Popeye, um vencedor do último século

Popeye, um vencedor do último século


Popeye, que na sua divertida crueza dir-se-ia precursor de um tom underground, é todo ele uma deformidade, do corpo à fala, excepto no carácter


Os anos fizeram com que raras personagens centenárias, ou quase, tenham caído nos esquecimento; e talvez apenas uma possa ter um reconhecimento planetário. Vejamos: de finais do século XIX a até à década de 1920, os dedos de uma mão chegam para contar as séries ainda hoje susceptíveis de interessar a um público mais vasto: Os Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks (1897), enquanto houver rapazes endiabrados; Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay (1905) e Krazy Kat, de George Herriman (1909), continuam a alcançar leitores fervorosos, embora com critérios mais apertados. Os anos dez são um deserto, deste ponto de vista; nem mesmo o Panfúcio de Bringing Up Father, de George McManus (1913), teria pernas para andar só por si, a não ser destinado a nichos de coleccionadores. Depois há um gato e um rato, Félix (1919) e Mickey (1928), mas ambos nasceram para as telas, não são criações originais dos quadradinhos; e Tarzan, desenhado em 1929 por Hal Foster, procede, por sua vez, dos romances de aventuras. O que restará então? Dois bonecos desse mesmo ano, que os historiadores consideram como o início da “idade de ouro” da 9.ª Arte: em escala apesar de tudo mais modesta, de proveniência belga, Tintin, de Hergé; e Popeye, o campeão de facto do século que se completará esta década.

Popeye, que na sua divertida crueza dir-se-ia precursor de um tom underground, é todo ele uma deformidade, do corpo à fala, excepto no carácter. Alma pura e destemida, sempre de cachimbo, os espinafres dão-lhe uma energia que aumentam a já notável força. A primeira aparição ocorre nas tiras de Thimble Theatre, que se publicava havia dez anos, tendo como protagonistas a família de Olive Oyl (Olívia Palito). Em breve, Popeye torna-se a estrela, e com ele Wimpy. um pequeno escroque obcecado por hambúrgueres, Swee’ Pea (Ervilha de Cheiro), filho adoptivo, o mais inteligente do elenco, e Bluto, inimigo e rival, disputando as atenções da bela Olívia; acrescente-se ainda Poopdeck Pappy, pouco exemplar nos seus 96 anos; Sea Hag, a Bruxa do Mar, ainda mais pavorosa que a da Branca de Neve, e Eugénio o Jeep, estranho animal vindo dos confins da África Negra.

Em Popeye e o Jipe (1936), Olívia Palito recebe dum tio um caixote com o estranho bicho, muito dócil, com o dispendioso hábito de nutrir-se de orquídeas. A quadridimensionalidade (!) do cérebro permite-lhe actuar sobre o espaço e o tempo: desmaterializa-se e prevê o futuro… A têmpera de Popeye e os atributos de Eugénio (como se captura algo que se volatiliza?), fazem gorar os planos de um ambicioso para comprar e raptar o animal; e como adivinhava o futuro, um trafulha como Wimpy e uma flausina como Olívia vêem-se milionários, apostando em corridas de cavalos e combates de boxe. Quando chega a vez do embate entre o marinheiro e o colosso James J. Jab, o jeep prevê, supostamente, que Popeye o perderá. Ao ver a namorada e o amigo apostarem contra si, o moral do marinheiro desaba. Livro que nos acompanha desde 1978, relido agora, mantém a graça e o viço. Popeye tem carisma, por isso continua por aí, de saúde.

Popeye e o Jipe
Texto E. C. Segar
Desenho E. C. Segar
Editora Editorial Presença, Lisboa, 1973

BDteca

Don Rosa. Se quando falamos nas sempre entusiasmantes aventuras do Tio Patinhas por montes e vales, apesar de ser o pato mais rico do mundo, lembramos o seu criador, Carl Barks (1901-2000) e o gosto das narrativas empolgantes, nenhum outro autor como Don Rosa justifica mais o epíteto de seu herdeiro. A Panini Brasil inicia a edição da «Biblioteca Don Rosa»: Tio Patinhas e Pato Donald – O Filho do Sol, São Paulo, 2021.

Desenhar, sempre. Em 7 de Janeiro de 2015, Coco saíra da redacção do Charlie Hebdo, depois de estar à conversa com Cabu, Charb e o cronista Bernard Maris, quando é apanhada pelos dois terroristas que vão perpetrar o massacre, obrigando-a a conduzi-los às instalações do semanário satírico. Será ela a autora da capa histórica “Ils ont les armes, on les emmerde, on a le champagne!”. Sobrevivente, pois, traumatizada, é através do desenho que fará a catarse. Coco, Dessiner Encore, Les Arênes, 2021.

Antropomorfismos. Animais com características humanas foram sempre característicos da BD, neste caso herdeira das fábulas de antanho. Uma nova parelha de personagens da floresta, uma raposa e um texugo, falam sobre os problemas que os afligem, do aquecimento global ao confinamento… Renar et Blerô, texto e desenhos de Serge Scotto, edição Mosquito, Saint-Égrève, 2021.