Despertou a atenção do público português com o seu eclético disco de estreia, How Can We Be Joyful in a World Full of Knowledge?, em 2014. Desde então, os fãs de Bruno Pernadas ficam a salivar para descobrir qual será a próxima aventura musical em que músico os vai levar a passear. Agora, no seu quarto disco, Private Reasons, com influências que vão desde o rock espacial ao jazz, afrobeat ou à música clássica, entre outros mundos sonoros, Pernadas aproveitou para explorar estruturas mais pop e para dar uso à sua voz, apesar de revelar que ainda não será nos concertos de apresentação do álbum, dia 21 e 22 de maio, na Culturgest, em Lisboa, que os fãs o vão ouvir a cantar ao vivo.
Como foi a génese de Private Reasons, quando e como surgiu a ideia para criar este novo disco?
Já existia uma vontade há algum tempo, não existia era disponibilidade. Gostava de ter começado a fazer o disco em 2018, mas estava comprometido com outros trabalhos, encomendas para teatro e cinema, e não consegui avançar. Só comecei a trabalhar nele em setembro de 2019, mas depois não conseguimos ir para estúdio por causa do primeiro confinamento, e só deu para começarmos a trabalhar em junho. É por isso que o disco apenas é lançado agora e não no ano passado, como estava estipulado.
Sinto que um acontecimento importante neste disco foi a viagem ao Japão, onde a sua banda fez um concerto no festival de Frue, em 2018. Foi um momento que influenciou a criação deste disco?
Para uma das músicas sim – a ‘Family Vows’. Foi escrita assim que voltámos. Para o disco, talvez de uma forma inconsciente, mas de uma forma direta não consigo dizer que sim. Ou seja, houve uma influência, mas não foi devido à cultura oriental, foi mais o facto de termos tido acesso a tanta música diferente, das as Américas e de vários países asiáticos, a que não temos tanto acesso em Portugal. Abriu o espectro musical, mas isso poderia ter acontecido noutra cidade. Uma coisa era ter sido influenciado diretamente pela música tradicional de Okinawa e este disco ter essa vertente, mas não é o caso.
Pensava que tinha tido um maior peso, assim como o trabalho que fez com a banda japonesa Kikagaku Moyo, na produção do seu disco Masana Temples.
Mesmo esse disco eu diria que não é muito oriental, com exceção de algumas melodias. Mas claro que inconscientemente trazemos connosco algumas memórias, nem que sejam apenas auditivas, da música que ouvimos lá.
Um dos traços que mais se destacam nos seus discos anteriores é o cruzamento de estilos musicais e a fluidez com que passava por exemplo do rock para o jazz, para o blues… mas em Private Reasons sinto que existe um carimbo mais presente em termos geográficos, algo que se nota também pelos convidados, por exemplo, com a colaboração da sul-coreana Minji Kim, e que lhe confere uma maior autenticidade.
Foi algo que aconteceu um bocado ao acaso. Convidei a Minji para cantar uma música, mas só depois é que decidimos em que língua é que queríamos cantar. Na altura até lhe perguntei: “Cantamos em inglês ou em coreano?”. E foi unânime, decidimos pelo coreano. A letra original para essa canção [‘Jory I’ e ‘Jory II’], foi originalmente, escrita em português.
Sei que considera que o público japonês recebe muito bem a sua música. Acha que isso se deve a eles também terem tantos artistas que fazem grandes fusões na sua música?
Acredito que sim. Acho que gostamos do mesmo estilo de música e identificamo-nos com alguns estilos. Existe a componente da música improvisada, do jazz, de que eles são muito fãs, e também existe um lado de math rock, que apesar de não ser algo que existe diretamente no meu trabalho, sinto que as pessoas que possam gostar desse estilo possam também gostar de algumas partes da minha música. Acho que é por isso que o Japão é um dos países que mais ouve a minha música, até os Yellow Magic Orchestra, uma banda muito famosa do Japão, tem muitos destes elementos na sua música.
Algo que também existe neste disco são músicas que se enquadram numa estrutura pop e com mais destaque para a voz. Porquê adotar esta decisão agora?
Foi um acaso, não foi bem uma decisão. No início da criação do disco começaram a aparecer muitas canções. A verdade é que também existia muita música instrumental, que chegou a ser gravada no estúdio mas teve de ficar de fora, porque o disco ia ficar ainda mais longo. Acabámos por optar por estas músicas com formato mais pop, mesmo que nenhuma delas tenha um formato muito óbvio, existem várias partes em que estão mais próximas da canção.
Inclusive a sua voz está em maior destaque.
Sim. Como não canto ao vivo, há pessoas que não sabem que também cantei nos outros discos, mas em Private Reasons a voz masculina sou apenas eu. .
Esse maior destaque resulta de um maior à vontade da sua parte?
Se tivesse feito um disco mais de fusão, onde as melodias fossem mais próximas do jazz, como a ‘Spaceway 70’ [tema do seu disco Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them], teria convidado outra pessoa para cantar, mas como as músicas que estou a cantar estão mais próximas do indie rock preferi ouvir a minha voz do que a de outras pessoas. Este disco demorou muito tempo a concluir, e uma das razões foi a gravação das vozes. Eu não sou cantor, não aguento o fôlego de gravar uma música inteira, aliás, na música ‘Family Vows’ dá para perceber o som a mudar entre as quadras. Tive que fazer muitos takes de voz até conseguir acertar.
Mesmo assim a sua voz encontra-se em algumas faixas adornada com efeitos, foi uma escolha estética ou foi para a disfarçar?
É estética, utilizei na ‘Fuzzy Soul’, primeiro como uma experiência, mas depois não houve dúvidas que ia ficar dessa forma. Se calhar para o público soa a auto-tune, mas não é, o processo é completamente diferente, é feito manualmente, foi uma escolha mais minunciosa.
E também utiliza um vocoder.
Sim, é engraçado, porque isso foi um pedal da marca Electroharmonix, que se chama Voice Box, que comprei em 2013 para usar num concerto porque achava que me ia ajudar, mas depois não ajudou nada e nunca mais o usei. Tentei vendê-lo, mas ninguém o queria comprar a um preço justo. Acabei por ficar com ele e agora acabei por usá-lo.
Por falar em pedal, a Theme Vision, o primeiro single, é, para mim, um dos melhores momentos do disco. Gostava que explicasse como foi o processo de criação dessa faixa.
Essa música surgiu por acidente quando eu estava a fazer umas experiências em sintetizadores, num Mini Moog, à procura de um som para outra música. Surgiu-me essa melodia e foi o ponto de partida. O demo que gravei no telefone são apenas acordes soltos com a melodia por cima. Gradualmente, fui gravando novos elementos, a música era muito maior, teve que ser adaptada. Foi uma música muito divertida de gravar porque utilizei sons que nunca tinha utilizado, como o sintetizador DX7 [primeiro sintetizador digital de sucesso, utilizado por músicos como Prince], queria experimentar há muito tempo e deu para utilizar uma variedade única de sons.
O solo dessa música remete-me para bandas de rock experimental dos anos 1990, como os Flaming Lips ou os Mercury Rev. Qual foi o segredo para conseguir o som dessa parte da música?
O que se ouve na parte psicadélica é uma guitarra tocada por mim. Não sei se posso revelar o segredo, mas posso revelar que utilizei um pedal de delay feito à mão por uns rapazes do Canadá. Se ouvir o solo com atenção e com headphones, é possível perceber o que é que estou a tocar e o que é que está a resultar do efeito.
Algo que sinto que também ganhou mais espaço neste disco foram as influências da música clássica, por exemplo na Little Season II, onde existem uns arranjos de cordas angelicais. Porque é que só agora é que está a explorar este género?
Já algum tempo que escrevo para quinteto e quarteto de cordas, nomeadamente para bandas sonoras, e dei-me conta de que nunca tinha usado na minha música a solo. Queria usar neste disco um bocado para substituir o naipe de sopros e para ter umas novas cores no campo acústico. Foi daí que surgiu a música que referiste.
É engraçado a mudança de som entre as duas Little Season. Quando está a criar os seus discos não teme que estas mudanças súbitas de estilos possam alienar alguns ouvintes?
Acredito que não, quando as pessoas estão a ouvir rádio também acontece isto. Não é algo que me preocupe muito, sinceramente. Não é que seja um ato egoísta da minha parte, mas não vou fazer música a ter em conta se as pessoas vão ficar muito incomodadas se eu passar de uma música de metal para uma música clássica. Se quiser fazer uma música de trash metal e depois passar para um tema de hip-hop vou fazê-lo. Mas claro que quando faço música espero que as pessoas gostem, não estou a fazer música só para mim, mas não vou estar muito preocupado se as pessoas consideram ser demasiado eclético.
Com tantos estilos que já explorou nos seus quatro discos, qual é que pode ser o próximo género a explorar?
Não diria que há um estilo, não é assim que penso a música, por géneros. Mas sei que o próximo disco se vai afastar desta tendência pop com sintetizadores e música muito colorida. Vai ser uma música mais crua e improvisada, mais próxima da música de jazz espiritual e experimental, até pode vir a incluir voz, mas não vai ser neste contexto tão harmonioso, vai ser mais forte.
Entretanto, está quase a chegar o regresso aos palcos. Como vai ser a transposição do Private Reasons do estúdio para os palcos?
As músicas vão sofrer algumas alterações, as estruturas vão ficar mais longas, vai haver momentos para improvisação coletiva e individual, mais solos e espontaneidade. Não vamos utilizar o quarteto de cordas, posso assegurar, mas os sopros irão tomar conta desse lugar e vão ser incluídos temas antigos e alguns que tocamos, mas que não estão editados. Os temas mais pop devem ficar próximos daquilo que se ouve no disco, mas os outros vão sofrer esta transformação.
E quanto à voz, vai cantar nestes concertos?
Não, não, ainda é algo que está na mesa [risos]. Estamos a decidir ainda. Se calhar na Fuzzy Soul.