Carlos Neto. “O medo tomou conta deste país, em casa, na escola, na rua, na comunidade”

Carlos Neto. “O medo tomou conta deste país, em casa, na escola, na rua, na comunidade”


Ao chegar aos 70, o professor da Faculdade de Motricidade Humana que pôs o direito a brincar na ordem do dia prepara a sua última lição. Contra uma sociedade exausta, defende uma revolução.


Tinha 17 anos quando chegou a Lisboa para estudar, vindo de uma infância de aventuras em Leiria, mas à procura de respostas sobre si próprio. Trocou as voltas ao pai, que queria que fosse para Economia, e inscreveu-se em 1968 na Escola de Educação Física de Lisboa, na Cruz Quebrada, onde viria a fazer toda a carreira e a participar na revolução democrática e do pensamento do corpo. O corpo mais que a soma das partes, do que pernas que saltam e pés que caminham, mas a forma de existir no mundo. A educação física mais que o treino de músculos e órgãos, mas o desenvolvimento integral.

Passam 48 anos e o entusiasmo de Carlos Neto não esmorece, nem com a jubilação a aproximar-se. Desde os primeiros anos de professor não se cansou de tentar pôr o direito a brincar das crianças na ordem do dia. Diz-se satisfeito por haver maior aceitação da ideia, mas preocupado com a falta de prática, com o aprisionamento das crianças e uma sociedade de medo, que está a deixar-se consumir por uma angústia existencial. Espera conseguir dar a última aula ao vivo e para um grande auditório em maio ou junho e promete ser ousado. Sem desvendar muito, explora o prazer do jogo e da brincadeira como prolongamento das zonas erógenas do corpo para fora dele, a atração de miúdos e graúdos por orifícios. Confessa que continua a ter a fome de conhecimento dos primeiros anos e lamenta que hoje tanto alunos como professores se sentem nos bancos das universidades sem a curiosidade que alimentou a sua geração. Espera que essa revolução aconteça.

Fez 70 anos em março. Escreveu nesse dia que era a “passagem obrigatória à reforma”. Chateia-o ou está em paz com a jubilação?

É um sentimento contraditório. Estou compulsivamente na reforma e isso é estranho. Agora, ainda que tenha chegado ao fim de uma cadeira académica centrada na formação, na investigação mas também no serviço à comunidade, sinto que não haverá uma grande mudança na vida quotidiana porque continuo a ser muito solicitado em função das causas que defendo há 48 anos e que eram consideradas completamente utópicas nesses primeiros tempos. 

Qual foi a primeira utopia? 

Percebi logo quando terminei a licenciatura e iniciei o doutoramento que tinha de me dedicar a uma linha de pesquisa que tinha a ver com um sentimento forte das minhas memórias de infância da importância do brincar. Queria perceber melhor o que era o jogo, o papel da brincadeira no desenvolvimento, que no fundo é ter e perceber o gozo e o prazer de existir como corpo na relação com os outros e na relação com o risco. E isso depois molda tudo. Bati-me sempre por isso.

Muitos miúdos da sua geração e das anteriores não brincaram muito, trabalharam desde os seis, sete anos.

Havia enormes assimetrias. Mas ainda que vivêssemos numa ditadura e não tivéssemos uma grande capacidade de expressão, tínhamos liberdade depois da escola de virmos para a rua. O território da cidade, da aldeia, da vila, eram livres para nos podermos movimentar, pesquisar, socializar.

Cresceu fora de Lisboa.

Mas era assim também na cidade. Cresci em Leiria, uma cidade mágica, com um castelo, um rio, com a natureza à volta. Vivi grandes aventuras com os meus amigos, lutávamos até à exaustão. São memórias que ficam para sempre. Desde então tivemos vários fatores que levaram a uma remodelação total do tecido urbano. Uma urbanização progressiva, caótica, que retirou o espaço às crianças para brincarem, principalmente a rua, que fez uma desconexão entre as pessoas e os espaços verdes. Hoje vemos alguns programas para a inversão dessa tendência, para tornar as cidades mais verdes, mais caminháveis, fechar ruas ao trânsito, mas mesmo assim ainda há muito a fazer, ainda mais depois desta pandemia que nos veio dar uma maior consciência de que vivemos numa sociedade exausta, em fadiga, no limite. Instalou-se uma angústia pandémica, a passar para estados depressivos, e precisamos urgentemente de conseguir uma infância saudável e mais natural que possa inverter isto.

Dantes as pessoas trabalham intensamente, de sol a sol. Em que difere o cansaço?

Usavam o corpo, gastavam energia durante o dia. Nós hoje temos um sentimento de exaustão que é desligado do corpo, o corpo está em local incerto, está esquecido. Houve uma valorização excessiva de uma sociedade baseada no produto, na competição, na produtividade a qualquer preço e não no sentido da existência. Mais, numa sociedade neoliberal, criou-se quase uma auto-exaustão, uma auto-repressão e isso esgota as pessoas.

Com a pandemia vemos mais pessoas a fazer desporto, a desfrutar dos jardins e trilhos que têm ao pé de casa. Os telemóveis ajudam a contar os passos que se dá… não vê sinais positivos?
A partir do momento em que as pessoas tomam consciência de que são sedentárias, e a pandemia pode ter ajudado a isso, tentam encontrar estratégias, mas não deixam de ser metodologias artificializadas para encontrar parâmetros internos de vida saudável, porque a sociedade em que vivemos não é promotora disso. Acredito que é uma oportunidade interessante sobretudo para nos percebermos como corpo que precisa de se analisar, de se perceber, de procurar o mais possível ser um corpo ativo mas também contemplativo do que nos rodeia, encontrar um maior equilíbrio na nossa existência.

Ligar a parte física à espiritual?

Sim. Essa é a oportunidade. A questão é o desafio que vai ser, porque a pandemia mostra isto, mas ao mesmo tempo estamos numa transição digital. Se por um lado ganho a consciência de que tenho de naturalizar e humanizar o corpo, de voltar à natureza para me inspirar, ao mesmo tempo é o teletrabalho da pandemia, a cultura digital veio para ficar, será cada vez mais intensa e temos de encontrar estratégias para não ser totalmente dominados por isso. Sabe-se que hoje estar sentado muito tempo é uma das maiores pandemias deste século. Já era antes disto: o inquérito Nacional de Saúde de 2019 concluiu que 47% da população com mais de 15 anos, e é incompreensível não haver referências na avaliação da estratégia de promoção de atividade física da DGS sobre o que se passa com jovens até aos 15, passava 4 a 6 horas por dia sentado. 6% 10 a 12 horas, 7% mais de 12 horas. Se cada um de nós tiver a coragem de contar o número de horas que está sentado por dia…

Vemos os resultados: um estudo diz que os portugueses engordaram em média cinco quilos.

E não é só o excesso de peso e a obesidade, são consequências ao nível do aparecimento de doenças, diabetes, doença cardíaca e perturbação mental, o aumento da ansiedade, de sentimentos e angústia, de estados depressivos, de pensamento de suicídio na passagem da adolescência para a idade adulta. São taxas que têm aumentado ao longo do tempo. O corpo humano não evoluiu para estar sentado. Não gastamos energia. Sabendo que temos uma transição digital pela frente, temos de conseguir alguma estratégia para trabalhar com os nativos digitais que estão nas nossas mãos, os nossos filhos, e ter algum plano para que eles consigam abraçar essa cultura digital mas sem perder a noção de que enquanto hominídeos temos 5 milhões de história, um ADN que não pode ser esquecido. O corpo veio ao mundo para se mover, para ser ativo e tem de se continuar a mexer. Não tenho dúvidas de que vamos entrar num enorme período de transformação. Escrevia alguém que o que vai ficar para a história deste 9 de abril não é a Operação Marquês mas ver aquele macaco a jogar computador com a mente, aquela tecnologia apresentada por Elon Musk. Fala-se do teletrabalho, mas se calhar daqui a três ou quatro anos já temos representantes holográficos em reuniões. Não precisa de estar aqui comigo a conversar, manda o seu representante. O mundo vai mudar e às vezes parece que as pessoas ainda não acordaram. A escola ensina à moda antiga, os alunos ali sentados a aprender 1+1, estamos em velocidades diferentes.

Ao chegar ao fim da carreira, vê mudanças na escola ou esperava mais?

Temos muito boas experiências pedagógicas em Portugal mas ainda estamos muito atrasados. A escola está ainda demasiadamente presa a modelos explicativos e replicativos em que as crianças não são convidadas a fazer uma aprendizagem centrada na experiência, na pesquisa, em serem pequenos cientistas, pequenos artistas, a envolverem-se na comunidade. É ainda uma aprendizagem muito top down, muito imposta. Temos de conseguir ter crianças ativas a aprender e não sentadas a ouvir. Se não for assim, as crianças não veem sentido na existência da escola.

Mas ainda assim a escola é menos impositiva do que no passado, os próprios professores às vezes não conseguem sequer manter a ordem.

Os professores são uns heróis, esforçam-se o que podem. E nisso a pandemia veio mostrar à sociedade e às famílias que os professores são indispensáveis.

E que é preciso ter muita paciência… 

E disponibilidade ao mesmo tempo. O ato de ensinar e o ato de aprender é inspirado pelo brincar, é vincular, é estabelecer empatia, é uma relação efetiva entre os corpos. É assim que se ensina e aprende.

Mas havendo essa vocação em muitos professores, porque acha que a escola continua impositiva?

Há vários constrangimentos. Currículos demasiado intensos e extensos, uma organização social que assenta numa metodologia em que as crianças aprendem todas à mesma hora, no mesmo tempo e da mesma forma quando as crianças são todas muito diferentes umas das outras. Na primeira década de vida, até ao primeiro ciclo, as crianças deviam ter muito mais tempo para brincar, para serem ativas, para socializarem, para se confrontarem com o risco, para aprenderem a ser pessoas.

Na prática, o que mudaria?

Trazer aulas para o exterior, ir à comunidade buscar conhecimento, desenvolver projetos que liguem a comunidade, que liguem gerações, que permitam às crianças perceber a complexidade da nossa estrutura interna biológica e social.

Isso custa dinheiro, logística, autorizações dos encarregados de educação para sair da escola. 

Até pode custar menos dinheiro. Mas mesmo na escola podemos mudar para um modelo de aprendizagem com uma visão mais participativa e integral, colocando as crianças numa posição de maior descoberta. Num modelo em que a aprendizagem dos diferentes saberes surge das perguntas que as crianças em contacto com o mundo têm para fazer e os professores, com o seu saber, a sua formação, são facilitadores da aprendizagem, lhes dão ferramentas. Além disso, podemos mudar a organização espacial da escola, passar a falar de espaços interiores e exteriores de aprendizagem e não da sala de aula e do recreio. Aquela ideia “vai lá fora gastar um bocadinho de energia que depois vens com mais atenção para a aula” é uma estupidez. As crianças têm energia e essa energia pode ser usada para aprenderem. 

Portanto na primeira década de vida, um ensino mais livre. E depois?

É evidente que a partir da puberdade as crianças têm outra maturidade cognitiva, emocional e social e aí o ensino deve ser mais organizado, mais planeado, no sentido de se obterem conhecimentos e competências estruturantes para o futuro, mas mesmo aí é preciso aliviar esse modelo clássico, fora de moda, de avaliações, currículos estruturados em saberes que não são interligados e que não servem para as crianças perceberem o seu caminho por um lado, por outro, lhes transmitir uma dimensão comunitária da existência, a importância de cooperarem. 

Mas como perceber os resultados sem avaliar?

Não digo que não se avalie, tem é de ser uma avaliação mais qualitativa, não centrada no produto mas no processo. Fazer portfólios, pôr as crianças a participar na avaliação qualitativa dos projetos que desenvolvem, perceber o que correu bem, o que correu mal. O grande entrave aqui de facto é que o ensino que temos hoje a partir do 2º ciclo e até ao secundário está todo orientado para os exames e para a entrada na faculdade. Para começar, faria uma grande discussão sobre como termos um modelo alternativo para selecionar os jovens para entrar nas faculdades. E depois é preciso trabalhar com os pais. Hoje a expectativa parental é que as crianças no pré-escolar já tenham a capacidade de aprender a ler, escrever e contar. Há uma pressa de que as crianças aprendam.

O psiquiatra Eduardo Sá diz que forçar essas aprendizagens nessas idades é criminoso.

E é um crime. A ciência diz-nos com grande evidência que quando queremos fazer uma espécie de formatação demasiadamente rápida, seja fazer artistas, desportistas, paga-se caro, porque gera frustração e cria rótulos quando é preciso esperar pela maturidade das crianças, que os talentos apareçam, se revelem. Por outro lado é uma ilusão para os pais, porque o facto de se especializarem muito cedo, algumas com explicações logo no primeiro ciclo, um trabalho penoso, não significa sucesso.

Viu-o ao longo destes anos?

Sim, muitas vezes. Crianças que se pensa que não estão a ter resultados a revelarem-se mais tarde.

Só que há um “tempo normal” para fazer as coisas.

Sim e esse é o pesadelo de uma escola que olha apenas para as aquisições cognitivas e académicas, porque se pode ter até resultados e estar a descurar no resto. Há uma visão no ensino que é predominantemente cartesiana, entra o cérebro na escola mas o corpo fica à porta. 

E depois temos estes dois mundos: crianças a aprender matemática e a escrever no pré-escolar, com 4, 5 anos, e jovens que ficam em casa dos pais até aos 30 anos, às vezes não só por razões financeiras. 

Há uma autonomia tardia, que em parte se pode dever ao facto de as crianças não terem participação, autonomia e liberdade na infância. As crianças hoje passam mais tempo na escola organizada do que em atividades informais, não organizadas, que permitem adquirir essas competências. Precisamos que as crianças e os jovens desenvolvam capacidades adaptativas para lidarem com a adversidade, risco, treinarem, tomar decisões. E que a sociedade perceba que isso é algo natural para a sobrevivência. Hoje a sociedade está desorientada. Temos corpos aprisionados, com medo dos outros e seria uma oportunidade de pelo menos no ensino pôr o corpo no centro e em contacto. O que vemos é o contrário. Há uma preocupação excessiva em a criança estar calada, sentada e quieta, em fila umas atrás das outras, quando deviam poder partilhar conhecimento, sentadas no chão, falarem. Ainda estamos naquela fase em que não se pode copiar, o que é uma figura do século passado.

Não vê mal em copiar?

Copiar é uma forma de aprendizagem.

Não é uma forma de os mais calinas aproveitarem o esforço dos outros?

As crianças aprendem em conjunto, cooperando, em grupo. 

Mas quando se tem perguntas de escolha múltipla, a solução dos professores até é fazer várias versões para prevenir o copianço…

Testes com perguntas de escolha múltipla são um disparate, um crime para a cabeça. O conhecimento é interativo, não é finito, é um ponto de partida, não é um ponto de chegada. Não são pontos finais, são vírgulas.

Faz coleção de cábulas dos seus alunos mas numa perspetiva de que se tornem vestígios documentais…

A vida não se resolve com cábulas, a vida tem de ser um desafio, é uma existência em que tem de se perceber o sentido. E o sentido só se pode perceber quando se dá oportunidades para as crianças fazerem o seu percurso. O que temos hoje é uma sociedade e uma família demasiada superprotetora, cruel na forma como dá tudo pronto e na hora às crianças e não permitem que sintam frustração e tédio, que não permite que desde cedo comecem a fazer esse percurso.

Não permitem frustração porque não conseguem dizer não.

Sim. E isso faz com que as crianças fiquem com uma grande imaturidade. Quando me diz: “Os jovens hoje só conseguem ser autónomos aos 25, 30 anos”, é óbvio. Evidente que há 30 ou 40 anos começávamos a trabalhar mais cedo, havia mais oportunidades, mas não havia esta cultura que leva a esta imaturidade.

Quando começou a trabalhar?
Comecei a ajudar o meu pai nas tarefas quotidianas.

Fazia o quê? 

Era armazenista de vinhos, o que para mim era uma experiência fantástica. Passava o dia todo a usar o corpo, a subir aos depósitos, a encher barris, a distribui-los e depois ainda brincava na rua. Cresci dentro de um armazém de vinhos e o meu corpo tornou-se uma espécie de corpo circence, com risco nessas atividades. Que é o que a vida das crianças hoje não tem: não tem risco, nem em casa nem na escola, não tem contacto com a natureza nem rua para brincar. E essa é uma das minhas batalhas, que vou continuar: precisamos de políticas audazes para que as crianças possam brincar e ser ativas nas primeiras idades porque isso é essencial para crescerem saudáveis e terem um estilo de vida ativo ao longo da vida. 

Percebe que haja parques infantis fechados há um ano?

É inaceitável. Mas mesmo antes da pandemia já era preciso que houvesse condições para as crianças brincarem no exterior e terem uma mobilidade autónoma. Acho que todos os pais deviam parar cinco minutos e pensar: que memórias têm da infância – às vezes parece que houve um apagão – como se movimentavam, como socializavam com os amigos. 

A partir de que idade é que uma criança poderia ter autonomia para sair de casa?

A partir dos 5, 6 anos, como acontece em muitos países do Norte da Europa, em que muitas crianças vão a pé para a escola, ou vão de bicicleta. Mexem-se, conhecem o território onde vivem, isso dá-lhes identidade, dá-lhes confiança. Em Portugal, um país fascinante, com bom clima, com história e cultura, o terceiro país mais seguro do mundo, as crianças ficam fechadas, amarradas e vão de carro para todo o lado. É incompreensível.

Nos países nórdicos há níveis maiores de confiança na sociedade.

Fazem sestas na rua com 15 graus negativos! Cá há um medo generalizado. O medo tomou conta deste país, em casa, na escola, na rua, na comunidade.

Mas não o vê noutros países?

O medo é generalizado em todos os países mais desenvolvidos mas não é tanto como em Portugal. Aqui houve um intoxicação repetitiva, obsessiva e patológica dos órgãos de comunicação social na criação de medos, representações mentais nos pais.

Fala do caso Casa Pia?

Não foi só a Casa Pia, o caso Maddie, casos. Temos um país seguro, com qualidade de vida e não se compreende que as crianças estejam amarradas e domesticadas nos seus comportamentos. Agora claro que precisamos de uma sociedade que promova confiança, de políticas públicas centradas numa governança coletiva e numa vivência comunitária, uma melhor organização entre trabalho e família. Não tendo nada disso nem fazendo nada para o mudar, temos escolas a tempo inteiro com crianças prisioneiras oito horas por dia. Há crianças que passam dez horas por dia nas creches. 

Quando vai na rua, o que o choca?

Não se verem crianças na cidade. O estacionamento, os carros. O espaço público nos últimos 40 anos foi completamente decepado. Não há festa, não há encontro, não há sedução para que eu saia de casa, para que me possa tornar um cidadão interativo com os outros. As pessoas movem-se quando têm um objetivo, querem ir comer, beber um copo. Passear é das coisas mais importantes que podemos fazer, caminhar sem objetivo, estar connosco, olhar. E isso ganha-se desde miúdo. Agora as crianças não se movem para ter saúde, isso é um disparate. As crianças movem-se para ter prazer, para ter locais secretos, aventuras e hoje não podem ter locais secretos. 

Em 48 anos de ensino, que diferenças nota entre os primeiros alunos e os alunos de hoje?

Nos mais novos, não em todos, mas numa grande percentagem, temos um grande aumento da iliteracia motora, que se exacerbou agora durante a pandemia. O que significa maior iliteracia motora? Uma maior debilidade das perícias corporais, do equilíbrio, do ajustamento da postura, dos movimentos manipulativos, de locomoção. As crianças não sabem correr, não sabem saltar. Há crianças que não sabem atar os sapatos com seis anos.

Com que idade é suposto uma criança saber atar os sapatos?

Provavelmente a partir dos três anos já poderiam saber.

Porque não aprendem?

Porque têm sapatos que se colam (de velcro). Os pais só compram desses. Porquê? Porque se instalou um enorme comodismo, porque o tempo é vivido a correr, à pressa. 

E fará diferença aprender a atar sapatos aos três ou aos 7?

Atar os sapatos é uma operação de manipulação fina fantástica. A relação entre cultura motora fina e cultura motora grosseira, aquilo a que se chama coordenação motora, é essencial para o desenvolvimento motor. Hoje as crianças vivem essencialmente com o corpo na ponta dos dedos: é relação visual, ecrã e dedos, que de repente substitui toda a nossa coordenação motora ancestral. Que consequências terá? Não sabemos.

Há estudos que sugerem que os dedos já estão a mudar.

Eu sou um evolucionista por natureza e acho que a evolução do corpo não terminou aqui. Não posso fazer ficção científica, mas o corpo está em grande mudança. Basta ver as horas que passamos sentados e o que isso faz à nossa postura. Agora temos de pensar no que isso significa: levamos 12 meses em média para andar de pé e a partir daí temos a oportunidade de nos afastarmos e ganharmos autonomia do colo e do afeto da mãe, do pai também mas principalmente da mãe, e esse ganho de autonomia é fundamental. Hoje as crianças são demasiadamente protegidas até tarde. Ganham competências motoras mas a exploração fica limitada. E sinceramente, faz-me confusão que o país tenha uma estratégia nacional de promoção de atividade física que não fala de crianças com menos de 15 anos. E mesmo nesta pandemia, falou-se de alimentação, do sono, da saúde mental. A saúde física, sendo importante para todas as doenças e para a saúde mental, onde está? 

Houve autorizações para os passeios higiénicos…

É pouco. Mesmo agora, no regresso às escolas, as crianças que ficaram em casa todo este tempo voltam para a escola para ficar confinadas na sala de aula. É um crime. As crianças precisam de ser restauradas rapidamente. Há doenças que estão debaixo da pele, obscuras, não sabemos os contornos do que vai aparecer em termos futuros como resultado deste aprisionamento do corpo.

As faculdades ainda não abriram, mas já tem estado de novo com as crianças mais novas a quem dá aulas na cooperativa A Torre. O que se nota?

Uma grande necessidade de socialização, uma decadência de cultura lúdica e motora. O foco é menor, a habilidade diminuiu, a frustração é maior. Estiveram muito tempo centradas nelas, paradas e quietas. Ainda hoje estive com uma terceira classe, que é o rubro da energia, e com um crianças de 4 anos. Em 25 crianças, há ali 15, 16 que estão a precisar de reparos diversos, não é só na parte motora. Na parte emocional, na parte social, na parte alimentar, na parte parental. Acho dramático que não tenha havido uma agenda desportiva. Temos cerca de 250 mil jovens que pura e simplesmente deixaram de fazer desporto de formação, que para muitos é uma forte motivação. Não houve políticas públicas que percebessem que as crianças e os jovens ficaram muito penalizados nas suas linguagens corporais, nas suas existências e que agora necessitam de um tempo para as recuperar. Não temos de estar preocupados com as aprendizagens escolares já. Temos de estar preocupados em restaurar o corpo, que é necessário para haver sucesso escolar. Será que ninguém percebe isto?

Chegou a esboçar-se a discussão de ter sido um ano zero, sem mudanças de ano. Teria sido melhor?

Era possível, para mim pelo menos não seria um escândalo. Já tivemos anos zero, anos cívicos. Há falta de coragem política para perceber em que estado estão as crianças e os jovens e que há hoje uma assimetria ainda maior porque muitas crianças tiveram oportunidades e outras não. Há famílias que não tiveram oportunidades porque não tiveram computadores, ou porque não tinham espaço suficiente, ou porque o ensino à distancia não funcionou. Há crianças diminuídas e para haver justiça era necessário que tivéssemos coragem de ter um modelo que corrigisse isso.

Não o vê?

Não vejo, porque já se está a falar de novo dos exames e de recuperar aprendizagens. E bate-se sempre na mesma tecla: há outras áreas que é preciso valorizar, envolver os pais, criar comunidades de aprendizagem, envolver os cozinheiros, os jardineiros, os autarcas, mostrar aos alunos o que é a cidadania. 

O BE propôs esta semana um plano nacional de férias de verão, para garantir atividades culturais, desportivas, entradas gratuitas em museus, em recintos desportivos.

E estou de acordo, mas não devia ser só no verão, devia ser já, devia estar a acontecer nas escolas. E espero que não seja um programa de tempo organizado ou uma coisa para aliviar os pais. As crianças precisam de fazer o que nunca fizeram, de ir acampar, de ir para o rio, para a serra. Precisam de tempo livre, isso é que são férias. Em março de 2020 disse: é urgente decretar o estado de emergência de brincar ao ar livre. Já na altura o que sentia era que íamos evoluir para aqui, uma situação em que temos a angústia no corpo. Até sentimentos de solidão observamos nas crianças, problemas comportamentais, desvios na sua linguagem corporal. Porque é que não se fala disso?

Estão mais introvertidas?

Não é só introversão, são energias vitais descontroladas. Quando uma criança está demasiadas horas em frente a um ecrã fica hipnotizada, em silêncio. A sedução é enorme e não ha feedback. Quando acaba de estar em confinamento com o ecrã, o corpo fica com uma energia e um descontrolo enorme que dá cabo da cabeça dos pais e da cabeça das crianças. E foi o que tivemos nestes meses. Antes da pandemia, a Organização Mundial de Saúde dizia claramente que as crianças até aos três anos não deviam ter contacto com dispositivos digitais. Entre os 3 e os 5, devia ser uma hora, uma hora e meia, duas horas. Acima dos seis anos, com maior maturidade cognitiva, poderia haver uma exposição maior.

A própria escola promoveu tempos maiores de exposição.

Aprisionou-se as crianças e por isso insisto que é preciso libertá-las. Nos últimos meses as crianças passaram 80% do tempo de confinamento no ecrã e 75% a menos em atividade física, revelou um estudo que fizemos na faculdade. 

Nos estudantes universitários, o que nota?

Neste segundo confinamento houve alunos que precisaram de apoio psicológico. Somos uma faculdade de motricidade humana é certo, há cursos em que a prática física é a motivação dos jovens, e estar sem prática, sem poder evoluir, cria uma angústia enorme. Há estudantes no limite, há pessoas de todas as idades no limite. Por isso é inadmissível que voltem a uma escola que os receba como se estivesse tudo na mesma, do pré-escolar à universidade. Hoje o que existe dentro das escolas é medo, as crianças andam policiadas, para mais agora com regras sanitárias incompreensíveis.

Acha que são excessivas?

Penso que em relação às primeiras idades se tem falhado muito. Máscara, distância, bolhas são dinâmica estranhas e levaram a que se instalasse nas escolas uma cultura de proibição. Na sociedade também. Não sou um negacionista, mas enquanto especialista nas culturas do corpo, tenho de reconhecer que o corpo foi altamente penalizado. Houve um esquecimento nas políticas sanitárias da nossa existência corporal e como isso está ligado à saúde. Alguém está a discutir taxas de obesidade, de aumento de diabetes, de aumento da miopia? Alguém se lembrou de um plano de prevenção? Podemos ter regras de combate a este vírus, distanciamento, cuidado a lavar as mãos, mas a maior forma de imunidade é pôr este corpo em confronto, apelar e seduzir o corpo, estar próximo da morte para dar sentido à vida, que é o confronto que nos dá o desporto, o brincar, as artes.

Teria sido possível um maior equilíbrio?

Seria quando os corpos deviam ter tido maior possibilidade de andar na natureza, de desenvolver a imunidade. 

Mesmo nos picos pandémicos?

Alguém perguntou se o facto de estarmos demasiadamente confinados não teve um contributo para o aumento da mortalidade? A evidência científica é muito controversa. Hoje há uma produção científica extraordinariamente contraditória. Não conhecemos muitas facetas do vírus e ainda não conhecemos muitas facetas da pandemia. Agora não há risco zero e o risco não é só físico, é social, mental. A partir do momento em que confinamos o corpo no espaço, tínhamos de ter desbloqueado outros aspetos, incentivado outras práticas, mesmo que em casa e transmitido essa mensagem. Mesma na fase mais grave desta pandemia ninguém proibiu as pessoas de sair a rua, mas houve famílias que interpretaram que era proibido sair fora de casa. Tenho crianças no meu prédio que não vejo há dois meses. Estão sentadas no sofá. Temos de ter um plano estratégico equilibrado que contemple as diferentes dimensões da nossa existência. Percebo os estados de emergência sucessivos, mas é preciso que haja uma discussão do equilíbrio entre o mal que estamos a fazer ao corpo e o que vamos pagar em doenças que vão aparecer e os objetivos que traçamos, o compromisso que se pretende.

Essa discussão ainda vem a tempo?

Estou convencido que isto não vai parar tão cedo. Este vírus sabe fintar. E acho que sistematicamente não devíamos estar a fugir e estar escondidos mas expormo-nos com um corpo forte. Não houve suficiente diálogo entre pessoas da saúde e de outras áreas, da sociologia, psiquiatria, das artes, cultura. Não houve.

Uma discussão cívica?

Cívica e científica sobre imunidade, sobre impactos. Claro que as vacinas virão resolver muitos problemas, mas continuamos a viver um momento de grande incerteza, a que segue a revolução digital. O que pensam as pessoas da filosofia disto, as pessoas das artes? Precisamos de repensar as cidades, ajudar as pessoas a ultrapassar a tristeza corporal e existencial em que estão. Estamos numa sociedade sedentária, com aversão ao risco, com menos autonomia das crianças, com sobreproteção dos adultos, com um défice de contacto com a natureza, com políticas urbanas pouco corajosas, iliteracia motora, menor intensidade do esforço, uma postura degradada, uma menor autoestima e confiança, pior capacidade de tomar decisões e menos prazer em existir corporalmente. E no meio disto a escola devia ser uma oportunidade para criar resiliência, reconhecendo que temos um corpo complexo, que é frágil e tem menos capacidades que outros animais, que precisa de mecanismos de sobrevivência, de cooperação e de confiança. Somos um animal humanizado.

Um animal domesticado?

Que ao longo da evolução perdeu qualidades animais. Os nossos olhos veem mas veem pouco. Os ouvidos ouvem mas ouvem pouco. O cérebro pensa mas pensa muitas vezes errado, porque aprende sob pressão. Mas o corpo fala e fala antes da linguagem verbal. É necessário que de olhos fechados sejamos capazes de ver outras realidades internas e externas. E coisas simples: temos de ensinar as crianças a saber respirar, que é a primeira condição de aprender. Hoje uma das situações desesperantes nas escolas é que os corpos estão sentados e não sabem respirar. 

Não sabem respirar?

Temos uma respiração descontrolada, ansiosa. Não há consciência da postura, do equilíbrio de uma respiração lenta e pausada. Numa sociedade exausta em que o tempo é vivido à pressa, esquecemo-nos de respirar. É preciso que na escola se aprenda a habitar o corpo para descobrir e enfrentar outras realidades. Mas isso implica mudar as escolas. O betão roubou o espaço dos outros desafios, houve uma sofisticação das escolas contraproducente. Agora com a pandemia nem recreio normal há. A alimentação, o sono é fundamental e acontecem coisas incríveis, crianças que ficam com os ipads ligados até às 2h, 3h da manhã sem os pais saberem. A escola a partir do 2.º ciclo é promotora do sedentarismo, os tempos de atividade física são curtos. As crianças saem das salas de aula e vão para o recreio onde ficam sentadas agarradas ao telemóvel, agora a dois metros de distância umas das outras.

Houve países onde se proibiram telemóveis nas escolas. É por aí?

Não gosto de proibições, tem de haver regras discutidas e participadas, em que todos percebam o sentido. Mas qualquer dia o que temos nas escolas se calhar são cartazes a dizer que é proibido correr. Perseguir, ser perseguido e lutar, é uma forma de civilizar o corpo. É um comportamento ancestral. Somos caçadores recoletores, está no nosso ADN. As crianças mesmo aos 3, 4 anos, se as puser livremente, o que fazem? Correm umas atrás das outras. Gostam de apanhar o outro, não gostam de ser apanhadas, tal como fazíamos há milhares de anos. Brincar, correr, é aprender a sobreviver. 
Para um professor que nunca quis ficar sentado, viver o último ano de ensino essencialmente à distância foi doloroso?
No Ensino Superior não é tão difícil, conseguimos dialogar, criar desafios interessantes. Com as crianças é muito difícil. Até à puberdade o ensino à distância é um faz de conta. As crianças não têm foco, mexer o corpo é essencial. No desenvolvimento humano o momento em que há mais necessidade de expandir energia é pelos 5, 6 anos, 7 anos. E vemos o que tem feito esta sociedade: as crianças tornam-se hiperativas por não serem ativas. O que custa mais é sentir que as crianças hoje estão impedidas de viver a infância de forma plena.

Que sonhos tinha quando se foi inscrever com 18 anos na Escola de Educação Física de Lisboa?

O meu pai queria que eu fosse economista, para tratar da contabilidade do armazém. Concorri ao que é hoje o ISEG e fiz de propósito para chumbar. Na semana seguinte fui fazer o exame na Escola de Educação Física, na Cruz Quebrada. Tinha chegado a Lisboa com 500 escudos, nem sabia o que era um elétrico. O meu pai não me pôde acompanhar, vim com um colega. Fomos do Rossio à Cruz Quebrada a pé.

Onde ficaria toda a carreira.

Sim. Entrei primeiro no curso de instrutor física, que era um curso de dois anos, que existia em paralelo com o curso de quatro anos do Instituto Nacional de Educação Física (INEF). Na altura nem havia carreira de professor, os professores de ginástica eram como os professores de religião. Quando acabei o primeiro curso fiz um estágio de dois anos na Escola de Música Santa Cecília e percebi que a minha vocação era trabalhar com crianças. A parti daí comecei a trabalhar no Externato a Torre, que depois do 25 de Abril passa a cooperativa e onde estou até hoje. Conseguimos desenvolver modelos alternativos de aprendizagem, a partir do movimento da escola moderna de Freinet e fomos continuando.

Uma coisa diferente que façam hoje?

Por exemplo, com a introdução da Filosofia a partir dos 5, 6 anos. É essencial para as crianças aprenderem a pensar, tal como as artes, a música ou o desporto.

As escolas de música têm bons resultados nos rankings. Isso chamou-lhe a atenção?

Lá está o estereótipo. E ninguém quer saber de como se toca bem violino lá? As crianças precisam de experiências diferenciadas, de todas essas experiências. 

Queria ser professor de educação física, era esse o plano?

Tinha jogado futebol, estive para ir para a Académica mas sim queria ser professor, era algo natural em quem gostava de desporto. Depois do curso de instrutor tive a sorte de termos um ministro da Educação, Veiga Simão, que permitiu que todos os alunos do ensino superior não universitário podiam passar para o ensino superior. Fiz os quatro anos no Instituto Nacional de Educação Física (INEF). E depois fizemos uma revolução interna, criámos uma escola nova, o Instituto Superior de Educação Física. Depois, integrámo-nos na Universidade Técnica de Lisboa, mais tarde formámos a Faculdade de Motricidade Humana (FMH), que hoje está integrada na Universidade de Lisboa, que nasceu quando eu era presidente da FMH entre 2010 e 2014. Na maior crise que o pais viveu, juntámos a Clássica e a Técnica e hoje somos a maior universidade do país, a segunda maior universidade de língua portuguesa, só depois da Universidade de São Paulo. Tive muitas conquistas. E acho que é o que sente a minha geração, construímos um país democrático, construímos uma universidade, construímos uma área técnica. E por ter sido um enorme prazer construir um país democrático, é ainda maior este pesadelo de passar de uma sociedade do cansaço para uma sociedade de depressão porque o corpo atinge limites. E estamos a escravizar-nos e a matarmo-nos sem isso ser uma exigência ditatorial, fizeram-nos isso indiretamente. Temos de fazer outra revolução, que passa pela autodescoberta de que estamos no caminho errado. Precisamos de um corpo saudável, em maior equilíbrio com o planeta.

O que gostava que lhe tivessem dito aos 17/18 anos? 

Esse foi um tempo de descobertas. As descobertas de um adolescente tardio, a querer perceber a relação com os outros, a sexualidade. Havia uma fome de sabedoria. Para além das aulas, corria as livrarias todas de Lisboa. Havia a Livraria 111, no Campo Grande, que tinha uma estante onde íamos comprar livros proibidos. Cheguei a ir num Fiat 600 ao boulevard de Saint Michel só para comprar livros. Na semana seguinte foi a inveja dos professores.

Que livros?

Do Ato ao Pensamento, de Henri Wallon, a Dialética da Natureza de Engels, mas principalmente livros de psiquiatria, de psicanálise.

O que procurava?

Queria perceber a relação com o corpo, a sexualidade. Tinha tido uma depressão aos 13, 14 anos de idade. Os meus pais eram oriundos de uma classe social muito baixa. Não havia livros, não havia acesso ao conhecimento. O livro que eu tinha em casa era a Bíblia. Fora isso, havia o Século e o Tio Patinhas. Devorei a Bíblia e de forma completamente obsessiva, literal. Quando cheguei ao Apocalipse caí. Era uma linguagem simbólica e não tinha pais que me ajudassem, professores que me ajudassem a descodificar aquilo. Fiquei com uma crise enorme, com um diagnóstico de neurose obsessiva com princípio de esquizofrenia. Quando vim para Lisboa ainda fazia alguma medicação, mas comecei a mergulhar na psicanálise. Na última consulta que tive com o psiquiatra levei cartolinas a esquematizar a doença, os autores que tinha lido, o que tinha de fazer. Disse-me que era o pior que um doente podia fazer, ter consciência da sua doença. Foi a última consulta, mas disse-me que ia levar as minhas cartolinas para mostrar aos alunos. Há várias soluções para situações depressivas que não são remédios. E para mim foi importante um conceito que aprendi com Jung que era o recalcamento. Vem um sentimento negativo e tento pôr um positivo. Consegui construir uma nova pessoa. Até aí tinha sido uma pessoa frágil. Consegui ir-me descobrindo nesses anos de faculdade, que foram anos também muito intensos de aprendizagem e movimento estudantil. E fizemos essa revolução: passámos a falar de outro corpo. Um corpo que já não é só músculo e órgãos, aquele corpo da ginástica sueca, mas um corpo que é sensível, que sente, que explora. Depois estudei antropologia e psicologia em desenvolvimento, comecei a estudar o jogo. Fundámos depois o Instituto de Apoio à Criança, com a Manuela Eanes, na altura já com a preocupação também de promover o brincar. A única experiência política que tive foi com o PRD, porque o Ramalho Eanes era um homem de referência. Nunca mais tive afinidade com nenhum partido, nunca me quis filiar politicamente e acho que um professor universitário não o deve fazer porque tem de ser imparcial. E uma coisa que percebi sempre na minha vida académica foi que focar-me só num conhecimento pode ser uma fuga para mim próprio. Percebi que não podia fazer só o trajeto da especialização científica. Tinha de fazer um trajeto em que o conhecimento científico me ajuda a conhecer a mim próprio, contribui na sociedade. E isso foi fantástico.

E continua a ter fome?

Sim. É uma das coisas que sinto hoje. Os alunos chegam à faculdade sem fome nenhuma. Não fazem perguntas, querem um diploma. É como se o objetivo da escola acabasse naquele primeiro ano, o que por um lado não acho mal porque ao menos estão três anos a divertirem-se e a descobrirem-se. Mas também vejo de certo modo na comunidade de professores universitários um grande nível de formação científica mas uma falta de fome de conhecimento, de cultura. O conhecimento científico tornou-se demasiadamente técnico, especializado e pouco amigo de uma autoformação centrada nos valores do mundo, da sociedade e este é um desafio que se coloca também nesta área do estudo do corpo. Hoje estamos mais adiantados a perceber um corpo que não se divide por partes, em que os sentimentos e emoções são o elo de ligação entre físico e mental. Se acrescentarmos a cultura digital teremos um homem, um atleta, um artista, um cidadão biónico e quando isso acontecer caem os princípios éticos e morais que alicerçam esta sociedade e por isso é importante começarmos a pensar nisso. Estamos numa fase de evolução ainda muito primitiva. Temos muitos anos para caminhar e para nos tornarmos seres muito mais inteligentes, com corpos diferentes, se calhar estaremos noutros planetas. Como agora estamos em Marte mas ainda assim morrem milhares à fome no nosso planeta.

Já pensou no que vai dizer na sua última aula?

Estou a pensar. Provavelmente será sobre perspetivas futuras sobre jogo e motricidade na infância mas quero avançar com teses novas e algumas dimensões mais ousadas.

Quais?

Como perceber porque é que no jogo, no brincar, atividade física, uma das vertentes mais subtis que existem para perceber o fenómeno do prazer que nos dão essas atividades é um prolongamento dos orifícios do corpo como zonas erógenas. Se observar o desporto, as brincadeiras das crianças, todas gostam de orifícios. Pôr bolas em orifícios, pôr objetos em orifícios. Há uma atração fatal por tudo o que é orifício. Todos os anos, tirando estes, costumo levar os alunos dos 3 aos 10 anos da cooperativa à faculdade. Quando encontro estes antigos alunos, e já vou na terceira geração, e lhes pergunto qual é o momento que mais recordam, respondem-me que foi o fosso. É uma piscina de esponjas que temos na faculdade para amparar os ginastas que trabalham nas argolas, nos trapézios. Aquilo que mais marca os miúdos é saltarem para o fosso.

Daí o perigo sempre à espreita.

Os miúdos têm um atração fatal pelo orifício. E mesmo quando andam à volta, é aquela vertigem da queda. Vimos de um orifício e vamos para um orifício. Quanto se salta de paraquedas cai-se um grande orifício. É uma sensação interior de abandono aos deuses.

Crianças privadas dessas sensações…

Ficam secas. E é por isso é que é preciso muito tempo para brincar, brincar na natureza, lutar com almofadas, brincar na cozinha, usar facas, pregar pregos, saltar em camas elásticas. Para as crianças mais pequeninas, o brincar fundamental é o brincar com a gravidade. Como se mete o corpo de pé sem cair. Caem muitas vezes para se porem de pé. E a vida é isso: cair muitas vezes para se pôr de pé. Há uma falta de consciência social, política, educativa e ao nível da saúde de como mexer o corpo é, em vários planos, essencial. As crianças precisam urgentemente de se pendurar nas árvores de cabeça para baixo para ver o mundo de baixo para cima. Isso é essencial, desconstruir a perspetiva, sentir a gravidade. E isso hoje não se faz porque “ai ai ai o menino vai cair”.

Os próprios miúdos dizem “mãe, não vou fazer isso porque é perigoso”.

Sim. Gosto muito de um pensamento de um grande cineasta americano, Woody Allen. “Na minha próxima vida, quero viver de trás para a frente. Começar morto, para despachar logo o assunto. Depois, acordar num lar de idosos e ir-me sentindo melhor a cada dia que passa. Ser expulso porque estou demasiado saudável, ir receber a reforma e começar a trabalhar, recebendo logo um relógio de ouro no primeiro dia. Trabalhar 40 anos, cada vez mais desenvolto e saudável, até ser jovem o suficiente para entrar na faculdade, embebedar-me diariamente e ser bastante promíscuo. E depois, estar pronto para o secundário e para o primário, antes de me tornar criança e só brincar, sem responsabilidades. Aí torno-me um bebé inocente até nascer. Por fim, passo nove meses a flutuar num ‘spa’ de luxo, com aquecimento central, serviço de quarto à disposição e com um espaço maior por cada dia que passa, e depois – “Voilà!” – desapareço num orgasmo.” E este é o meu pensamento. O caminho que fazemos desde que nascemos até à morte, é uma peripécia, uma caminhada longa cheia de coisas positivas e negativas. Um equilíbrio entre sagrado e profano, porque o corpo tem hábitos de diferentes tipos.

Fuma.

Nunca consegui deixar, obviamente que faz mal, mas provavelmente é o único vício que tenho. O meu objetivo foi interrogar-me todos os dias na perspetiva de ganhar mais humildade em relação ao conhecimento. E chegando aos 70 anos, e volto ao princípio da conversa, tenho um sentimento de curiosidade do que é a morte mas de certo modo há muitos anos que me venho preparando para a morte como forma de libertação. Não me mete medo. O risco que já corri pelo meu corpo deu-me motivos para pensar que vai ser suave, vivida numa transição e que vou encontrar um mundo novo. E depois talvez haja condições de decidir que pode ser diferente.

É crente?

Desde pequeno sou cristão. E independentemente da religião, fiz sempre uma tentativa de me compreender e de me aperfeiçoar espiritualmente. Podemos fazer várias caminhadas, de aperfeiçoamento científico, profissional, académico, familiar mas também é preciso que nos possamos aperfeiçoar como cidadãos e a nível espiritual. E acho que a escola do futuro tem de agarrar essas componentes esquecidas do currículo, ensinar a aprender com o outro de forma humilde. 

Conselho aos pais neste regresso?

Reinventarem-se com o que aprenderam, porque ganharam consciência de que as escolas são fantásticas e que ser pai ou ser mãe é mais difícil. Reaprenderam que as crianças precisam de colo, de carinho mas também precisam de distância. Precisam das duas coisas. Com dizia um dos meus professores, é um vai e vem.