subscritor do manifesto Por Uma Democracia de Qualidade