Para o economista não há dúvidas: “Não há almoços grátis” e as pessoas que perderam com a crise têm de ser compensadas – “Quando queremos mandar as pessoas para casa isso tem custos e esses custos já existem. Só que só estão a ser totalmente suportados por um conjunto de pessoas”. Para mostrar que nem todos perderam rendimento, cita o aumento dos depósitos. Luís Aguiar-Conraria admite que também houve negócios que ganharam com a pandemia, mas garante que não devem ser “demonizados” e dá o exemplo das farmacêuticas, fábricas de álcool gel, atividades assentes nas vendas online, entre outras. Lamenta o atual estado do ensino, que considera que deveria ser visto como prioridade, e diz que a falta de dinheiro não pode ser usada como justificação, uma vez que o PRR poderia ser usado para esta área.
Acaba de lançar o livro A culpa vive solteira. Como surgiu a ideia deste título e em que é que se baseou para lhe dar esse título?
O livro dá um panorama muito correto, digo eu, da forma como vejo a economia, a ciência económica e a forma como os economistas devem olhar para o mundo. O título surgiu numa situação engraçada. Estava a ir para um programa da Rádio Renascença para discutir uns escândalos relacionados com os prejuízos da Caixa Geral de Depósitos, que tinham sido divulgados no dia anterior, um colega meu apanhou-me a caminho e pede-me para dizer que ‘em Portugal, a culpa não morre solteira, em Portugal a culpa vive solteira’ e é a conclusão que se pode tirar da Caixa Geral de Depósitos. Achei que era muito bem apanhado e, na altura, acabei por usar esse título num artigo de opinião, porque achei que captava bem um dos problemas que Portugal tem, que é o da desresponsabilização, e estamos constantemente a ver isso. O caso EDP é o último caso, onde, se calhar, mais uma vez, a culpa vai ser do contabilista.
Aí estamos perante alterações que foram feitas à lei e a EDP aproveitou ‘boleia’…
É uma grande coincidência. Aliás, é uma série de coincidências, porque não é só uma. Há várias mudanças que foram ocorrendo desde 2005 e que culminam com uma alteração às regras do Imposto do Selo em 2019 e que permitem à EDP fazer isso. Realmente, são tantas as coincidências necessárias para chegarmos a este ponto que é impossível responsabilizar alguém diretamente, mas fica a ideia de que a EDP é que manda nisto tudo.
Em relação à desresponsabilização, aconteceu o mesmo na banca…
Pegando agora no caso do Novo Banco, ainda esta sexta-feira foram anunciados os prejuízos e, vamos ter, mais uma vez, de transferir 600 milhões de euros e isto tudo com base num contrato que não é conhecido. O contrato ainda não é público. É dito a todos os portugueses que temos de pagar esta transferência, que a responsabilidade é nossa e que isso tem implicações no Orçamento de Estado, mas a verdade é que os portugueses não tiveram direito sequer a ler o contrato e, como tal, não podem avaliar de quem é a responsabilidade. Não podem chegar à conclusão se foi um contrato mal feito ou se tinha mesmo de ser assim.
Nem sequer temos os mínimos meios de escrutínio – neste caso, era fácil. O contrato teria de ser público e não é. Já tentei saber mas não consegui. Lembro-me de, a uma certa altura, ter escrito um artigo sobre o assunto e recebi vários emails de pessoas a chamarem-me de ignorante e de escrever coisas sem saber, alegando que era isso que estava no contrato e, por isso, teríamos de pagar. Nessa altura, até assumi a minha culpa ao reconhecer que não tinha lido o contrato. No entanto, questionei onde é que estaria para o conseguir ler. De repente, comecei a aperceber-me de que ninguém me conseguia dar o contrato.
Cheguei a contactar deputados a pedir essa informação e não a consegui obter. Essa informação não é pública. E uma das pessoas que negociou o contrato, que é o anterior ministro das Finanças, está neste momento ao leme do Banco de Portugal, que supostamente é o regulador e supervisor da área e deve exercer algum tipo de controlo. A forma como tudo isto funciona em circuito fechado prova que a culpa tem de viver solteira.
A ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal foi alvo de fortes críticas…
Sobre isso escrevi tantas vezes que até cheguei a ter medo que Mário Centeno se chateasse comigo (risos).
E chateou-se?
Não. Tive a confirmação mais tarde que não. O Banco Central há uns meses iniciou um processo de consulta pública sobre a revisão das políticas monetárias para a próxima década e o banco central português organizou um evento e Mário Centeno convidou-me para fazer a intervenção inicial num painel de académicos, onde estivemos a discutir isso.
Não houve então represálias?
Posso garantir que não houve qualquer má vontade criada por isso.
Diz no início do livro que a ciência económica pode ter uma visão cínica da sociedade e associa essa situação à altura das eleições autárquicas. O que quer dizer com isso?
O meu ponto de partida, na grande maioria das análises que faço, é admitir que as pessoas estão preocupadas consigo mesmas. É aquilo que chamamos em jargão económico de maximizar o seu bem-estar individual. Claro que depois temos aquelas ideias de Adam Smith, que nos diz que as pessoas preocupadas consigo mesmas acabam por gerar um ótimo social.
Mas, partindo do princípio de que as pessoas estão a maximizar a sua oportunidade e não propriamente preocupadas em melhorar o bem-estar de todos, leva-nos necessariamente a uma visão cínica, em que olhamos para os programas dos partidos e pensamos que estes estão simplesmente a maximizar o seu sucesso eleitoral, nesse caso, aplicado às autárquicas.
E olhando para os investimentos que são feitos pelos autarcas percebe-se que muitos desses investimentos são feitos precisamente para ganhar as eleições e não propriamente a investir naquilo que é mais necessário. Uma vez até discuti isso com uma série de autarcas e a culpa não é só deles. A culpa é dos “políticos”, mas também dos eleitores, porque os eleitores premeiam estes comportamentos.
Lembro-me de uma vez de ter dado um seminário com alguns autarcas que me deram vários exemplos: de um tipo de uma autarquia que tinha apostado como grande projeto para o seu mandato terminar o saneamento básico em todo o concelho; claro que isso implicaria construir esgotos e coisas assim para aqueles 10% da população mais longínqua do concelho; mas, como isso não dava votos, acabou por perder as eleições. E quem fazia piscinas e rotundas é que acabava por ser eleito.
Como estamos em ano de eleições, essa ideia volta a ser tentadora…
Sim, mas nesse aspeto há um outro dado que é muito interessante e que tem a ver com um índice que foi criado pela Associação de Transparência relacionado com o nível de transparência das autarquias. Basicamente, faz um ranking das autarquias que são mais transparentes em relação às suas decisões e à aplicação dos fundos que fazem, o resultado a que chegamos é muito engraçado e foi publicado numa revista científica e foi precisamente que é as autarquias mais transparentes que as pessoas premeiam menos – aliás, nem sequer chegam a premiar estes comportamentos mais lesivos, mais eleitoralistas por parte dos autarcas.
Se calhar, naquela autarquia onde o presidente da câmara decidiu que queria terminar o saneamento básico em todo o concelho, se calhar, se a autarquia fosse mais transparente e se fosse mais claro para os munícipes a forma como estava a investir o dinheiro, se calhar teria sido premiado, em vez de ter sido penalizado.
Também tem abordado questões como viver acima das possibilidades. Um tema que esteve muito em cima da mesa na altura da troika…
O que pretendo é desmistificar um pouco essa ideia. É evidente que vivemos acima das nossas possibilidades no sentido de que gastávamos mais do produzíamos e, portanto, as nossas dívidas externas iam-se acumulando e os nossos défices externos estavam sempre presentes. Nesse sentido, matematicamente, vivemos acima das possibilidades. Mas o alerta era para dizer que as famílias não viveram acima das possibilidades, era mais uma questão relacionada com o Estado e com as empresas, do que propriamente com os portugueses, em geral.
Acabar com a ideia do ex-presidente do Eurogrupo que dizia que os portugueses gastavam o dinheiro todo gastar em álcool e em mulheres?
Exatamente, quis tirar a carga moral disso. Foi uma espécie de resposta às declarações do holandês Jeroen Dijsselbloem. A carga moral dessa ideia que gastávamos o dinheiro em mulheres e vinhos, além de machista, era completamente desajustada e não fazia sentido nenhum. As famílias sempre viveram dentro das suas possibilidades e agora com a pandemia – ainda nos faltam dados para termos a certeza absoluta – tenho ideia de que esta não é uma crise que possa ser comparável com mais nada que se tenha passado nos últimos tempos. Acho tudo isto uma situação tão excecional e as pessoas nem sequer podem gastar o dinheiro, sem falar que há muita gente a viver muito mal. Seria muito mau gosto usar esses termos no momento atual.
E por estar muita gente a viver muito mal faz sentido o Presidente da República ter promulgado os três diplomas relativos a apoios sociais? Era inevitável?
Não conheço esses diplomas em detalhe. Dos três, um deles pareceu-me que era mais ou menos óbvio, porque estava relacionado com os apoios dados aos sócios-gerentes das pequenas empresas. Nessa situação, claramente concordo com o Presidente da República. Mas diria que, de uma forma geral, em Portugal temos apoiado pouco quem perde muito com a pandemia. Acho que devíamos estar a correr mais riscos, devíamos assumir um défice maior ou, se não querem assumir um défice maior, então aumentar os impostos sobre quem não foi prejudicado com a pandemia. Sem dúvida que devíamos estar a apoiar mais.
Várias associações e entidades patronais têm criticado o Governo sobre a falta de apoios e de estes chegarem tarde…
Isso é transversal da restauração aos cabeleiros, que, agora, já puderam reabrir, mas têm de continuar a pagar as rendas como pagavam antes e os apoios demoram a chegar. Quer dizer, criam apoios de emergência e dois meses depois ainda não foram distribuídos? Então o que é isto? Acho que coletivamente falhámos no apoio que era necessário dar. Tínhamos de fazer uma opção: ou não confinamos e assumimos esse risco ou se confinamos temos de apoiar quem é prejudicado.
Mas quando fala em aumento de impostos iria criar uma “guerra”, já que nem todos os portugueses estão disponíveis para isso…
Pelo menos é preciso trazer essa questão para cima da mesa para as pessoas perceberem que não há almoços grátis, como se costuma dizer. Quando queremos mandar as pessoas para casa isso tem custos e esses custos, neste momento, já existem. Só que só estão a ser totalmente suportados por um conjunto de pessoas. No outro dia vi um inquérito em que cerca de metade das pessoas não perderam rendimento nenhum. É o meu caso.
Um quarto perdeu entre 10 a 15% do rendimento e depois há um outro quarto que perdeu bastante. Acho muito importante que as pessoas percebam que, se querem mandar as outras pessoas para casa, têm de estar disponíveis para lhes pagar, têm de sofrer – no bom sentido da palavra – no sentido das consequências daquilo que pretendem. Ou eu defendo que não há confinamento e assume-se o risco de termos centenas de mortes – como já tivemos em janeiro – e corremos o risco de ter uma pandemia descontrolada ou, se defendo que se fechem uma série de atividades e se estou a pedir aquelas pessoas para se sacrificarem em meu nome e dos meus pais, tenho de estar disponível para lhes pagar. Caso contrário estou a ser hipócrita.
E a solução não poderia passar por aumentar o défice?
Mas isso desresponsabiliza as pessoas. E aqui os meus argumentos já não são económicos. Podemos fazer isso, mas nesse caso desresponsabilizamos as pessoas, porque estas, muitas vezes, não têm consciência de que défices são mais impostos no futuro. Défice não é antónimo de não haver imposto. O défice é simplesmente um imposto adiado.
Significa empurrar o problema com a barriga?
O problema é que as pessoas atuam como se aquilo que defendem não tivesse consequências, mas tem. Se calhar a solução passaria por uma combinação das duas coisas. Não tem de ser uma coisa ou outra. Posso aumentar ligeiramente os impostos e aumentar o défice, pode haver uma combinação das duas coisas.
Mas a carga fiscal tem vindo a disparar. Os últimos dados do INE apontam para um peso de 34,8% do PIB em 2020…
Durante o ano que passou não me parece que isso fosse problema, porque quem não perdeu os rendimentos, na verdade, acabou por poupar dinheiro. Se olharmos para os dados do Banco de Portugal vemos, por exemplo, que os depósitos bancários aumentaram imenso. E aumentaram porque as pessoas não tinham onde gastar o dinheiro. Quantas vezes deixou de ir ao restaurante ao longo dos últimos meses? Imagine o dinheiro que poupou com isso. O que me parece é que quando olhamos para este ano – e esperamos que a crise esteja a acabar – o argumento dos estímulos económicos não faz muito sentido. Não estamos numa situação de estímulos económicos, estamos é a discutir a questão da Segurança Social, em que é preciso apoiar as pessoas para não ficarem na miséria.
Os estímulos económicos são políticas que são usadas para estimular a atividade económica. Ora, durante este ano, o que estivemos a impedir foi precisamente que a atividade económica funcionasse. O que quisemos foi que as pessoas ficassem em casa fechadas, sem consumir e muitas empresas sem funcionar. Isto é o contrário de estimular a economia, não faz sentido estar a ter como política principal de combate à pandemia não deixar as pessoas trabalhar e as empresas laborar e depois simultaneamente dizer que a economia precisa de estímulos económicos, não faz sentido. Estamos numa situação de surviving boat e a ação do Estado era sobre isso que devia atuar.
Se calhar daqui a três meses, quatro meses, diria que a partir do verão é que faz sentido estarmos a discutir os estímulos da atividade económica. Estou otimista em relação aos próximos meses porque acho que vacinando os grupos de risco as pessoas vão relaxar, depois também vem o verão e em setembro já estaremos grande parte de nós vacinados.
Em relação às previsões do Banco de Portugal? O banco central manteve a meta de crescimento de 3,9% em 2021. Acha que são previsões otimistas?
Não me parece demasiado otimista, mas não consigo fazer previsões. Se errarem completamente, acho que estão desculpados. O que o Banco de Portugal está a prever é que chegamos ao fim do ano tendo metade da recessão de 2020 corrigida, isto não me parece que seja ser muito otimista.
Muito impulsionado para o aumento do consumo, quer empresarial, quer das famílias..
Esse é outro lado. Como as pessoas não gastaram dinheiro – quer dizer, falamos um pouco genericamente e acabamos por cometer injustiças em relação a algumas pessoas – e houve tantas pessoas que puderam acumular algumas poupanças durante esta altura, se calhar, quando isto tudo abrir vão gastar. É aquilo que se chama o revenge consumption, ou seja, o consumo de vingança. Eu estou com uma vontade enorme de viajar.
E ir a um restaurante ou a uma esplanada?
Estou mais desejoso de ir viajar, de ir ao cinema e de ir ao futebol, além de querer ver a cara dos meus alunos ao vivo. São, neste momento, as quatro coisas de que sinto mesmo falta.
Em relação aos salários mínimos, tem dito que o problema não é o mínimo mas o médio. Disse ainda que acha que o salário mínimo só gera desemprego…
Isso tem alguma história. Quando a ‘geringonça’, logo no fim de 2015/2016, previa numa parte do programa um aumento bastante substancial do salário mínimo, escrevi dois ou três artigos a alertar para os perigos de aumentar o salário mínimo, argumentando que estes aumentos podiam ter como efeito perverso o aumento do desemprego. Há um indicador para o qual se costuma olhar que dava más indicações para Portugal, que é a relação entre o salário mínimo e o salário mediano. Em Portugal, a relação entre salário mínimo e mediano é cerca de 65%. Isto é, o salário mínimo é cerca de 65% do mediano.
É um valor muito alto e geralmente é um dos indicadores que alertam os economistas para dizer ‘olha, cuidado que se aumentarem mais o salário mínimo, o desemprego aumenta’. Mas não aconteceu isto. Nos anos a seguir, como todos sabemos, o desemprego desceu e continuou a descer e descer a um ritmo inesperadamente rápido. A única conclusão que posso tirar daí é que a minha análise estava errada ou que, pelo menos, o raciocínio que tinha feito para Portugal não se aplicava. Então, usando o mesmo indicador, que é a relação entre salário mínimo e salário médio, a verdade é que ele era muito alto para Portugal mas então, se calhar, o problema não era o salário mínimo ser alto mas sim o salário médio ser baixo.
Começo a ver alguma literatura económica sobre o assunto e começo também a ver que tem havido alguns estudos que foram feitos para Portugal e, de facto, há alguns trabalhos que mostram que muitas vezes as empresas pagam abaixo da produtividade. Aquilo que nós chamamos poder de monopsónio (é uma forma de mercado com apenas um comprador). É a mesma coisa que o poder de monopólio só ser aplicado ao mercado de trabalho do lado do comprador, digamos assim.
São as empresas que contratam, pois é a empresa que tem o poder de contratar e esse poder pode traduzir-se em salários artificialmente baixos. Foi por aí que fui para concluir que realmente isso se pode passar em Portugal. É muito provável que estejamos numa situação em que os nossos salários são mais baixos do que deviam ser.
Ou seja, o problema não era o salário mínimo ser muito alto, mas sim o salário médio ser demasiado baixo. E, numa situação dessas, o aumento do salário mínimo até pode ser benéfico para o emprego. Isso já seria uma discussão mais técnica. Os salários mínimos vão tendo sempre atualizações anuais desde que este Governo tomou posse. E o médio nem tanto e isso acaba por criar uma diferença muito ténue. Vai empurrando os outros salários. Mas claro que, neste momento, a percentagem de pessoas que têm o salário mínimo em Portugal é enorme, 20 e tal por cento. São indicadores que, em princípio, nos assustariam.
E a bazuca? Poderá impulsionar o crescimento económico?
Sou um pessimista em relação a isso. Começou-se a falar da bazuca europeia no ano passado, estamos nisto há mais de um ano. Estamos quase em abril, a pandemia começou em março do ano passado, altura do nosso primeiro lockdown e a ideia inicial da bazuca era criar apoios de emergência. As empresas tinham de fechar, as pessoas tinham de ficar em casa e era preciso dinheiro para apoiar e algum dinheiro foi libertado. Ora, o que estamos a ver é que isso não aconteceu.
Os apoios que foram dados não foram com a bazuca europeia. Foram quase todos dados pelos Governos nacionais. Por isso é que Portugal deu muito menos apoio do que os governos de outros países que tinham a dívida pública mais baixa e, portanto, podiam apoiar mais. A bazuca europeia não apareceu para uma situação de emergência e só vai aparecer a sério em 2022 e daí para a frente. Mas o que é certo é que daí para a frente já não há emergência nenhuma. O que há são economias em dificuldades como já temos tido no passado e empresas endividadas e por aí fora.
A verba já deveria ter sido disponibilizada no início deste ano ou até mais cedo?
Até devia ter sido antes, mas não foi. A bazuca europeia, na verdade, tornou-se mais um programa de política industrial da União Europeia como muitos outros que já existiram. Estamos agora a sair do Quadro Comunitário Portugal 2020. Penso que os apoios para a economia portuguesa eram de 20 e tal mil milhões de euros. Não era muito menos do que esses que vamos ter agora nos próximos anos.
E, ainda assim, a verba não foi usada toda…
Porque é tanto dinheiro que é difícil usar. Mais uma vez digo, aquilo que era a bazuca de emergência passou a ser um programa industrial de larga escala como outros que já existiram. A minha pergunta é simples: mudou alguma coisa em Portugal, substancial, para acharmos que é desta vez que o programa vai funcionar bem e vai pôr o país a crescer? Por oposição ao que acabou em 2020 ou por oposição ao que acabou no tempo de José Sócrates, ou por oposição aos do tempo de António Guterres? Não vejo motivos para achar que vai ser diferente desta vez. Não houve nenhuma mudança, os partidos são os mesmos, os governantes são os mesmos, a mentalidade burocrática é a mesma… Isto é mais um programa daqueles europeus que vai havendo sempre.
Pelas linhas que se viu do programa de Costa Silva são linhas gerais de investimentos, não fala diretamente de dinheiro para a tesouraria…
E não se fala, por exemplo, de impostos. Já viu que os burocratas europeus estão tão viciados nestes programas que nem sequer põem a hipótese de, em vez de estarem a dar dinheiro para isto ou para aquilo, baixarem os impostos?
É um cenário que nem está em cima da mesa. Nem se coloca, ninguém fala nisto. Parece que é uma coisa, que é uma hipótese completamente abstrusa. Porquê? Baixar os impostos também é um plano de estímulo à economia. O problema é que temos na nossa mentalidade burocrática a ideia de dar subsídios com base em investimentos que serão avaliados pelas CCDR (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional) do Norte, do Centro, etc. que depois serão avaliados por eurocratas e para depois se ir largando o dinheiro às pinguinhas à medida que os objetivos societais são atingidos.
Mas para a bazuca vai ser criado mais um grupo de trabalho… Mais uma burocracia?
Esse grupo até foi proposto pelo Presidente da República, isso parece-me bem.
É para dar confiança?
É. Voltamos à conversa sobre as autarquias. Acredito que, aumentando a transparência, haja melhores condições para aplicar melhor os dinheiros. Acho que, à partida, mais transparência é bom. Se isso vier a ser bem implementado é bom. Mas não vai ser nenhum milagre. Os outros defeitos todos que referi continuam presentes.
Fala muito da pandemia e a desigualdade que existe ainda em pleno século XXI. Esta fase veio mostrar essa realidade mais a nu?
Veio agravar. E ao agravar, claro que torna isso mais visível. Se não houver um bom programa – que não me parece haver, para já – de recuperação a nível das aprendizagens escolares, a tendência é para agravar ainda mais essas desigualdades as próximas décadas. Isto é uma crise que não vai ter consequências só agora, há vários estudos que mostram isso. Há um muito engraçado que estudava o impacto das greves na performance dos alunos décadas depois.
Estamos a falar de greves de vários meses. A verdade é que os alunos que tinham apanhado os professores em greve durante três, quatro, cinco meses, 30 anos depois tinham carreiras profissionais piores do que os outros. Isso estende-se no tempo. Não são todos os prejudicados. Há os que ficam e os que não ficam. Os meus filhos não vão ser prejudicados.
Isso tem a ver com o apoio que é dado e com as condições que têm?
Claro, a desigualdade de partida vai ser agravada. Isso é muito importante. Quando uma pessoa diz que, em média, 30 anos depois, esta geração de pessoas está a ganhar, sei lá, menos 4%. Esta média de 4% é muito enganadora porque metade não perdeu nada, o que quer dizer que a outra metade está em média 8% e não 4%. As desigualdades vão-se agravando.
Acha que o Governo não está muito sensível em relação à questão do ensino?
Acredito que as escolas vão abrir. Em relação a isso, acho que o Governo tentou não fechar as escolas. Mas com os casos a dispararem era impossível não as ter fechado. Se calhar faltou algum arrojo para as abrir mais cedo. Mas as pessoas estavam traumatizadas com o mês de janeiro. Já dou mais ou menos isso como perdido. O que espero é que haja um programa a sério de recuperação a partir do próximo ano.
Aquilo que não houve este ano, depois do desastre que foi com o terceiro período do ano passado, em que os alunos ficaram seis meses sem aulas – a maior parte deles – o que foi proposto foram umas semanas no início do ano letivo para os professores recuperarem o ensino do ano anterior. Isso não é nada. Não foi feito nenhum investimento e não passou tudo de uma fantochada. Quem tem filhos no liceu sabe que nada foi feito. O ano funcionou de forma absolutamente normal.
Quando comparamos com outros países, onde há programas de contratação extraordinária de tutores para apoiar os estudantes que ficaram para trás, onde há grupos pequenos de quatro e cinco alunos para terem apoio extra em relação às aulas e por aí fora. Isto quer dizer que estamos muito para trás, sendo que nós somos dos que temos piores indicadores na educação e, por isso, devíamos ser aqueles que devíamos estar a investir mais.
Por falta de sensibilidade ou de dinheiro? Ou as duas coisas juntas?
Acho que é falta de sensibilidade. Falta de dinheiro não, nem faz sentido. Neste momento estão a ser anunciados enormes investimentos para os próximos anos e, portanto, isto é uma questão de prioridade. É uma questão de desviar parte do dinheiro que está a ser canalizado para outras coisas para ser investido nas escolas e especificamente neste plano de recuperação.
Em alternativa a um comboio de velocidade para o Porto, por exemplo?
Tenho sempre dificuldade em falar nisso, não estou muito por dentro desse assunto. Desconfio um pouco da utilidade disso, mas não conheço os assuntos suficientemente bem para ter opiniões muito fortes. Mas, por exemplo, no caso da Holanda, está a ser anunciado um pacote para os próximos anos de um investimento de 8,5 mil milhões de euros extra para a educação para a recuperação deste dois anos e inclui muita coisa, até a redução de propinas para alguns estudantes. Em Portugal, isso nem sequer é discutido, foi apresentado agora aquele trabalho de uma série de economistas da Universidade Nova -– Susana Peralta, entre outros – e ninguém fala nisso.
As consequências depois estão à vista?
O PRR devia ser para isso.
Acha que o Governo de uma forma geral tem gerido bem esta fase?
Acho a situação tão difícil que me custa criticar o Governo. É daquelas situações em que não tenho certeza nenhuma que outro governo qualquer fizesse melhor. Sou mais crítico em relação às escolas, porque entendo que se devia ter corrido mais riscos e ter-se aberto as escolas mais cedo. Já no passado fui muito crítico por se terem mantido fechadas durante tanto tempo.
Acho que a meio de maio já poderiam ter aberto e, portanto, desse lado acho que têm estado mal. De resto, acho que tem estado mal no sentido de apoiar pouco as pessoas e as empresas. Não me parece que consiga dizer que as medidas são erradas, na minha opinião, acho que às vezes são. Há coisas em concreto que, na minha opinião, são erradas. Mas a minha opinião não conta, quando temos os especialistas de saúde pública a dizer coisas diferentes. Mas por exemplo, aquelas restrições dos horários dos hipermercados em que todas as pessoas tinham de fazer compras ao fim de semana de manhã porque depois estavam fechados, isso pareceu-me uma palermice completa, porque se estava a promover a concentração de pessoas.
Tínhamos todos de ir ao supermercado ao fim de semana à mesma hora e é que claro que os supermercados estavam cheiíssimos. Isto até me parece contraproducente do ponto de vista de saúde pública e contraproducente do ponto de vista económico: mandar as pessoas para casa, andarmos a multar as pessoas que saem à rua, tudo isto parece-me uma palermice. Acho que há uma série de mistificações, agora, sou economista. É perfeitamente razoável que me digam que a minha opinião sobre isto não interessa.
Mas como economista sabe que há sempre alguém que ganha com estas crises?
Há aqui dois tipos: aqueles que não perderam porque têm a sorte de terem empregos que funcionam bem em teletrabalho, que é o meu caso. Quer dizer, não funciona bem em teletrabalho, mas objetivamente em termos de rendimento não perdi nada.
E há aqueles que ganham mesmo. E em relação a estes não os quero demonizar, porque é bom que ganhem. É o caso das farmacêuticas, que obviamente estão a ganhar muito dinheiro com isto. Quando falamos de empresas de sabonetes porque andávamos todos a lavar as mãos até ficarmos com as mãos secas. As empresas que produzem álcool gel. É claro que essas empresas ganharam muito dinheiro. As empresas de serviços online também. A Uber ganhou muito dinheiro. Ou seja, todo este tipo de empresas claro que ganhou muito, mas ainda bem, porque foram eles que nos permitiam passar por esta crise com mais suavidade. Se não tivesse sido inventada a vacina, como é que estaríamos agora? Estaríamos complemente desesperados.
Portanto, ganharam e se for necessário pagar a crise e pagar os impostos, espero que paguem o correspondente, isto é, que paguem mais correspondente ao facto de terem ganho mais. Mas de forma alguma gostaria que isso fosse visto como uma penalização ou como uma diabolização dessas empresas. Não é de forma alguma, elas fizeram o que têm de fazer, que é ajustarem-se.