Era um casamento que parecia destinado a acontecer. Os percursos do produtor David Bruno e do rapper Mike el Nite já se tinham cruzado por diversas vezes, resultando em colaborações como ‘Interveniente Acidental’ ou ‘Volta no Meu Chapéu’, a primeira no projeto a solo de David e a segunda no seu grupo de hip-hop Conjunto Corona.
Apesar de terem surgido no seio do hip-hop português, os dois músicos apresentam sons e abordagens muito diferentes: Mike, mais virado para a letra e uma experiência mais “sôfrega”, como o próprio a descreve, e David focado em instrumentais com samples obscuras e letras curtas baseadas na observação do dia a dia.
Mas ambos partilham algo em comum, em especial o sentido de humor apurado das letras baseadas na experiência do que é ser português. A colaboração nasceu depois do rapper se ter mudado para o Porto, no ano passado, e ter contactado David para levar esta vontade antiga para a frente.
O resultado foi o disco David e Miguel, uma homenagem à música romântica latina e cantada na língua portuguesa, onde os músicos se divertem com os clichês do género, mas também com a oportunidade criativa que encarnar estas personagens lhes ofereceu.
Esta não é a vossa primeira colaboração, já tinham trabalhado juntos em Conjunto Corona, no projeto a solo do David Bruno. Porquê criar este projeto a dois?
M: Quando criámos a ‘Interveniente Acidental’ [música do disco de David Bruno, Miramar Confidencial (2019)], o David teve que retirar um dos versos que escrevi para a música, uma vez que era um álbum maioritariamente instrumental. Mas ficou prometida uma nova colaboração onde “eu podia dizer o que quisesse”. Mudei-me para o Porto no ano passado e uma das primeiras coisas que fiz foi ligar ao David e dizer: “Amigo, já cá estou, vamos fazer esse projeto”. E assim se deu início a David & Miguel.
Como foi a divisão de tarefas? O Miguel esteve encarregue das letras e o David da produção ou foi algo mais fluido e natural?
D: Foi um bocado como nos álbuns de Conjunto Corona ou nos meus trabalhos a solo: primeiro criei os instrumentais. Quando o Miguel me fez esta chamada e me desafiou, pedi-lhe só para esperar e disse: “Quando tiver um pacote de instrumentais mostro-te”. O resultado agradou-lhe e começámos a trabalhar nas letras. Um trabalho muito espontâneo, a partilhar mensagens no WhatsApp.
M: Também em momentos na casa do David, onde procurávamos referências e ideias-chave, assuntos que tínhamos em comum, que nos interessavam, que nos faziam rir e que achávamos que devíamos falar.
D: Foi assim que nasceu a música Inatel. A letra desta música foi feita com o site do Booking aberto à nossa frente. Estivemos a ler reviews da Inatel de Albufeira onde falavam de um “El Dorado do franceses imigrados no Algarve”. Foi daí que surgiu a ideia para escrever uns versos em francês.
Uma das maiores inspirações do projeto foram os duos de música romântica que cantam em português. Que grupos é que vos deram mais vontade de abordar este tema?
M: A referência mais óbvia é a Lucas & Mateus [dupla de cantores de música sertaneja do Brasil, constituída por dois irmãos], que procurámos homenagear na nossa capa. Também nos inspirámos em Miguel & André [projeto de Miguel Teixeira e André Letra que, segundo a sua agência de espetáculos, foi “a primeira dupla romântica portuguesa”]. Mas uma das nossas maiores inspirações foi uma playlist de YouTube feita pelo David chamada: “Canciones Poderosas” (risos). Onde podemos encontrar o apogeu da música romântica latina dos anos 1980 e inícios dos anos 1990. A estética foi retirada deste estilo de música.
D: A maior parte destes artistas foram aqueles que inspiraram o Tony Carreira (risos), é muito nessa base. Vale a pena ainda referenciar que quando andávamos a procurar capas, tínhamos como objetivo imitar a capa em jeito de homenagem. Nessa mesma semana morreu o Matheus com covid-19, depois de a ter contraído em Portugal. Então a nossa capa serviu como uma homenagem e um pedido de desculpa em nome de Portugal (risos).
M: Foi ainda mais um pretexto para servir como tributo, também andávamos a ver capas de Miguel & André, mas neste caso havia um motivo forte para prestarmos homenagem.
E não ficara com medo de serem mal interpretados e serem “cancelados” pelos vossos fãs?
D: Acho que não, era uma homenagem com respeito. Além disso, este foi o nosso disco enquanto dupla e a capa que imitamos é também a do primeiro disco de Lucas & Mateus. Portanto, estávamos em fases iguais das nossas carreiras.
Apesar do passado de hip-hop, têm backgrounds bastante diferentes. Como fizeram para conciliar as diferenças?
D: Acredito que o maior esforço de adaptação veio de parte do Miguel.
M: Já andava à procura de um projeto que me permitisse encarar o processo musical menos como rapper e mais como cantor, onde fosse possível retirar densidade ao texto. Visto que a componente do David Bruno tem uma estrutura que inclui rap, refrões e repetições, tive espaço para ser mais um cantor romântico. A única parte em que tenho mesmo um verso de rap é na ‘Inatel’, onde faço rap em francês, nas outras faixas estou a cantar ou a fazer spoken word, sempre em tom muito pausado. Portanto, tinha esta vontade gigante de inovar o meu processo e o material do David é muito bom para o que pretendia, tem muito espaço nos instrumentais para o fazer. Por outro lado, a nível de referências, existe muita coisa que partilhamos. Quando nos começámos a juntar percebemos que temos um sentido de humor semelhante, gostamos de representar as mesmas coisas em relação a Portugal, o lado mais cómico, as pessoas que pensam que vivem um lifestyle de luxo, quando são só foleiros.
Apesar de partilharem referências geográficas bastante diferentes, uma vez que o David viveu grande parte da sua vida em Gaia e o Miguel em Telheiras.
M: Sim, mas existem coisas que são comuns a todos, como ir de férias para o Algarve.
D: Este álbum, em relação ao resto da minha discografia, tem essa componente, não é tão regional, não é sobre Gaia. É sobre o país e daí ter feito sentido convidar o Miguel, para oferecer os seus inputs, apesar de todos os sítios mencionados serem familiares a ambos.
Se bem que existem sítios que são mais específicos, por exemplo, os Passadiços do Paiva. Motivou alguma viagem especial para se prepararem?
M: A primeira coisa que fiz quando cheguei ao Porto foi pegar no carro e descobrir os sítios que não conhecia. Arouca foi um dos sítios onde mais gostei de estar. Tem aquele cenário montanhoso que remete para os canyons americanos e para aqueles videoclipes do Michael Bolton onde ele está a cantar para uma falésia enquanto passa um falcão, uma cena meio western. Este local inspirou-nos a criar um cenário de western português.
D: Eu nunca fui aos Passadiços do Paiva, só passei por perto. O que me inspirou a escrever essa letra foram os Passadiços de Canidelo (risos). Foi o primeiro passeio que dei depois do primeiro confinamento, quando ninguém saía de casa nem para ir ao pão, íamos às compras e deixávamos os sacos dentro da dispensa durante dois dias para desaparecer o bicho (risos). Já tinha falado várias vezes com a minha namorada sobre irmos visitar os Passadiços do Paiva, mas fomos a Canidelo, onde existem um passadiços mais humildes. Fomos dar um passeio a pé e começou a cair uma chuva muito forte e, depois, saraiva. Só conseguia pensar em como seria mais fixe os Passadiços do Paiva. Portanto, foi assim que nasceu a música, um poema escrito em Canidelo, a pensar nos Passadiços do Paiva. Ainda tenho que lá ir.
Vou ser sincero, nunca pensei alguma vez ouvir uma música sobre Arouca ou sobre os Passadiços do Paiva.
M: Tenho uma memória de infância de Arouca. Eu devia ter uns 13 anos e durante uma das tours do meu pai [Joaquim Caixeiro, que fez parte da Brigada Victor Jara e, mais tarde, assumiu o projeto Quinzinho de Portugal], onde ele foi lá tocar a seguir ao Zé Cabra, tive o prazer de jantar uma posta arouquesa com o Zé Cabra. Nunca me hei-de esquecer porque tivemos uma conversa incrível. E ainda conhecemos o Presidente da Câmara Municipal, que também era um grande personagem.
Neste disco, encarnam personagens, como é que as descreveriam?
D: Existe uma lógica nas personagens, eu sou o amante mau e o Miguel é o amante bom. Ele é o coração partido e eu sou o pintas que só leva as miúdas a passear e depois despacha-as. Em todas as letras existe essa lógica. O Miguel sofre e chora e depois venho eu e só dou conversa da treta, todas as músicas são assim (risos). É o bom e o mau.
No entanto, existe um lado verdadeiro e pessoal que vos inspirou a escrever estas músicas. Por exemplo, deram o nome de mulheres a duas faixas, “Sónia” e “Rosa”, são baseadas em pessoas verdadeiras?
M: No caso da Sónia, é um trocadilho antigo que tenho com a minha amiga Da Chick, na música Sunny [interpretada originalmente pelo música Bobby Hebb, em 1963], onde cantávamos Sónia.
D: E é o sample desta música, mas a versão mexicana do músico Luís Miguel.
M: Uma música romântica com o nome de uma mulher tem sempre muito impacto. É uma devoção a uma mulher em específico e as mulheres com esse nome ouvem a música e pensam: “é mesmo para mim”. No caso da Rosa, é mais uma metáfora entre a mulher e a flor e os seus espinhos.
D: E rima com mentirosa.
O que é que acham que vão levar deste projeto para as vossas carreiras a solo?
M: Vou levar mais liberdade criativa, mais à vontade para certos aspetos que ainda não tinha abordado nos meus projetos a solo. Foi um projeto tão divertido de fazer que gostava era de começar já a fazer outro.
D: É verdade, foi muito espontâneo. Depois de ter os instrumentais feitos foi tudo muito rápido.
M: Nos meus álbuns, estou muito habituado a um processo muito mais sôfrego e muito mais esmiuçado de fazer música e aqui foi tudo muito natural. Está obviamente bom quando estamos a gravar, a rir e a gostar do que estamos a fazer.