Há muito que as condições de trabalho e de habitação dos trabalhadores imigrantes na agricultura, no país em geral e no município de Odemira em particular, levantam sérias preocupações, mas têm contado com a clara complacência do Estado Português. Basta ver a facilidade de contratação destes trabalhadores a termo, segundo o art. 142º do Código do Trabalho, que já foi qualificado como estabelecendo um verdadeiro off shore agrícola no Direito do Trabalho português.
No caso do município de Odemira, salienta-se a existência da Resolução do Conselho de Ministros 179/2019, de 24 de Outubro, que estabelece um regime especial de instalações de alojamento aplicável ao Aproveitamento Hidroagrícola do Mira, que permite durante dez anos a instalação de alojamentos para trabalhadores temporários, equiparados a instalações complementares da actividade agrícola. Essa Resolução determina limites máximos de alojamento para cada exploração entre 200 e 400 trabalhadores, consoante o número de hectares da exploração, colocando até 16 pessoas em cada unidade de alojamento, composta por quatro quartos, e tendo cada trabalhador uma área de referência de 3,43 m2 no quarto/dormitório.
Não consta que essa Resolução tenha sido suspensa ou alterada durante a pandemia, não surpreendendo assim que, com estas condições habitacionais nas próprias explorações agrícolas, e a escassez de casas no município de Odemira, seguramente não preparado para acolher tantos trabalhadores agrícolas imigrados, se verifiquem surtos de covid-19 nessa localidade. Mas a resolução do problema, que foi criado pelo Estado, é da responsabilidade do próprio Estado, que deve recorrer a instalações públicas para o efeito, e aplicar sem contemplações a lei do país relativa às condições de trabalho nessas explorações.
O Governo, porém, fez uma coisa completamente diferente, que foi proceder, através do despacho 4931-B/2021, de 29 de Abril, ao “reconhecimento antecipado da necessidade de declarar a situação de calamidade no município de Odemira”, estabelecido uma cerca sanitária nas freguesias de São Teotónio e Longueira-Almograve, e decretado “a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes que compõem o empreendimento «ZMar Eco Experience», sito na Herdade A-de-Mateus, em Longueira-Almograve, Odemira”. Segundo as notícias publicadas, esta requisição abrangeu casas de habitação, incluindo de habitação própria permanente, pertencentes a proprietários privados, que irão ser utilizadas para terceiros lá ficarem em confinamento.
A requisição temporária de empreendimentos privados tem cobertura legal e constitucional, desde que seja paga a justa indemnização, mas já parece suscitar questões de violação de direitos humanos a requisição de casas de habitação, que não apenas viola o direito de propriedade, mas também o direito à inviolabilidade do domicílio familiar e à intimidade da vida privada.
Na verdade, constitui uma profunda lesão dos direitos das pessoas permitir que estranhos ocupem, ainda que temporariamente, a sua habitação, permitindo-lhes usufruir da sua casa, incluindo os seus móveis e objectos pessoais, expondo assim a sua vida privada a terceiros. Ora, não há qualquer indemnização pela requisição temporária de imóveis que possa compensar os danos não patrimoniais que sofre quem vê a sua casa invadida por estranhos e a sua vida pessoal devassada. Mesmo, tratando-se de uma segunda habitação, esses danos verificam-se, mas os mesmos são especialmente agravados se se tratar de habitação própria permanente, em que por definição o proprietário tem que ser colocado na rua, para permitir que a sua casa seja ocupada por terceiros, o que é especialmente gravoso num período de pandemia.
A inviolabilidade do domicílio é um direito humano, garantido pelo art. 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Por isso, o art. 34º, nº2, da Constituição, determina que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, não podendo resultar assim de despacho do Governo. Uma vez que os direitos dos cidadãos deixaram de estar suspensos com o levantamento do estado de emergência, não pode o Estado de Direito em Portugal continuar sob cerca sanitária.