Roberta Alvarenga. “Jair Bolsonaro vive tentando  minar a democracia que ainda impera no país”

Roberta Alvarenga. “Jair Bolsonaro vive tentando minar a democracia que ainda impera no país”


Aos 40 anos, a jornalista de investigação explica que a atualidade é “a realidade mais perturbadora” que já enfrentou no Brasil.


Como foi a sua infância? Considera que foi difícil por ter crescido em São Paulo ou, por outro lado, viveu numa zona nobre da cidade e não se deparou desde cedo com as adversidades? 
Fui uma criança privilegiada e livre. Os meus pais sempre me incentivaram em tudo o que eu ‘inventava’. Era uma criança curiosa e muito criativa. São Paulo é o lugar em que nasci e sou apaixonada pela cidade. Mas, às vezes, dececiono-me muito com a existência de pobreza, desemprego, fome e moradores de rua. As adversidades sempre existiram, pois manter três filhos numa escola privada, pagar aulas extra, transporte, cursos pré-vestibular… Analisando pelo retrovisor, a nossa educação custou uma fortuna. Os meus pais sempre trabalharam muito para que pudéssemos ter uma educação de qualidade, algo que devia ser assegurado pelo Governo federal. Eles sempre souberam lidar com os problemas e nunca fomos alheios a nada. 

Qual é a memória mais perturbadora que tem? Existe algo de que não se tenha esquecido, por exemplo, alguma injustiça específica que a tenha marcado particularmente? 
O momento que o Brasil está enfrentando é a realidade mais perturbadora que já vivi. As atitudes negacionistas do Presidente ao incentivar o não uso de máscaras e tratar a pandemia como uma mera “gripezinha”. Imitar pessoas sofrendo por falta de ar. As suas palavras irresponsáveis como “não sou coveiro”. O seu incentivo às fake news que está a ser investigado num inquérito recentemente aberto. Os seus atentados constantes à democracia. E falsas declarações sobre a segurança do voto eletrónico auditável. Lembro que o Brasil é um país com extensão continental e a votação manual por aqui é extremamente passível de corrupção como muitas vezes já ocorreu na nossa História. O momento que o meu país está passando é recheado de injustiças e corrupção. Nunca imaginei vivenciar algo assim. O Governo Federal cancelou a compra de vacinas do Instituto Butantan, do dia para a noite – via WhatsApp – e deixou de responder à oferta das vacinas da Pfizer. Foram mais de 100 emails ignorados. E, mesmo assim, a empresa continuou insistindo. Tudo isso é perturbador. No meio da pandemia tivemos a troca de quatro ministros da Saúde: todos foram derrubados e trocados para atender os desejos e interesses daquele que um dia foi eleito para “cuidar da nação”, mas que contrariou cientistas, foi contra tudo e insistiu em divulgar medicamentos ineficazes e prejudiciais à saúde. São tantas coisas que cada dia termina pior do que o outro. As pessoas estão passando fome. Mais de 10% da população não tem o que comer. Além disso, não existe esforço algum para cuidar da Amazónia e fazer um planeamento de preservação para o futuro. O país está largado nas mãos de um genocida que possui apoio político. Já existem mais de 100 pedidos de impeachment e todos foram engavetados na câmara. O Presidente tenta usar as Forças Armadas, que deveriam servir para proteger a pátria, para intimidá-la. Cada dia é um novo capítulo. O Ministério da Saúde tem segurado vacinas. As estatísticas de vacinação estão equivocadas e há alguns dias foram retirados da base os índios vacinados. O Brasil precisa de atenção e intervenção internacional. O momento é extremamente delicado. Já que o Governo federal não é confiável, a imprensa fez um consórcio para apurar corretamente os números para que tenhamos transparência.

Viveu durante pouco tempo em Portugal, mas que memórias guarda do país? Acredita que moldou de certo modo a sua forma de estar e pensar?
Ah! Portugal. Que saudade. Morei em Lisboa. Miraflores. Num conjunto de prédios. Não lembro do nome. Gostaria de me lembrar para voltar e procurar os meus amiguinhos de infância. Morei um ano e pouco aí. Estudei no Colégio do Bom Sucesso. Lembro-me da professora Maria do Céu. Tenho muitas memórias. A vivência em Portugal foi extremamente importante para a minha formação, pois lidei com a questão multicultural e o conhecimento histórico, assim como com o respeito por outra cultura. Éramos sócios do clube Belenenses. E, por algum motivo, resolvi fazer basquetebol. Sempre fui gordinha, mas o desporto atraía-me. Nos jogos, quando disputávamos contra outras equipas, o técnico sempre me colocava a jogar. Mesmo que por pouco tempo. Ele incentivava. Aqui no Brasil é diferente. Existe um preconceito. Se alguém é gordinho, sempre fica por último e, geralmente, numa competição, fica no banco. Uma espécie de bullying velado. Lembro-me também do preconceito das crianças mais velhas da carrinha. No transporte de volta para casa, elas falavam para a gente voltar para o Brasil e que ali não era o nosso lugar. Assim que as coisas se estabilizarem, Portugal com certeza será meu próximo destino. A primeira viagem internacional pós-pandemia. Tenho um enorme carinho pelo país.

Quando decidiu que queria ser jornalista? Foi uma decisão sobre a qual refletiu ou foi um impulso que teve um bom resultado? 
Desde pequena destaquei-me nas aulas de redação. Fui sempre muito curiosa e meti-me em cada encrenca para descobrir coisas…! Achava-me uma detetive. A leitura foi uma paixão que começou cedo dentro de casa. O jornalismo sempre esteve presente na minha vida, mas comecei cursando Tecnologia e Media Digitais e a escrever. Surgiram convites nacionais e internacionais. E assim foi. Não parei.

Além desse curso, tirou Jornalismo, Robótica e Biomedicina, dividindo o seu tempo entre a Ohio State University, nos EUA, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e o Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Acredita que os conhecimentos vastos contribuem para que tenha uma sensibilidade distinta para abordar determinados temas? Por exemplo, levou a cabo uma investigação sobre moradores de rua mortos e não reconhecidos pelo Instituto de Medicina Legal e a relação com a “Máfia dos Corpos” que os vende para universidades de medicina. 
Com o conhecimento de biomédica e da área de investigação, eu sabia até onde ir para obter respostas, e quais deveriam ser respondidas. Ali faltavam muitas. Existiam muitos pontos de interrogação. Falta de informações que identifiquei e me levaram a questionamentos pontuais, ou seja, é diferente de profissionais que não têm tal conhecimento. A compreensão do laudo necroscópico, atestado, com o confronto da fotografia apresentada no reconhecimento não batia. Em tese, depois de um tempo, os corpos não reclamados podem ser doados para universidades. Acontece que geralmente estes corpos não estão íntegros. São resultado de violência. O que não interessa muito às universidades. E, por isso, existe um mercado negro por trás. Conversei com a promotora Eliana Vendramini, especialista em casos de desaparecidos e conhecedora da Máfia dos Corpos. À época, também conversei com a Sociedade Brasileira de Anatomia. Quanto à Robótica, fiz uso de tecnologias às quaistive acesso na época e utilizo hoje para efetuar um trabalho eficaz de investigação. As tecnologias são inúmeras e servem muito bem aos jornalistas se bem aplicadas.

Há 12 anos, conheceu o Lucas, registado como Genézio Avelino da Costa, que adotou o nome bíblico por ter vergonha do seu nome de batismo e vivia pelas ruas da capital paulista. Começaram a criar laços num posto de combustível. Como foi esse dia? 
Acho que quis o destino que nos encontrássemos. Eu era a mulher enigmática da zona sul, séria, bem vestida, de poucas palavras, sempre de óculos escuros, que diariamente estacionava seu carro na loja BR Mania do posto da Petrobrás, para tomar seu café expresso e água gelada sem gás. Ele, o morador de rua, que uma vez ou outra interrompia o silêncio do meu nobre momento com o café, para pedir o isqueiro emprestado. E eu, que não deixava ninguém ‘acessar’ meu mundo, permiti que ele entrasse. Ele me chamava de anjo, mas não faz ideia de que o anjo foi ele. Ali, naquele falido posto de combustível, repleto de bombas de gasolina semi- vazias, ambos nos abastecíamos de vida. E assim o tal café, que antes era nobre pelo silêncio, tornou-se nobre pela sua presença. Ele fez parte da minha agenda e calendário em todos os dias desde que nos conhecemos.

Quando percebeu que o Lucas estava desaparecido, lutou para saber o paradeiro dele, até ter recebido a declaração de óbito que indicava que tinha sido atropelado na Marginal Pinheiros. No IML, viu uma única foto para identificar o corpo. Como se sentiu nesse momento?
O Lucas já estava desaparecido. Meus amigos (amigos dele também), sabiam que eu ia atrás dele se não soubesse do paradeiro dele devido ao nosso vinculo de amizade mais forte. Demoraram para me contar e fizeram uma busca antes de me darem a notícia. Quando eu soube, na hora, a primeira coisa que fiz foi registar um boletim de desaparecimento na polícia. E iniciei a investigação. Não queria acreditar, mas, no fundo, algo me dizia que ele não estava mais vivo. Afinal, eu já estava pesquisando por corpos não reclamados no Instituto Médico Legal. Uma amiga se colocou à disposição para reconhecer e me privar da situação. Eu quis ir. Quando regressou, me deu a notícia. Era ele. Ele havia morrido. Ela havia o reconhecido. Foi num sábado. Lembro-me que chorei demais. Na segunda-feira resolvi ir sozinha. Afinal, eu havia feito um boletim de desaparecimento em nome dele. Foi quando vi a foto. Colorida. Ele ali na tela do computador. Dia 13 de agosto fez 1 ano de sua morte. Ele faz uma falta enorme. Toda vez que penso ou falo sobre ele a garganta fecha e as lágrimas caem. Ele mora dentro de mim. Sempre morou. Nunca foi um morador de rua. Sempre morou dentro do meu coração. E continuará assim para sempre.

Quando o seu amigo morreu, chegou a deixar de escrever. 
Tive um bloqueio total. Foi difícil escrever. Até fiz um curso de escrita criativa para tentar soltar as emoções. A terapia ajudou, mas foi um choque muito grande. Não somente pela perda, mas por todo contexto. O Lucas havia sido enterrado poucos dias depois de ser atropelado. A legislação prevê que para corpos não reclamados, é necessário esperar 30 dias para que seja enterrado. Ele foi enterrado como desconhecido. O que é um absurdo, pois as suas impressões digitais estavam em perfeito estado. Tive que questionar. Basicamente, não fizeram o exame de reconhecimento por ser morador de rua. Indignada, pedi para que confrontassem as digitais com as cópias dos documentos que possuía. E, claro, deu positivo. Acontece que naquela altura ele já havia sido enterrado e na certidão de óbito constava como desconhecido, assim como no cemitério. Estou há um ano lutando para que alterem a certidão e reconheçam a sua morte. Até agora, todos os seus documentos constam ativos e é como se ele estivesse vivo. Isso é um absurdo. 

Desde o início da pandemia, começou a entender que portugueses e brasileiros queriam atravessar o Oceano Atlântico. Como se apercebeu de que não estavam a ser bem tratados pelos respetivos governos?
Como jornalista investigativa, comecei a trabalhar no caso no início de 2021. Uma de minhas melhores amigas, Tamna Waqued, que na época morava aí, contactou-me e alertou-me para aquilo que estava a acontecer, pedindo-me ajuda. Foi assim que comecei a investigar. À primeira vista, a situação era de guerra: a pandemia, o espaço aéreo de Portugal fechado, os brasileiros em solo português sem dinheiro para comer que já tinham vendido os móveis de suas casas e estavam apenas com passagens para embarcar… E nada de notícias de voos. Só se falava sobre a falência da TAP. O consulado brasileiro e a embaixada não se manifestavam. Ao serem procurados não faziam nada. Direcionavam o contacto por email. E nada. O Governo português fazia um ou outro pronunciamento, mas a situação não era resolvida. Contactei o Governo federal brasileiro, o Ministério de Relações Internacionais, e também o do Turismo, deputados, assessores, companhias aéreas, embaixada de Portugal e respetivo Governo… fui recolhendo provas e aprofundando. 

Apesar de ambos parecerem ter sido esquecidos, a verdade é que a sua investigação de cinco meses incidiu no facto de os brasileiros terem sido abandonados pelo Governo. Em que pontos os governos e as embaixadas erraram e podiam ter agido de modo diferente?
O Ministério de Relações Exteriores, na época liderado pelo Chanceler Ernesto Araújo (hoje ex-ministro), não tomou atitude alguma. Numa situação calamitosa como tal, o mínimo a ser feito – seguindo o exemplo de organização que Portugal fez no Brasil, seria começar por um cadastro de todos que precisavam retornar para ao país e relacionar prioridades. Em momento algum a figura do embaixador do Brasil em Portugal ou Cônsul apareceu para tranquilizar os brasileiros. A embaixada poderia ser aberta para receber aqueles que foram parar à rua por perderem as suas casas à espera dos voos de repatriamento que eram comerciais e não de resgate. Acompanhei o drama de perto. Histórias não faltam. O tal cadastro não foi feito pelo Governo brasileiro. O drama era tamanho que tomei a iniciativa de fazer a ponte direta com as companhias aéreas, pois nem elas sabiam quantos brasileiros e portugueses estavam em solo para retornar aos seus lares. Infelizmente, a covid levou muitos embora e outros saíram por rotas alternativas, deixando seus bilhetes comprados para trás sem cancelá-los. Quanto ao Governo de Portugal, a situação era diferente. Se o Governo brasileiro não dialogava com os seus filhos, como era possível dialogar com o país irmão? Sim, houve erros, mas o grande motivo deste problema foi a irresponsabilidade brasileira. Na última visita que Marcelo Rebelo de Sousa fez ao Brasil, percebeu-se bem o desrespeito com que as autoridades e Jair Bolsonaro trataram a comitiva portuguesa. Isso é forma de tratar alguém? Fiquei envergonhada. E, em nome do meu país, peço desculpa ao Presidente e ao povo português.

Esteve em contacto com centenas de brasileiros, questionou os políticos e não teve papas na língua quando fez declarações aos órgãos de informação sobre o Ministério das Relações Exteriores liderado pelo então Ministro Ernesto Araújo e os respetivos embaixadores. Na sua ótica, em que é que eles falharam mais?
Falharam em tudo. Não atuaram. Isso não é atitude de nenhum diplomata ou líder que represente o país em território estrangeiro. Basta comparar a atitude com a de todos os outros países com embaixadas e consulados. Falo com propriedade de quem não somente investigou como obteve provas e teve de estender a mão porque ninguém o fez.

Que histórias de imigração é que a marcaram mais? 
Foram tantas histórias. Tantos momentos. Posso citar dois que certamente nunca esquecerei. O caso dos brasileiros que, seguindo as orientações do governo brasileiro, saíram de Portugal por rota alternativa e foram extraditados para o Brasil
quando fizeram escala em Amesterdão. Eles estavam com a passagem comprada de volta para cá. Houve um abuso de autoridade e a representação brasileira local isentou-se completamente. Novamente, fui eu quem teve que auxiliá-los com a polícia imigratória. Eles ligaram-me pois não falavam inglês. Tiveram que assinar um termo por estarem de forma ilegal na UE (não era o caso) ou seriam retidos. O resultado: não podem retornar à Europa por alguns anos. E o triste caso da Ana Cláudia Dantas, sendo que mantive a sua história sob sigilo porque o marido dela tinha acabado de sair da cadeia e queria matá-la. Ele espancou-a em plena pandemia, em praça pública, com o filho de dois anos no colo. O meu primeiro contacto foi para entrevistá-la sobre o governo brasileiro. Ela atendeu o telefone chorando, desesperada dizendo que não queria morrer, que não queria ser mais uma para a estatística. O filho também chorava ao fundo. Ela estava escondida enquanto esperava pelos voos de repatriamento. Como a grande maioria dos brasileiros que estavam em Portugal, ela possuía passagem de volta. Contactei a Azul, expliquei o caso, enviei fotos da cara dela desconfigurada devido ao espancamento, o laudo médico e etc.. e pedi prioridade no embarque. A mão de jornalista transformou-se em dois braços empenhados em salvar a vida de uma mulher e do seu filho. Ela conseguiu embarcar. Mas após o encontro com sua família, infelizmente, morreu em decorrência das agressões efetuadas pelo marido. Ela foi infectada pelo vírus da covid19, já estava recuperada, mas o quadro clínico complicou-se devido ao espancamento que sofreu em Portugal. Além de sérios traumatismos na cabeça, ela também foi espancada na região do tórax, algo que ocasionou uma hemorragia local e levou a que ficasse com sequelas irreversíveis. Acompanhar o seu velório de forma virtual foi uma das coisas mais tristes. O que me consola é saber que o filho está seguro com a família dela, mas as suas palavras não saem da minha cabeça. "Não quero virar mais uma na estatística”. Ela virou. O marido continua em Portugal e ainda não respondeu pelo crime que cometeu.

Por nunca ter baixado os braços, foi alvo de ataques pelo “gabinete do ódio”, um grupo de assessores que trabalham no Palácio do Planalto com foco nas redes sociais e difundem desinformação. Como lidou com estas ações, tendo em conta que foram direcionadas ao seu telemóvel pessoal?
Não foi só o telemóvel, pois invadiram o meu portátil também e apagaram um artigo em que eu estava trabalhando. O gabinete do ódio pode tentar intimidar. Essas séries de atentados à democracia, em nome do Governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro vão acabar. Com a intimidação, pode vir o medo paralizante, mas o que está acontecendo é uma outra coisa. Todos querem vingar-se. Foi o que aconteceu comigo. A raiva veio numa intensidade transformadora. 

Que ameaça a marcou mais?
Todas as ameaças deixam marcas. É violência. Supero-as, mas logo vem outra e traz toda a memória passada. Por isso, é importantíssimo que as organizações de proteção aos jornalistas ofereçam tratamento psicológico, assim como os órgãos de informação. Vamos ver o resultado dessa entrevista. Quantas ameaças você acha que eu vou receber?

Quando está a pensar publicar o resultado final desta investigação?
Fui convidada para publicá-la numa revista de Brasília, mas o sexto sentido falou mais alto. Fui adiante para ver no que dava. Queriam que a matéria fosse escrita por outra pessoa. Achei estranho. Fui dando ok. Passei algumas provas, mas não todas. Apenas aquelas de pouco impacto. Dois dias antes da publicação, eu não havia recebido o texto. Um dia antes fui notificada ao cobrar, de que a matéria havia caído. Por que será? As provas já foram entregues a várias autoridades competentes e veículos de comunicação. 

No ano passado, o Brasil atingiu a sua pior pontuação no Ranking Global de Liberdade de Expressão elaborado anualmente desde 2010 pela ONG Artigo 22 – com apenas 52 pontos numa escala de zero a 100, o país apareceu na 86.ª posição entre os 161 países analisados. Isto surpreende-a ou, por outro lado, já esperava este resultado?
Já esperava o resultado. Não existe democracia sem o livre exercício do jornalismo e da comunicação. E Jair Bolsonaro vive tentando minar a democracia que ainda impera no país. Temos resistido bravamente, mas os números são alarmantes e provam que algo precisa de mudar rapidamente.

Pela sua posição atual, situando-se abaixo de 60 pontos, o Brasil é classificado como país de expressão “restrita”. É esta a realidade que vive diariamente?
Sim. O extremismo está presente no país bipartido. Você não sabe com quem dialoga e isso pode trazer-lhe problemas. As palavras que estou a usar para me expressar foram pensadas. Não para suprimir as minhas respostas e proteger-me, pelo contrário: fiz questão de utilizá-las para provocar.

Os Repórteres Sem Fronteiras publicaram uma lista de “predadores da liberdade de imprensa” e o Presidente Jair Bolsonaro é um deles. O que pensa desta designação? Adequa-se a ele?
Completamente! Ele é um grande incitador ao ódio. Um predador que prega ataques à imprensa com as suas atitudes. Só em 2020, foram registados 428 casos de violência contra jornalistas e comunicadores, incluindo dois assassinatos. Além da violência contra os jornalistas, ele também está envolvido com a desinformação e propagação de informações falsas. Finalmente, na semana passada, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou a inclusão do Presidente Jair Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news.

De acordo com o US Press Freedom Tracker dos EUA, do qual a RSF é parceira, o Brasil desceu quatro posições e entrou na zona vermelha, pois os "insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas tornaram-se a marca registada do presidente Bolsonaro, de sua família e de pessoas próximas dele". O que é que os jornalistas brasileiros podem fazer para combater este panorama? Quem é que os pode ajudar?
Os jornalistas não podem deixar-se intimidar. Nunca ter medo de perguntar. Agressões verborrágicas são comuns de homens inseguros. A imprensa tem que partir para cima. Com tudo e todos. Juntos. Se ele desrespeitar um ou uma, que os jornalistas no ato, se posicionem. Está na hora de inverter o jogo. As entidades da classe poderiam fazer muito mais do que apenas escrever notas de repúdio. Propor cursos de como se defender de agressões em entrevistas. Preparar para o contra-ataque. Deixar de publicar e citar seu nome como censura aos seus atos. Estratégia de comunicação. Na ditadura, tiraram-nos o direito de falar. Agora, talvez seja a hora de tirar os holofotes de quem não merece.

Quando tentou ser inoculada com a primeira dose da vacina, percebeu que alguém já o tinha feito por si. Conhecia casos semelhantes?
Fui completamente apanhada de surpresa. O dia da minha vacinação caiu bem no dia do meu aniversário. Então, a ansiedade estava multiplicada. Quando cheguei ao posto de saúde fui informada de que “eu” já havia tomado vacina e não poderia vacinar-me novamente. Foi aí que me indignei e comecei a indagar e pedir explicações.Descobri o posto em que a farsante havia tomado e fui voando para lá. Tirei mais satisfações e dei início aos procedimentos cabíveis para provar que se tratava de um caso de falsidade ideológica e que eu não poderia ser impedida de tomar a vacina. Outros casos parecidos aconteceram pelo Brasil. Imagino que outras pessoas mais humildes, por falta de conhecimento, acabaram desistindo de tomar vacina. 

Passou por um moroso e complicado processo para provar que não tinha sido vacinada, mas sim vítima de roubo de identidade. Quais foram os maiores obstáculos?
Nessa hora, tudo é obstáculo. A minha identidade não foi roubada, mas meus dados sim! Tiraram-me o direito de tomar a vacina, um direito previsto na constituição federal. Descobri que, em março, tomaram vacina usando todos os meus dados cadastrados previamente. A partir daí, entrei com um pedido de exclusão da vacina tomada por outra pessoa no meu lugar no sistema do Ministério de Saúde e com a abertura de sindicância para identificar como meus dados foram vazados. Foram necessários dias de idas à delegacia, registo de boletins de ocorrência, reclamações ao Instituto Nacional de Tecnologia e Saúde e acompanhamento diário do andamento das coisas. Além de mais umas quatro ou cinco idas ao posto de saúde para ficar no pé. Fui vacinada! O sistema ConecteSUS (site onde é possível emitir a certidão de vacinação digital) continuou apresentando os meus dados com as duas primeiras doses tomadas. Fiz novos pedidos de intervenção para que fosse corrigido. Finalmente, consegui. No dia 15 de julho, a minha vacina sumiu do site. A vacina que eu tanto havia lutado para tomar. Lá fui eu à delegacia novamente. Afinal, eu ainda não havia tomado a segunda dose e, além disso, com meus dados vazados por aí, vai que alguém tomasse uma outra vacina em meu nome. Mais um crime! Fiz reclamações em todos os órgãos. E a vacina voltou ao sistema. Estou tão traumatizada que acesso o site de emissão do certificado da vacinação digital todos os dias só para verificar se está tudo bem. Emito a certidão e faço screenshot. Quero que o dia 31 de agosto chegue rápido para tomar a segunda dose!

O Governo brasileiro soube lidar com a pandemia?
Infelizmente, não e o mundo todo constatou que não. A atuação do Brasil foi um fiasco. Vergonhosa. O chefe maior da nação, que ao ser empossado jurou protegê-la, fez exatamente o contrário. Faltou gestão. Faltou competência. Faltou agilidade. Temos um dos principais de serviços públicos de saúde com capilaridade nacional. E o ministério de saúde não soube administrar verbas, redirecionar materiais. Faltou planeamento e sobrou corrupção. Faltou oxigênio e, infelizmente, colecionámos mais de 575 mil histórias de vidas perdidas. Se o presidente não tivesse estimulado aglomerações, tivesse instruído sobre a importância do uso de máscaras, do distanciamento social, da vacinação e da sua obrigatoriedade, não espalhasse fake news – além de ter tomado atitudes que deveriam ser tomadas na hora certa – com certeza muita coisa seria diferente. A falta de oxigênio na Amazónia foi terrível. Um filme de terror televisionado. O Governo sabia, dias antes, do colapso. Que haveria falta. E deixou chegar àquele ponto. Além disso, deixou de responder à ajuda dos EUA e criticou a Venezuela pelo envio emergencial de O2. E nem sequer agradeceu. Estamos com uma nova variante em circulação, muito mais contagiante (Delta) e ontem foi noticiado que o Rio de Janeiro foi identificado como seu epicentro no país. Na semana passada o Ministro da Saúde (subordinado ao presidente), contrariando todo o planeta, deu declarações sobre o não uso de máscaras. As pessoas estão adoecendo e morrendo e ele é responsável. Assim como muitos que estão ao seu lado. Subordinados. Ministros. Aliados. Muita gente. É muito triste. 

A maioria da população tem noção da importância da vacinação ou é negacionista?
Primeiro, o governo tentou acabar com a reputação das vacinas. O próprio presidente chegou a dar declarações constrangedoras que beiram a insanidade. Depois, ele e o seu clã, declararam uma guerra verborrágica contra a China e a nossa vacinação ficou comprometida. Alguns membros do Governo tiveram que entrar em jogo para tentar intermediar a
questão e acalmar os ânimos. Isso aconteceu logo no começo do esquema de vacinação e o presidente, ainda hoje, insiste em falar mal da vacina. Não tomou. Não temos uma campanha eficaz de vacinação. Quem está fazendo esse trabalho são os artistas e a imprensa, assim como as próprias pessoas nas redes sociais que publicam fotos e vídeos do “seu momento” de vacinação para incentivar os outros. Cada Estado está agindo por si. Basicamente, o ministério da Saúde está apenas recebendo as vacinas e distribuindo-as. Negacionistas ou não, as pessoas estão com medo de morrer, mas existe uma parcela sim. Os seguidores do Presidente que acreditam em Ivermectina e Hidroxcloroquina. A equipa do Bolsonaro fez uma campanha de desinformação gigantesca.

Algumas pessoas chegaram a ser vacinadas com água. O que sentiu ao verificar situações como essa? 
A imprensa cobriu os casos muito bem e tornaram-se denúncias. Logo os estados instituíram que, para coibir práticas enganosas, as pessoas deveriam filmar o momento da vacinação. A ideia funcionou muito bem. Depois disso, parece que não tivemos mais notícias relacionadas com casos semelhantes.

O que lhe falta fazer no jornalismo?
Muita coisa. Entre elas, ser correspondente internacional e escrever um livro. Enquanto houver questionamentos a serem feitos e respostas a serem respondidas, estarei presente. Não tenho ambição de cargos. A investigação é minha paixão. Gostaria de cobrir conflitos, mas ao mesmo tempo não gostaria que eles existissem.