Robin dos Bosques é quem um autor quiser

Robin dos Bosques é quem um autor quiser


O tema, que pareceria batido ganha com Brugeas e Herzet um novo interesse,  para o qual contribui, e muito, o trabalho de Benoît Dellac.


Ricardo Coração-de-Leão, de regresso da Terceira Cruzada, foi preso por Henrique VI, imperador romano-germânico, inimigo que pede um resgate em troca da libertação do rei. Nesse então, os regentes que este nomeara, os arcebispos de Durham e de Rouen, e a mãe, Leonor da Aquitânia, procuram satisfazer a exigência do soberano austríaco. Estamos em 1195, e o monarca “inglês” era também senhor da Normandia, desde que, no século anterior (1066), Guilherme o Conquistador largara daquelas praias futuramente heroicas para ocupar o trono no outro lado da Mancha. Até hoje, 14 de Junho de 2021, resistindo a Felipe II, Napoleão e Hitler, a velha Albion nunca mais viu bota estrangeira assentar-lhe no solo.

Ricardo Coração-de-Leão evoca na nossa memória infantil João Sem-Terra, o irmão, futuro monarca que irá outorgar a Magna Carta. A memória histórica nem sempre é justa, ao contrário – deseja-se – da historiografia. Ricardo, grande guerreiro, sim, mas monumental patife que inaugura na Europa a modalidade da caça ao judeu para lhe extorquir os bens, inventando parvoíces para excitar a gentiaga, goza da admiração de todos os gentios, embalados por Walter Scott e Hollywood.

Os autores do álbum de hoje – Nottingham – O Resgate do Rei – mostra-nos um tradicional e malévolo príncipe João, que envia um seu homem de mão, Hughes de Morville, de condado em condado a arrecadar tributos para cumprir as exigências do imperador, mas, naturalmente, conluiado com o usurpador, que não está pelos ajustes. Até aqui, tudo by the book. Onde Vincent Brugeas e Emmanuel Herzet, os argumentistas, inovam é na identidade do famoso Robin dos Bosques, figura lendária de bandido ético que roubava os ricos para dar aos pobres, ao mesmo tempo que atormentava com o seu bando de sicários bonacheirões – em que avulta João Pequeno, e a cumplicidade do frei Tuck e de Lady Marian, afinal, uma mulher de armas – o xerife de Nottingham. E a história passa-se entre estes dois: uma castelã anglo-saxónica que vê os vassalos espoliados pelas autoridades anglo-normandas, de que fazem parte os xerifes, incluindo o de Nottingham, com jurisdição sobre a floresta de Sherwood. Sem querermos estragar a surpresa da leitura aos interessados, podemos avançar que do tal Robin dos Bosques nunca se ouvirá falar nesta história, e que a ação se desenrola no âmbito mais complexo da inimizade entre saxões e normandos, de que a luta pelo poder protagonizada entre o “Lionheart” e o “Lackland” é uma das expressões.

O tema, que pareceria batido, ganha com Brugeas e Herzet um novo interesse, para o qual contribui, e muito, o trabalho de Benoît Dellac. As sequências rápidas das pranchas mudas e enquadramentos lembram-nos Hermann, por exemplo o de As Torres de Boiis-Maury, numa narrativa movimentada, pelo meio dos troncos de Sherwood e dentro das muralhas de Nottingham, por entre emboscadas, assaltos, contendas, em que as figuras se movem velozes e as onomatopeias, linguagem BD por excelência, são usadas com generosidade.

Nottingham – 1. La Rançon du Roi
Texto Vincent Brugeas e Emmanuel Herzet
Desenho Benoît Dellac
Editora Le Lombard, Bruxelas, 2021

 

Bdteca

Antes do esquecimento. A Lua está em colisão com a Terra, e, na iminência do fim, a autora dá-nos formas inesperadas de aguardar Apocalipse: a merceeira preocupada em vender a última lata de feijões, a conservadora de museu indecisa sobre quais as obras a salvar, crianças abandonadas acolhidas por um estilista, jovens que se apaixonam numa festa do fim do mundo… Avant l’Oubli, de Lisa Blumen, edição L’Employé du Moi, Bruxelas, 2021.

 

Polipolar. E de repente, quando estávamos a conversar com os nossos botões, damos por nós no corpo de outra pessoa, a sentir o que ela sente, para, sem aviso, voltarmos ao corpo original. Confusos? Também nós. Mas é uma maluquice de traço crumbiano proposta por Olivier Texier: Polypolaire, L’Association, Paris, 2021.

 

O regresso do Distribuidor. Le Convoyeur (“A minha palavra é a minha lei”, o seu mote), personagem duma época em que um misterioso vírus corroeu todo o metal, e que aceita qualquer missão, desde que o contratante aceite engolir um ovo que aquela lhe oferece, está de regresso com um segundo tomo: La Cité des Milles Fleche. Aqui vai defrontar-se como uma inimiga, “a Caçadora”, porém ambos terão que unir esforços quando se encontram na corte do Conde d’Arcasso, onde impera a crueldade e a depravação. De Dimitri Armand e Tristan Roulot, edição Le Lombard; Bruxelas. 2021.