José Raposo. “A maioria dos artistas a partir de certa idade deixa ter convites”

José Raposo. “A maioria dos artistas a partir de certa idade deixa ter convites”


À frente da direção da Casa do Artista há um mês, José Raposo diz que gostava que a casa, mais que um lar, fosse um  polo cultural e ligasse gerações de artistas. 


À porta do estúdio da SIC em Carnaxide juntam-se rostos conhecidos no final da manhã de trabalho. Estão em gravações da série Patrões Fora, mas nas conversas cá fora entra também a nova missão de alguns deles e uma mobilização que querem que se estenda, colega a colega, a toda classe e ao público.

José Raposo preside há pouco mais de um mês – com Paulo Dias, Luís Aleluia, Sofia Grillo, Conceição Carvalho, Frederico Corado, Rui Veloso, Luís Alberto, Helena Vieira e Natália Luiza – à nova direção da Apoiarte, a IPSS responsável pela Casa do Artista, a residência que ganhou forma no final dos anos 90 pelas mãos de Raul Solnado, Pedro Solnado, Armando Cortez, Manuela Maria, Carmen Dolores e Octávio Clérigo.

Sonharam construir em Portugal um refúgio para os artistas mais velhos, lembrados e esquecidos, de todas as artes, e desde então passaram pela instituição centenas de atores, cantores, bailarinos, técnicos, etc. O início do ano foi duro, com um surto de covid-19 que vitimou 11 residentes, entres eles a co-fundadora Carmen Dolores, aos 96 anos.

A normalidade começa a refazer-se mas os planos da nova direção, que começou a mobilizar-se antes do vírus entrar porta adentro, vão mais longe. Querem que a Casa do Artista seja mais do que um lar: um polo de dinamização cultural e lugar de encontro entre gerações de artistas e preservação de memórias e garantir a sustentabilidade financeira do projeto.

Está há um mês nesta nova missão à frente da Casa do Artista. O que o levou a aceitar o desafio?
Exatamente esse espírito de missão, que foi o que quem esteve nas direções anteriores desde 1999 também teve. A ideia surgiu numa conversa com a Natália Luiza quando estávamos a fazer o Chicago no Teatro da Trindade no ano passado. A certa altura houve um jantar com um grupo de amigos, naquela altura em que ainda se podia, e estávamos a falar sobre a Casa do Artista, como podíamos ajudar, o que podiam fazer os atores da nossa geração… Nisto soubemos que as eleições iam ser dali a um mês (18 de janeiro) e começámos a falar com mais pessoas, a definir um grupo e depois perguntaram-me se podia ir para presidente. Eu disse de maneira nenhuma!

Já tinha sido presidente de alguma coisa?
Não, nada. Tivemos uma vez uma associação com o Raul Solnado que eram os Amigos do Parque Mayer mas os políticos começaram logo a empoderar-se daquilo e saímos. Na Casa do Artista depois acabámos por saber que a direção queria sair e acabámos mesmo por avançar. Insistiram comigo e ainda bem, fiquei presidente.

Já estava ligado à Casa do Artista?
Emocionalmente, só. Como muitos colegas, participei em pequenas coisas para apoiar quando necessário, mas houve muita gente que fez muito mais ao longo dos anos. Desde logo aquele grupo inicial. Raul Solnado, o Armando Cortez, Manuela Maria, a Carmen Dolores. 

Levaram 15 anos até inaugurar a Casa do Artista em 1999 e o Teatro Armando Cortez.
Sim, ao início foi uma luta hercúlea. As políticas desde país nunca foram muito viradas para a cultura.

Para a cultura e para os velhos.
Sim, são duas vertentes da nossa sociedade para as quais os políticos portugueses nunca foram muito vocacionados.

A direção toma posse depois do surto de covid-19 no início do ano. A atriz Manuela Maria pediu para deixar a direção. Que casa encontraram e como se enfrenta uma situação que acaba por ter maior exposição mediática?
Faço questão de prestar a minha homenagem à Manuela Maria. É o símbolo vivo do que foi a luta pela existência deste projeto e percorreu todas as direções. Já tem uma idade mais avançada mas é a luta de uma vida e acho que toda a classe deve estar-lhe grata pelo que conseguiram, bem como aos restantes fundadores. A anterior direção foi extraordinária. Quando aparece o surto, e com o impacto que tem, claro que isso é a notícia mais visível, mas é preciso dizer que aguentaram todo o ano passado sem ter nenhum caso de covid-19 e só ao fim de um ano é que acabou por acontecer. Foi muito duro para todos.

Conseguiram perceber como?
Foi alguém de fora que entrou infetado, um funcionário. Penso que foi alguém sem saber, as tais pessoas assintomáticas, pegou a alguém e a partir daí espalhou-se. Nós entrámos como direção quando já está tudo debelado e houve um trabalho enorme da anterior da direção, das equipas de médicos, enfermeiros, da junta de freguesia de Carnide que foi espetacular. Agora já têm todos as duas doses da vacina tomada, tanto residentes como auxiliares. Há um sentimento natural de luto mas numa instituição como esta as pessoas têm todas uma idade avançada: a morte vai acontecer, não é só durante um surto. O lema da Casa do Artista, que está logo à entrada e foi desenhado pelo Armando Cortez, é “aqui não é permitido envelhecer.” Acho que dá logo um sentido em relação à morte que não é o comum: o que queremos fazer ali é viver, dar uma qualidade de vida por inteiro a quem deu a sua vida aos outros. É o que faz o artista.

Que planos têm?
Ainda estamos a tirar o pulso à casa, a fazer o levantamento das necessidades. Mas no fundo o que queremos é tentar fazer ao longo destes quatro anos é, por um lado, melhorar as condições de vida dos residentes e por outro pôr as várias valências que existem na Casa do Artista ao serviço da cultura, seja o Teatro, a galeria de arte, a academia que tem várias salas de aulas, a biblioteca. Todas estas valências podem ser ativadas e dinamizadas para que se crie ali um polo cultural que abranja os residentes mas que traga pessoas de fora.

Sentir-se envelhecer é mais difícil para um artista?
Um artista só deixa de ser artista quando desaparece fisicamente. Acho que o que é mais difícil é sentir que se deixa de contar e gostava muito que os artistas residentes e que muitas vezes não são convidados para nada, que é outro mal de Portugal – e esse não é um problema dos políticos mas das produtoras, dos teatros – passassem a ser chamados mais vezes, a poder participar. Infelizmente a maioria a partir de certa idade deixa de ter convites.

A partir de que idade?
A partir dos 60, 70. Obviamente que há exceções, mas muitos começam ainda mais cedo ainda a deixar de ser chamados e vão ficando com menores condições de subsistência.

As mulheres mais cedo?
Sim, um pouco mais cedo. E isto podemos pensar que é uma coisa que se passa em todo o lado, mas passa-se só em Portugal, pelo menos quando nos comparamos com a Europa. Somos um país de um continente supostamente avançado em termos de civilização mas a realidade é que noutros países as pessoas percebem a vantagem de ter alguém mais velho, alguém com mais experiência e com sabedoria. São pessoas que devem poder continuar no ativo, para ensinar os outros. Aprendi muito com os mais velhos. Claro que também se aprende com os mais novos, trazem as coisas de agora, mas há uma sabedoria inerente ao ser humano que chega com a idade. E por isso é daquelas coisas que não compreendo.

Na televisão, nas novelas por exemplo, como é que esse preconceito se manifesta? 
Há muito poucas pessoas mais velhas nos elencos e são um leque muito restrito de atores.

Os mais consagrados.
Sim. E depois acontecem coisas que não fazem sentido. Dou-lhe um exemplo: convidaram-me há dois anos para fazer de avô de uma atriz dez anos mais nova do que eu. Disse-lhes que nem pensar e que podia dar uma lista de dez atores com mais de 70 anos que podiam fazer de avô daquela pessoa. 

Porque é que não chamam um homem mais velho? É por pensar que as pessoas já não têm o mesmo desempenho, não aguentam gravações da manhã à noite?
Talvez exista essa ideia de rentabilidade, mas não faltam atores. E cada caso é um caso. Há atores com muito mais idade que fixam muito melhor os textos do que eu. A Manuela Maria é um bom exemplo, ou veja-se o Ruy de Carvalho, que está a trabalhar, a fazer a Ratoeira! com a Yellow Star Company no Teatro Armando Cortez.

Com 94 anos.
É um ator de nível mundial. Ou a Eunice Muñoz, que estreou agora uma peça com a neta e é uma atriz genial em qualquer sítio do mundo.

São as exceções. 
Sim e não têm de ser. Se virmos uma novela espanhola ou uma novela brasileira, uma grande percentagem dos atores nos elencos são atores mais velhos, pessoas pelas quais o público tem um carinho especial. Portanto não compreendo esta gente que hoje em dia manda nas estações de televisão, porque as estações é que decidem. E não é só a televisão, é o teatro, as dobragens. Na Casa do Artista há alguns residentes que estão perfeitamente válidos para trabalhar.

E vão carregando essa mágoa?
Claro que sim. E por isso uma das coisas que gostava mesmo era de pô-los a trabalhar, os que querem claro e podem. Não sou diretor de televisão nem de grupos de teatro, mas no que esta direção puder intervir, eles hão de fazer coisas. Claro que há profissões diferentes em que a idade pesa mais. Um bailarino terá mais limitações, mas pode coreografar, pode dar aulas, pode partilhar a sua experiência com os mais novos.

Quando tomaram posse a sua mulher, a Sara, disse num programa de televisão que não podia haver alguém que se quisesse bater mais pelos “atores esquecidos”. De onde veio essa sensibilidade?
Não sei, é da minha formação. Acho que as pessoas não ficam menos válidas por serem mais velhas e que podem ter uma vida digna até ao fim. A minha mãe por exemplo tem 85 anos e vive sozinha por opção em Pontével. Enquanto ela estiver sã, física e mentalmente, acho muitíssimo bem que tenha a sua independência. Vou visitá-la, como vai o meu irmão e o resto da família, mas ela faz questão de estar na sua casinha, de fazer a sua vida normal, de ir ao café, estar com as vizinhas e acho que podemos incentivar isso. 

É uma profissão mais gregária, em que se começa “verde” com mais velhos à volta. Isso também o moldou?
Sim. Costumo dizer que o meu conservatório foram os encenadores, atores e realizadores mais velhos que me ensinaram. Tive a sorte de ir para vários registos e conhecer muitas pessoas diferentes no teatro, que continuo a achar que é onde se aprende, nas tábuas. Não quer dizer que não haja pessoas que pelo seu talento natural possam ser boas sem passar pelo teatro, mas mesmo assim acho que todas deviam passar. Dá-nos uma relação direta com o público que não temos em mais nenhum registo.

Começou com Francisco Nicholson e com o António Feio.
Sim, no Teatro Ádóque em 1981. Tive a sorte de ter logo uns primeiros professores incríveis, o António Feio, o Francisco Nicholson, o António Montês, a Cremilda Gil. Lá está, às vezes há nomes de que não se fala tanto e que foram muito importantes. A Cremilda Gil que na altura tinha 50 e tal anos, no fundo como eu tenho agora…

Quando se tem 18 anos parece muito. Já se sente um ator velho?
Não sinto nada, mas ser velho corresponde a ter mais experiência de vida, sim. 

E hoje o que diz aos mais novos?
Acho que para ser ator é preciso ter talento. Trabalhar claro, muito, mas saber se é o se quer e depois ter talento.
Ainda há uns tempos a neta da Eunice Muñoz, Lídia Muñoz, dizia que hoje na hora de seleção pesam os seguidores e os likes nas redes sociais…Isso acontece, mas sem talento não acredito que se vá longe. As pessoas acabam por ser naturalmente filtradas. É como diziam os mais velhos: o mar normalmente traz para terra o que não interessa. É preciso trabalhar mas é preciso talento. Sem talento pode trabalhar-se muito que não se chega lá.

Como disse há bocado, não fez o Conservatório. Há esse preconceito na classe?
Sim, há. Não sou nada contra o Conservatório, desde que a pessoa possa, a formação só faz bem. O meu filho mais velho, o Miguel, fez o conservatório. O mais novo, o Ricardo, fez o Chapitô. Eu e a mãe (Maria João Abreu) fomos os primeiros a incentivá-los. Mas a primeira coisa que lhes dissemos quando manifestaram o desejo de serem artistas foi ver se era mesmo o que queriam e se tinham jeito, o que não significa que tenha de ser aquele jeito que toda a gente sabe. O Ricardo era todo teatreiro e manifestou cedo essa vontade. Agora o mais velho nunca manifestou. O Miguel chegou ao 12º ano e um dia disse: “vou fazer provas ao Conservatório”. E nós: “Vais onde?”. Não fazíamos ideia. Fez um teste à nossa frente que nos deixou a chorar dez minutos.

Era mais fácil começar nos anos 80 ou a sua mãe teve aquela reação do “onde é que te vais meter”…
A minha mãe ainda hoje diz: “Ah ele podia estar na Caixa Geral de Depósitos…”

Queria que fosse bancário?
Queria, já teria uma vida mais estável, uma boa reforma.

Dá para imaginar então os pais de quem não chega a ser conhecido.
Não sei se era mais fácil na altura, agora o que havia era menos competição, havia menos gente. Hoje saem aos magotes das escolas e a concorrência é muito forte. Não há novelas, não há teatros que alberguem tanta gente. Na minha altura não havia tanta concorrência.

Lembra-se de quando sentiu o apelo do palco?
Foi na escola. Nasci em Angola, vim para cá com 12 anos para fazer o 6º ano. Andei na Escola D. Luísa de Gusmão. Era tímido mas depois quando tocava a imitações de políticos, de figuras conhecidas, tinha esse jeito.

Usava esse jeito para se enturmar?
É um bocado o que acontece com muitos artistas. É muito normal ouvir que eram tímidos. No palco ou no plateau extravasa-se isso. Uma pessoa despe-se dos seus medos, dos seus fantasmas, é um sítio onde se esquece dos outros e se entra uma dimensão diferente. É o maravilhoso de estar em palco, esse processo. E às vezes quando me abordam na rua naquele registo “conte lá uma anedota” não capta esse processo. Eu apesar de ser tímido depois até sou daqueles que em palco não tenho nervos. 

Nem superstições? 
Nada.

Nem aquele frio na barriga?
No início sim, claro. Mas para essas recordações sou péssimo, não consigo lembrar-me ao detalhe de como foi o primeiro dia. Sei que era uma coisa que eu queria muito.

Era uma comédia?
Comecei numa peça infantil chamada O Teatrinho, no Teatro Ádóque, escrita pela Ermelinda Duarte, uma das professoras desse meu conservatório. E era encenada pelo António Feio. As primeiras encenações dele foram no Ádóque, nas peças infantis, foi o Francisco Nicholson que lhe deixou esse legado. O António era ator mas já tinha essa veia para dirigir. Eu tinha 18 anos, ele teria 20 e tal, 30 no máximo. 

Ver partir esses primeiros companheiros foi pesado.
Sim, o Chico, o Feio, o António Montês, o Carlos Vieira de Almeida, o Henrique Viana que também era um ator extraordinário, o Fernando Lima, coreógrafo. O teatro não é só o ator, é todo este coletivo. E o Ádóque foi uma grande escola. Era uma cooperativa, não era uma companhia de teatro normal com um empresário à frente. Fazíamos tudo. Entrei mesmo no final, em 1981. Fiz o Teatrinho, depois fiz a minha primeira revista e depois acabou. Acabou não, foi destruído. Era um pavilhão no Martim Moniz onde hoje são os centros comerciais que lá existem e na altura foi pura e simplesmente destruído pela Câmara Municipal de Lisboa.

Como muitas salas de teatro e cinema que acabaram por ir desaparecendo.
Sim, é um ato comum em Portugal destruir-se teatros. Em vez de construírem, destroem. É a tal política muito estranha em relação à cultura. Tive pena de não ter estado mais tempo no Ádóque, mas acabei por ter sorte de alguma forma e fui por aí fora.

Este ano de pandemia foi o mais estranho na vida de um ator?
Muito estranho para todos. No setor da cultura em particular tem sido muito complicado porque os teatros, principalmente, viviam da atividade normal da bilheteira.

Como olha para tudo isto?
Nem sei, é uma espécie de guerra sem armas. Tenho as interrogações de muita gente, porque é que começou, como começou, que vírus é este. Como ator, o que vejo é o que vê a maior parte das pessoas da cultura: foi um corte enorme num setor que já era deficitário.

E que setor vai renascer depois da pandemia? Vai haver mais público?
Começámos há uma semana a reabrir e felizmente as pessoas estão a aparecer. Estavam sequiosas. Acho que sim. O público gosta de teatro, mesmo não sendo incentivado a tal neste país. 

Não nos podemos tornar mais caseiros?
Acho que não. Houve uma falta de socialização tremenda e somos seres sociais, as pessoas estão sedentas de contacto.

Há quem defenda que podemos ter uns novos loucos anos 20…
Isso veremos. Nessa altura a cocaína teve muita força e não creio que vamos para ai. Mas em relação à vontade de viver, sem dúvida. Precisamos de cultura, faz parte da nossa identidade. Nesta reabertura achei incompreensível esta decisão de podermos abrir as salas de espetáculo mas à uma da tarde ter de fechar tudo ao fim de semana, não faz sentido. Ninguém vai ao teatro às 10h da manhã.

A ministra da Cultura já admitiu que os apoios podem não ter chegado a todos, mas diz que houve apoios até exclusivos para o setor. Que perceção tem do impacto da pandemia no meio?
A cultura sempre foi muito pouco apoiada. Basta ver o Orçamento Geral do Estado, ainda nem conseguimos chegar a 1% do Orçamento. Nem é preciso ir a Inglaterra, França ou à Alemanha, basta ir aqui ao lado a Espanha para se ver um peso maior. Porque é que não se investe mais? Não se venha dizer que é por sermos um país pobre, é uma questão de escolhas. Mesmo com este dinheiro do que vem agora da Europa, o que é certo é que nunca calha à cultura. Naturalmente que há subsídios, mas aí entram critérios de escolha, sempre discutíveis. Quem vive só da bilheteira, e sobretudo o teatro mais comercial, não tem apoio do Estado. As pessoas ficaram sem nada.

Que relatos lhe chegam?
Há histórias dramáticas, principalmente no setor técnico. Pessoas com dificuldades em ter dinheiro para comer, para pagar rendas, que tiveram de recorrer aos pais, aos amigos para sobreviver. E no meio disto tudo, com uma perda brutal de rendimentos, continuámos a pagar impostos e vai ser preciso pagar rendas. Acho que no meio de uma calamidade como esta em que se tomaram estas medidas, a preocupação devia ter sido que as pessoas subsistissem. Pagar o quê se tivemos de ir para casa? Devia ter havido uma paragem nesses compromissos, nos impostos, nas redes, com apoio do Estado, sem as pessoas estarem a ver como é que vão continuar a pagar. O impacto foi transversal mas na cultura acho que os mais prejudicados foram mesmo os técnicos, que viviam do trabalho à tarefa, daquele concerto, daquele fim de semana. 

E com a abertura a retoma total ainda não é uma realidade.
Sim, o drama vai continuar a existir. Considero-me um privilegiado porque tive sempre trabalho na televisão. Confinei naqueles dois primeiros meses e no início do ano mas tive a sorte de estar a meio e trabalhos na televisão que foram sendo retomados.

Está a gravar Patrões Fora. Foi preciso mudar alguma coisa?
Há aquelas coisas novas. Toda a gente faz testes antes de entrar nos estúdios (almoçamos depois desta entrevista numa mesa para dois na cantina, separados por um acrílico). Em cena evita-se ao máximo o contacto, os beijos. É como na vida normal. Há quem diga que nunca vamos voltar ao mesmo, sou um bocado mais otimista e acho que sim. Há 100 anos houve a gripe espanhola, durou uns anos, mas a vida voltou ao normal.

Tem uma filha de dois anos. Como foi a pandemia nessa perspetiva de pai? Já voltaram aos baloiços?
Já. Ainda há dias fomos ao Oceanário e foi ótimo, para os miúdos é fundamental. Quando olho para ela e para os meus netos acho que o que pensamos depois disto é o que será que estes miúdos vão ter de enfrentar daqui a 20, 30 anos.

Neste canto do mundo mais confortável, foi um abalo no nosso estilo de vida.
Sim, mete as coisa um bocado em perspetiva. Em que medida é que causamos isto também… Como vai ser, ninguém consegue responder. Sabemos que a tecnologia avança, a medicina avança, mas fica-se um pouco mais preocupado.

Contracena com a atriz Sofia Arruda, que denunciou ter sido vítima de assédio sexual. Como viu esse passo?
Acho que felizmente hoje começa-se a falar abertamente. Não só de assédio, mas tudo o que era tabu.

Existem muitos casos de assédio no meio audiovisual?
Pessoalmente não assisti a nenhum caso, mas sei que é uma prática que ao longo dos anos existia de forma encoberta. 

Mas a repercussão foram mais mediáticas ou fala-se também nos bastidores?
Começa a falar-se mais e há uma maior proteção de quem passa por estas situações, que são desumanas. Há coisas a mudar nesse aspeto, sim.

Voltando à sua Casa do Artista, uma das vossas preocupações é garantir sustentabilidade financeira. Têm estado a apelar também a quem possa e queria doe os 0,05% do IRS à associação. Qual é a situação?
Estamos a fazer o levantamento. Cada residente num lar pode custar 1600 euros por mês em termos de encargos fixos que temos. A maioria das reformas dos artistas são pequenas. A Segurança Social financia com 300 euros. Os gastos são imensos, é um navio pesado de dirigir. O nosso plano é tentar conseguir muito mais apoio social e institucional, seja da parte de mecenas, de empresas e angaria sócios. Voltamos à importância da cultura. Estas pessoas fazem parte da história da nossa cultura, da nossa identidade e queremos também devolver isso à sociedade. Ainda estamos a tomar o pulso e perceber a melhor forma de rentabilizar todo o espaço. Queremos que as pessoas possam vir à Casa do Artista, ver um bom teatro, aproveitar o restaurante…

Almoçar ou jantar com um artista que até conhecem e as marcou algures?
Por que não? E se não conhecem, podem ficar a conhecer. E digo mesmo em relação às pessoas do meio, haver uma maior ligação entre atores de diferentes gerações para haver transmissão de conhecimento, de histórias.

Já soube alguma história dos seus inquilinos?
Por causa da pandemia respeitámos estritamente o plano que estava traçado pela anterior direção com a autoridade de saúde. Até dia 19 as pessoas estiveram nos quartos, sem visitas. Ninguém saía sem a segunda dose da vacina.

Não podiam sair dos quartos?
Sim, claro que com atendimento permanente. Iam à janela, até foi lá um dos programas de domingo que deu algum ânimo. Mas a partir de agora queremos estar mais presentes, conversar, proporcionais mais atividades artísticas. Já lá estive, mas só agora muito recentemente. Já tive uma ou outra conversa, mas a partir de agora é que vai ser.

Imagino que as pessoas tenham sede de conversar.
Muito. Têm muito para contar. Ainda agora nesta reabertura foram entrevistar a Anita Guerreiro e fartou-se de cantar, foi maravilhoso. Estava com uma necessidade enorme de cantar com pessoas a ouvir. É uma daquelas pessoas que cantava duas noites por semana n’O Faia, continuava ativa.

Sentem que escaparam a uma roleta?
Acho que nesta fase da vida as pessoas não estão a pensar quando vai ser, como vai ser. E para nós o mais importante também é que se sintam bem e isso torna-se uma missão maior quando temos diante de nós pessoas que foram uma referência.

Revive-se muito o passado nas conversas?
Acho que faz parte. Eu também sou nostálgico. Acho que a nostalgia pode ser uma coisa boa e num ator é fundamental. Dá-nos um fio condutor. E voltando à questão dos nomes esquecidos, faço muitas referências nas minhas redes sociais a pessoas que eram menos conhecidas. Nenhum protagonista é protagonista sem ter atores secundários, pessoas à volta. Estou a lembrar-me do Mário Alberto, um cenógrafo fabuloso de que ninguém fala. Ele e tantos outros tiveram uma importância enorme. Outra coisa que nunca fiz foi distinções entre o teatro comercial e o mais elitista, entre os populares e os intelectuais.

Essa gentrificação também se instalou no setor cultural?
Acho que é um bocado por fases, mas na minha forma de ver as coisas nenhum lado vai a lado nenhum sem o outro. Sempre houve coisas mais restritas para alguns públicos e outras mais abrangentes. E uma coisa visionária na Casa do Artista é que sempre quis ser abrangente nos residentes, juntar as pessoas das diferentes áreas.

Sente que encaixou no lado mais popular?
Não sei bem o que sou. Acho que sou acima de tudo ator, já fui a várias áreas. Fiz muita revista, que é considerado um espectáculo popular, mas sempre fiz questão de passar por todos os registos, acho que essa é a função do ator. Mas sim, gostava muito de colaborar para que a revista portuguesa fosse de alguma forma renovada. Foi um espectáculo sempre mal tratado.

Pelas elites?
Pela classe em geral. Há um preconceito muito grande em relação à revista e gostava de provar que as pessoas estão erradas.

Ficou associada ao Estado Novo?
Também mas isso acaba por ser muito estranho porque a revista era o único espectáculo que criticava o Estado Novo. Era o único espectáculo onde nas entrelinhas se criticava o regime. O fado também tinha esse rótulo e hoje é moda, até junto dos mais novos.

É preciso fazer o mesmo à revista?
Sim e gostava de participar nisso. A revista merece, tem muitas características que têm a ver com a nossa maneira de ser enquanto povo, o nosso humor. A anedota, o trocadilho, aquilo que se diz numa taberna. Porque é que temos vergonha disso?

O humor britânico, o francês, são referências. Temos vergonha do nosso?
Temos vergonha de nós, sempre tivemos, e essa também é uma característica muito portuguesa. Não sou eu que digo. Lembro-me de estrangeiros que iam ao Parque Mayer e ficavam siderados com aquele espaço, com os espetáculos e perguntavam-nos: “Mas porque é que isto está em decadência?” Não sabíamos explicar. Dizem que é comercial, que é feio, as raparigas têm as meias rotas. E nisto Lisboa que tinha uma coisa única que era um espaço dedicado à revista no meio da capital, com quatro teatros, restaurantes, cafés, perdeu-o. Era um pátio alfacinha concebido especificamente para aquilo, que confluía para o jardim botânico, tinha os tirinhos, o boxe ao vivo, tinha manifestações populares, tinha vida e tudo isso se perdeu.

Ainda tem memórias?
Cheguei em 1981, já numa fase em que não havia nada disso. Já só havia três teatros a funcionar. Digo só, mas agora dá vontade de dizer “ainda” havia três teatros. Ouvia as histórias de como tinha sido com uma pena enorme. Mas agora vejo que ainda tive muita sorte de viver naquela “comunidade”, como há uns tempos escreveu o meu filho Miguel, que viveu o Parque Mayer enquanto filho de dois atores e andava a deambular por ali. E naquele tempo, aqueles três teatros ainda funcionavam com duas sessões por dia à terça, quarta, quinta, sexta, sábado e três ao domingo, sempre com público. Só isto mostra bem a diferença para o que temos hoje. 

Acha que ainda faz falta assim um espaço em Lisboa? 
Sim, faço questão sempre de dizer que felizmente o Hélder Freire Costa conseguiu manter a revista viva naquele lugar no Teatro Maria Vitória. Nas Portas de Santo Antão temos o La Féria e o Coliseu, mas destruíram o Odeon e o Olympia. Mas é um local de passagem, no Parque Mayer estava um bocado da nossa identidade. Era um sítio onde se podia perceber a vida de um pátio alfacinha, onde se assavam sardinhas à porta do restaurante e se via uma revista com piadas populares. As gerações de agora não fazem ideia do que isso é e aquilo que lhes é dado são coisas importadas. O humor tem estado a globalizar-se. 

Está a falar de que formatos, de um programa como o Ricardo Araújo Pereira, da sitcom que vocês fazem, dos ‘roasts’?
O nosso programa tem uma linguagem popular. Não gosto de personalizar, mas generalizando o humor que vemos hoje tem sobretudo referências anglosaxónicas e o nosso tem-se perdido. 

Não era sofisticado o suficiente?
Para quem? E os textos populares podem ter muita qualidade na sua carpintaria. Os textos antigos eram muito burilados. No tempo da censura e do fascismo, tinha de haver muita inteligência na forma como se faziam os textos. Quando se diz que era tudo uma palhaçada, coçavam o rabo e diziam umas piadas, estudem primeiro… A revista era um espetáculo muito bem elaborado, pelos autores, pelos atores, pelos cenógrafos, pelos figurinistas. Para mim não faz sentido este preconceito, nunca fez.

São já dois planos para sua “velhice” de ator: Casa do Artista e ajudar a reabilitar a revista.
Gostava pelo menos de ajudar a passar a mensagem aos artistas mais novos. Desde que comecei que vejo esta lavagem cerebral que tem sido feito às gerações mais novas e estarem em contacto com artistas mais velhos pode ajudar. Em todo o mundo há de tudo, porque é que nós somos especiais de corrida?

O Raul Solnado é a referência na sua geração?
Era extraordinário. Era extremamente inteligente e tinha um sentido de humor fora do comum. Mas o Raul e também o Armando, que tinha um humor sarcástico, muito atrevido. Era daquelas pessoas que mandava a piada e nós ficávamos ali e um bocado e desmanchávamo-nos a rir. Com o Raul só trabalhei duas vezes, a primeira numa curta-metragem da Inês de Medeiros em que tinha uma cena com ele em que tivemos de gravar umas dez vezes porque mal ele entrava à porta eu desatava a rir.

Ele era o dono de uma agência funerária que sabia que tinha morrido alguém naquela casa. Batia à porta para vender os seus serviços com um discurso muito elaborado. “Ora muito boa noite, lamento imenso. Temos aqui um caixão para venda…” Era a forma como ele dizia aquilo. Tenho muita pena de não ter contracenado mais com o Raul.

Mas depois tive a sorte e o privilégio de conviver com ele, numa fase mais final. Ouvir as histórias que ele e outros contavam. Estou a lembrar-me de uma cena do Armando numa peça que se passava na Guerra Civil de Espanha e um colega, Mário, fazia de soldado ferido e o Armando punha a ligadura à volta da perna. Era todo um drama e o Armando chega ao fim e pergunta quer com lacinho ou sem lacinho. Eram extraordinários.

E isso é muito do humor e do humor português.
Sim. E o Raul então personificava muito isso, era o lisboeta meio pintas mas desenrascado. Um Charlot à portuguesa. Às vezes pedem-me histórias, mas eu não sou uma boa reserva dessas coisas e tenho pena de não haver mais registos. Houve uma altura em que tentei propor um programa de televisão em que contassem as histórias informalmente, na altura achou-se que não tinha interesse. 

E ouviam essas histórias no teatro?
Sim, havia um tempo que agora existe menos. Faziam-se tertúlias, as pessoas encontravam-se, havia tempo para conviver e para ter tempo. Tinham histórias mirabolantes, dos espetáculos, das tournés e são histórias da nossa cultura que se perdem quando as pessoas desaparecem. E é isso que queremos também ajudar a lembrar na Casa do Artista.