O reconhecimento norte-americano do genocídio arménio – A reacção turca e a sedução vinda de leste


O reconhecimento da actual Administração norte-americana do genocídio arménio por parte do Império Otomano provocou a imediata reacção de repúdio do líder turco, Recep Tayyip Erdoğan, considerando de “infundados, injustos e falsos” os comentários do seu homólogo norte-americano, ao mesmo tempo que configura um “impacto destrutivo” nas relações entre os dois países.


RESUMO

O Genocídio Arménio, ocorrido entre 1915 e 1923, a que o escritor e jornalista britânico Robert Fisk se referiu como sendo o Holocausto Arménio[i], foi um processo sistemático de extermínio, considerado um dos maiores massacres e assassinatos em massa da história da humanidade, levado a cabo pelos turcos do Império Otomano, e que terão vitimado 1,5 milhão de cristãos arménios. No passado dia 24 de Abril, a que se convencionou chamar o Dia da Memória do Genocídio Arménio, o presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, emitiu uma declaração na qual reconheceu como genocídio “o massacre e o extermínio de civis arménios pelo Império Otomano”, ao mesmo tempo que, em nome do povo americano homenageou todos os arménios que morreram numa campanha otomana que teve o seu início há 106 anos. O reconhecimento da actual Administração norte-americana do genocídio arménio por parte do Império Otomano provocou a imediata reacção de repúdio do líder turco, Recep Tayyip Erdoğan, considerando de “infundados, injustos e falsos” os comentários do seu homólogo norte-americano, ao mesmo tempo que configura um “impacto destrutivo” nas relações entre os dois países[ii]. Permanentemente ignorado por parte da Comunidade Internacional, o genocídio do povo armênio foi, mais de um século volvido sobre aqueles dramáticos aqueles acontecimentos, pela primeira vez reconhecido pelos Estados Unidos da América.

 

ANÁLISE

Logo no início do século IV, mais exactamente no ano 301, a Arménia adoptou formalmente o Cristianismo como a sua religião. Foi, de resto, o primeiro país do mundo declarado oficialmente cristão. Ao longo de muitos séculos, o país foi sendo dominado por sucessivos impérios, alguns dos quais impuseram pela força as suas crenças religiosas. O último desses impérios, já a partir do século XV, acabaria por ser o Otomano, que absorveria o território arménio e imporia a religião muçulmana a toda a população cristã, considerada como “infiel”. Ainda que fosse permitido algum grau de autonomia, o tratamento dispensado aos arménios era marcado por graves desigualdades, das quais despontavam a quase inexistência de direitos políticos e sociais e a aplicação de cargas tributárias mais elevadas. Com o passar do tempo, as reacções do povo arménio ao domínio repressivo das autoridades otomanas foram subindo de tom, o que levaria o absolutista sultão Abdülhamid II, a adoptar severas medidas que resultariam no massacre e assassínio de centenas de milhares de arménios[iii]. No início do século XX, os cristãos arménios constituíam uma das várias comunidades religiosas minoritárias dentro do Império Otomano. Em 1915, já em plena Primeira Guerra Mundial, e a pretexto de porem termo ao que consideravam ser uma “ameaça à segurança” e ao seu alegado envolvimento com o inimigo [Império Russo][iv], as autoridades turcas deram início a uma campanha de deportações e assassinatos em massa da população arménia que vivia no Império Otomano. Sob o ponto de vista histórico, o dia 24 de abril de 1915 é convencionalmente considerado como a data de início dos massacres.

Numa altura em que se assinala mais um aniversário, o 106º sobre aqueles dramáticos acontecimentos, que o governo turco nega insistentemente ter-se tratado de um genocídio, mas, bem pelo contrário, uma “medida necessária em defesa da sua soberania e segurança”, é tornada pública pela presidência norte-americana uma declaração de elevado simbolismo histórico e político de reconhecimento do Genocídio Arménio. Ao longo dos anos foram vários os países que reconheceram formalmente o genocídio do povo arménio, entre os quais se incluem aliados da Turquia na OTAN, a par das Nações Unidas e do Parlamento Europeu, para além, naturalmente, da Igreja Católica. Na sua grande maioria, os historiadores corroboram a posição do actual presidente norte-americano que com a sua declaração quebra o silêncio das anteriores presidências que sempre tiveram como propósito evitar ondas de perturbação no relacionamento com a Turquia e, desse modo, contrariar a crescente influência da Rússia e, mais recentemente, a da China, também.

Apesar de ser bem anterior aos massacres em massa pelos turcos otomanos, ocorridos entre 1915 e 1923, a questão arménia continua a ser um tema de particular sensibilidade para uma significativa parte da Comunidade Internacional. A declaração norte-americana de reconhecimento do chamado Genocídio Arménio, ainda que de carácter simbólico, está a revelar-se como um assunto de preocupante controvérsia entre os Estados Unidos e a Turquia, que sempre rejeitou aquele epíteto. A este delicado contencioso e ao seu futuro desenvolvimento entre dois importantes membros da Aliança Atlântica estão seguramente a China, a Rússia e o Irão que verão com agrado uma eventual fractura no seio da Organização e do seu consequente enfraquecimento geostratégico global.

Lisboa, 5 de Maio de 2021


[i] THE INDEPENDENT, 1 de Abril de 2009.

[ii] RFE/RL, 26 de Abril de 2021.

[iii] ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Abdulhamid-II [Consultado em 29 Abril de 2021].

[iv] DADRIAN, Vahakn N. – The History of  the Armenian Genocide – Ethnic Conflict from the Balkans to Anatolia to the Caucasus. Nova Iorque: Berghahn Books, 2003.

 

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris

 


O reconhecimento norte-americano do genocídio arménio – A reacção turca e a sedução vinda de leste


O reconhecimento da actual Administração norte-americana do genocídio arménio por parte do Império Otomano provocou a imediata reacção de repúdio do líder turco, Recep Tayyip Erdoğan, considerando de “infundados, injustos e falsos” os comentários do seu homólogo norte-americano, ao mesmo tempo que configura um “impacto destrutivo” nas relações entre os dois países.


RESUMO

O Genocídio Arménio, ocorrido entre 1915 e 1923, a que o escritor e jornalista britânico Robert Fisk se referiu como sendo o Holocausto Arménio[i], foi um processo sistemático de extermínio, considerado um dos maiores massacres e assassinatos em massa da história da humanidade, levado a cabo pelos turcos do Império Otomano, e que terão vitimado 1,5 milhão de cristãos arménios. No passado dia 24 de Abril, a que se convencionou chamar o Dia da Memória do Genocídio Arménio, o presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, emitiu uma declaração na qual reconheceu como genocídio “o massacre e o extermínio de civis arménios pelo Império Otomano”, ao mesmo tempo que, em nome do povo americano homenageou todos os arménios que morreram numa campanha otomana que teve o seu início há 106 anos. O reconhecimento da actual Administração norte-americana do genocídio arménio por parte do Império Otomano provocou a imediata reacção de repúdio do líder turco, Recep Tayyip Erdoğan, considerando de “infundados, injustos e falsos” os comentários do seu homólogo norte-americano, ao mesmo tempo que configura um “impacto destrutivo” nas relações entre os dois países[ii]. Permanentemente ignorado por parte da Comunidade Internacional, o genocídio do povo armênio foi, mais de um século volvido sobre aqueles dramáticos aqueles acontecimentos, pela primeira vez reconhecido pelos Estados Unidos da América.

 

ANÁLISE

Logo no início do século IV, mais exactamente no ano 301, a Arménia adoptou formalmente o Cristianismo como a sua religião. Foi, de resto, o primeiro país do mundo declarado oficialmente cristão. Ao longo de muitos séculos, o país foi sendo dominado por sucessivos impérios, alguns dos quais impuseram pela força as suas crenças religiosas. O último desses impérios, já a partir do século XV, acabaria por ser o Otomano, que absorveria o território arménio e imporia a religião muçulmana a toda a população cristã, considerada como “infiel”. Ainda que fosse permitido algum grau de autonomia, o tratamento dispensado aos arménios era marcado por graves desigualdades, das quais despontavam a quase inexistência de direitos políticos e sociais e a aplicação de cargas tributárias mais elevadas. Com o passar do tempo, as reacções do povo arménio ao domínio repressivo das autoridades otomanas foram subindo de tom, o que levaria o absolutista sultão Abdülhamid II, a adoptar severas medidas que resultariam no massacre e assassínio de centenas de milhares de arménios[iii]. No início do século XX, os cristãos arménios constituíam uma das várias comunidades religiosas minoritárias dentro do Império Otomano. Em 1915, já em plena Primeira Guerra Mundial, e a pretexto de porem termo ao que consideravam ser uma “ameaça à segurança” e ao seu alegado envolvimento com o inimigo [Império Russo][iv], as autoridades turcas deram início a uma campanha de deportações e assassinatos em massa da população arménia que vivia no Império Otomano. Sob o ponto de vista histórico, o dia 24 de abril de 1915 é convencionalmente considerado como a data de início dos massacres.

Numa altura em que se assinala mais um aniversário, o 106º sobre aqueles dramáticos acontecimentos, que o governo turco nega insistentemente ter-se tratado de um genocídio, mas, bem pelo contrário, uma “medida necessária em defesa da sua soberania e segurança”, é tornada pública pela presidência norte-americana uma declaração de elevado simbolismo histórico e político de reconhecimento do Genocídio Arménio. Ao longo dos anos foram vários os países que reconheceram formalmente o genocídio do povo arménio, entre os quais se incluem aliados da Turquia na OTAN, a par das Nações Unidas e do Parlamento Europeu, para além, naturalmente, da Igreja Católica. Na sua grande maioria, os historiadores corroboram a posição do actual presidente norte-americano que com a sua declaração quebra o silêncio das anteriores presidências que sempre tiveram como propósito evitar ondas de perturbação no relacionamento com a Turquia e, desse modo, contrariar a crescente influência da Rússia e, mais recentemente, a da China, também.

Apesar de ser bem anterior aos massacres em massa pelos turcos otomanos, ocorridos entre 1915 e 1923, a questão arménia continua a ser um tema de particular sensibilidade para uma significativa parte da Comunidade Internacional. A declaração norte-americana de reconhecimento do chamado Genocídio Arménio, ainda que de carácter simbólico, está a revelar-se como um assunto de preocupante controvérsia entre os Estados Unidos e a Turquia, que sempre rejeitou aquele epíteto. A este delicado contencioso e ao seu futuro desenvolvimento entre dois importantes membros da Aliança Atlântica estão seguramente a China, a Rússia e o Irão que verão com agrado uma eventual fractura no seio da Organização e do seu consequente enfraquecimento geostratégico global.

Lisboa, 5 de Maio de 2021


[i] THE INDEPENDENT, 1 de Abril de 2009.

[ii] RFE/RL, 26 de Abril de 2021.

[iii] ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Abdulhamid-II [Consultado em 29 Abril de 2021].

[iv] DADRIAN, Vahakn N. – The History of  the Armenian Genocide – Ethnic Conflict from the Balkans to Anatolia to the Caucasus. Nova Iorque: Berghahn Books, 2003.

 

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris