Euro-2020. O Inferno está vazio. Todos os demónios estão aqui!

Euro-2020. O Inferno está vazio. Todos os demónios estão aqui!


A noite de Londres transformou os ingleses arrogantes em imagens tristes e violentas de uma história com final dramático. Os italianos ofereceram-nos um futebol fresco e renovado.


LONDRES. Parece que os tuberculosos internados no sanatório do Caramulo costumavam dizer: “É preciso uma saúde de ferro para aguentar este clima!”. É preciso uma saúde de ferro para aguentar este Verão inglês que passou na última quarta-feira, durante cerca de dez minutos, fazendo intervalos na chuvinha de molha-tolos e abrindo, por entre as nuvens, um espaço pelo qual consegui, finalmente, vislumbrar o sol. Ontem, de manhã, poucas horas antes de regressar a Lisboa, olhei para cima e vi nuvens negras como a ebonite que servia para fazer os antigos telefones.

Ao 51º jogo, o Europeu de 2020, que foi, na verdade, o Europeu de 2021 por força da pandemia que tombou sobre a Humanidade com a ferocidade de Gog e Magog tal como são citados no Apocaclipse, o Campeonato Europeu de Toda a Europa, essa ideia peregrina que, pelos vistos, vai ficar para sempre guardada na gaveta das inutilidades, desapareceu para dar lugar a três anos de intervalo para aquele que se disputará em 2024, na Alemanha. A maldição das grandes penalidades – Mundial-1990; Europeu-1996; Europeu-2004; Mundial-2006 – voltou a cair sobre uns ingleses prepotentes e imprudentes que se convenceran demasiado cedo que, pelo facto de terem atingido a segunda final da sua centenária história, tinham finalmente chegado ao ponto de afirmar com arrogância: “Football is comin’ home!”. Não, não foi assim. Pelo contrário, “Il calcio torna a casa!” graças ao trabalho fantástico de Roberto Mancini, que nos ofereceu a equipa mais divertida deste torneio – a par da Dinamarca –, capaz ainda por cima de suportar aquele duríssimo golpe de se ver a perder logo aos três minutos de jogo.

ALGO DE NOVO! Wembley recebeu 66 mil pessoas para a final que só conhecera, na velha catedral entretanto demolida, no ano da graça de 1966 em que a Rainha Isabel, segunda do nome, entregou a Taça Jules Rimet ao capitão Bobby Moore. Agora foi a vez de Chielini, esse jogador infinito, receber a Taça Henry Delaunay que durante cinco anos morou em Lisboa, na sede da Federação Portuguesa de Futebol. A despeito de ter sido através de duas sessões de grandes penalidades que os italianos conquistaram este Campeonato da Europa (meias-finais frente à Espanha e final de domingo), ninguém lhes retira um pingo de justiça depois de terem sido, desde o primeiro jogo (o de abertura da prova, face à Suíça), o conjunto que futebol mais divertido e renovado jogou, fazendo esquecer as equipas sinistras dos anos-60 que se amarravam a um cattenacio que, durante décadas, matou o futebol na Europa e no Mundo, ensinando aos treinadores que tanto o admiravam que era à defesa a melhor maneira de vencer. Não é. E precisamente contra uma Inglaterra que quis jogar à italiana, apoiando-se no mito de que era praticamente impossível marcar-lhe golos, a prova foi dada com classe e categoria.

PORTUGAL TEM SUCESSOR. E se também a selecção nacional usou e abusou dos prolongamentos (e grandes penalidades) para se tornar campeã da Europa em 2016, é necessário dizer que este Europeu de todas as cidades e mais algumas deixou a milhares de quilómetros de distância, em qualidade de jogo, aquele que vencemos em Paris, no Estádio de Saint-Denis, no dia 10 de Julho de 2016.

Por toda a Londres, a noite de domingo engoliu os bebedores de cerveja que, se começaram a bebê-la para se divertirem, acabaram a bebê-la para esquecerem que cinquenta e cinco anos de sofrimento, como diz a canção escrita há vinte e cinco, aquando do Euro-1996, aqui em Inglaterra – “Thirty years of hurt/Never stop me dreaming” – vão continuar a somar-se aos que passaram entretanto. Mais uma vez, o visitante ganha a final ao visitado – tal como em 2004 e 2016 – e o estádio de Wembley esvaziou-se de um momento para o outro. Vozes roucas calaram-se, lágrimas escorreram pela cara dos vencidos, a bazófia foi engolida à custa de pints de cerveja. Olho os derrotados. Espalham-se pela cidade como fantasmas mudos. Noutros lugares, como Leicester Square, os vândalos atacam. Voam garrafas e estilhaços. Bestas de 126 patas escoicinham com raiva os adeptos italianos. Como disse o maior escritor da sua língua, Shakespeare, em A Tempestade: “O Inferno está vazio. Todos os demónios estão aqui!”.