Por Rosário Macário, professora e investigadora em transportes do Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico
Diz o código dos contratos públicos que: “Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da 19 responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.”
É sem dúvida a defesa do interesse público que preside às preocupações deste normativo, tanto em Portugal como na Europa. Pelo menos assim o esperam os cidadãos portugueses e europeus que tanto contribuem com recursos para que os seus governos os utilizem de forma eficiente e eficaz.
Nessa expectativa presume-se que os valores estabelecidos para os contratos sejam estimados com base em critérios objetivos, exigindo conhecimento da matéria em causa. Essa competência deve ser o garante de que o custo e preço dos contratos é de adequada proporcionalidade face ao valor que a entidade pública adjudicante vai obter do mesmo. Com isto evitar-se-á preços exorbitantemente altos, sintoma de lucros abusivos por parte do contratado, ou exorbitantemente baixos, suspeita de falta de competência por parte do contratado.
A primeira situação está devidamente acautelada no código, forçando a inspeção prévia do tribunal de contas para valores superiores a 750.000€, mas para a segunda situação não existe de facto um processo que garanta que a um preço exorbitantemente baixo corresponde uma prestação de boa qualidade.
O código dos contratos públicos diz que “a proposta é a declaração pela qual o concorrente manifesta à entidade adjudicante a sua vontade de contratar e o modo pelo qual se dispõe a fazê-lo”. Poderá dizer-se que a apresentação de uma proposta seria o bastante para assegurar esse processo, desde que o avaliador tenha suficiente conhecimento técnico para analisar o conteúdo da proposta, mas se não for esse o caso, é ainda possível contratar peritos independentes para integrar o júri dos concursos. Parece assim que a noção de proposta acautela os riscos associados à apresentação de preços excessivamente baixos, o que em economia se designa por “dumping” e constitui uma prática de concorrência desleal.
Mas o referido código estabelece também a noção do preço anormalmente baixo, que pode decorrer de consulta prévia ao mercado, considerando um desvio percentual em relação à média dos preços obtidos na consulta, ou por quaisquer outros critérios que o adjudicante considere adequados. Até aqui, e teoricamente, tudo parece ser quase perfeito.
A imperfeição e o risco surgem quando o código permite optar por duas formas de determinar qual a proposta economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante. As modalidades são, de acordo com o plasmado no código: “a) melhor relação qualidade-preço, na qual o critério de adjudicação é composto por um conjunto de fatores, e eventuais subfatores, relacionados com diversos aspetos da execução do contrato a celebrar; b) avaliação do preço ou custo enquanto único aspeto da execução do contrato a celebrar”.
Perante estas duas modalidades é obvio que o custo administrativo de organização e gestão do concurso é muito inferior na opção b), ainda que nesse caso o código obrigue a que as peças do procedimento concursal definam os restantes elementos da execução do contrato.
Esta opção b) constitui uma tentação forte nas entidades que lutam com falta de recursos, que veem aqui uma forma simplificadora do procedimento. O que efetivamente é, mas a simplificação não é aqui sinónimo de redução de custo, muito pelo contrário, com frequência a simplificação na definição do concurso resulta em elevados custos no final.
Com frequência se observam procedimentos concursais lançados na opção b), com uma definição de elementos de execução vaga, e muitas vezes dúbia, permitindo que candidatos sem experiência se apresentem a concurso e obtenham o contrato, enquanto candidatos com experiência comprovada e rigor na apresentação dos preços, sejam preteridos.
A questão de fundo é se um concurso lançado nesta opção b), com o aliciante da simplificação é efetivamente feito em defesa do interesse público.
A escolha por esta opção exclui da análise elementos de elevada importância, para não dizer elementos fundamentais para assegurar que o adjudicante é bem servido, ou como os ingleses referem não garante “value for money”. Estes elementos são, por exemplo: as características técnicas e as condições de prestação do serviço; a experiência e qualificações dos técnicos envolvidos; os métodos usados na prestação do serviço, etc.
São inúmeros os contratos que usam esta opção de simplificação, sem particular cuidado em definir os elementos fundamentais da prestação contratual. São também inúmeras as propostas apresentadas com preços absurdamente baixos, e muitas são adjudicadas. Quem tem experiência e competência chega, por razões de ética, a optar por não concorrer.
Quem perde?
Sem dúvida nenhuma perde o adjudicante, que na maioria das vezes é o Estado, que gasta recursos e é mal servido. Perdem também os potenciais prestadores com experiência e competência que poderiam servir com muita qualidade o Estado, e são preteridos.
Não temos nenhum mecanismo de proteção do interesse público para estes casos.
Adjudicar exclusivamente pelo preço prejudica o interesse público e institui praticas tacitamente autorizadas de concorrencial desleal
Quem perde no final é o cidadão, fonte inesgotável de recursos do próprio Estado.