Covid-19. A pandemia pode escalar o número de crianças soldado

Covid-19. A pandemia pode escalar o número de crianças soldado


A crise económica pode empurrar mais crianças para os braços de exércitos e grupos armados, avisou a ONU e a UE. Na República Centro-Africana, tenta-se combater a tendência pondo antigas vítimas na linha da frente contra a pandemia. 


Num mundo de crescentes conflitos localizados, há anos que se nota uma explosão do número de crianças soldado – entre 2012 e 2019, as vítimas mais que duplicaram, segundo a Child Soldiers International. Agora, em tempo de crise económica devido à pandemia de covid-19, teme-se um aumento ainda maior. “A pobreza e falta de oportunidades aumentam ainda mais os fatores que incentivam o recrutamento de crianças”, avisou Virginia Gamba, responsável das Nações Unidas para este tipo de crime de guerra, em comunicado conjunto com o representante da União Europeia para a política externa, Josep Borrell, na sexta-feira passada, o Dia Internacional Contra o Uso de Crianças Soldado. “As oportunidades para uma educação, que já estavam  em rutura devido à guerra e deslocação forçada, estão a desaparecer ainda mais. Tragicamente, as crianças estão a pagar o preço mais alto”.

É impossível saber exatamente quantas crianças estão em combate neste momento, mas os números da ONU, estimados por baixo, apontam que mais de sete mil tenham sido recrutadas só em 2019, algumas com apenas seis anos, sobretudo em países como a República Democrática do Congo, a Somália, a Síria, o Iémen e o Afeganistão.

Muitos darão por si à deriva, transformados em adultos que não sabem fazer mais do que matar. Daí que sejam tão cruciais iniciativas como as que se veem na República Centro-Africana (onde estão estacionados 243  militares portugueses), que em tempos esteve no topo da lista do uso de crianças soldado, onde agora os sobreviventes têm a oportunidade de estar na linha da frente contra a pandemia, graças ao programa WASH, da UNICEF, que quer criar empregos e salvar vidas cavando poços, num país onde quase 80% das casas não têm água para beber, quanto mais para lavar as mãos.

“Este programa pode mudar a minha vida. Finalmente tenho algum dinheiro. E estou a ajudar estas comunidades e o meu país”, resumiu uma antiga criança soldado centro-africana, empregada pelo WASH, à Deutsche Welle. Não é só uma oportunidade de emprego, é também uma forma de enfrentar o estigma que sofrem estes jovens – num país marcado por uma brutal guerra civil entre grupos cristãos e muçulmanos, com atrocidades e violações em massa, com casos  recorrentes de tortura e até canibalismo, muitas crianças envolvidas no conflito assistiram e participaram em horrores, e os seus vizinhos nem sempre estão ansiosos por os receber.

Por mais que tenham abandonado as espingardas, mocas e machetes, bem como os amuletos de magia negra, tão populares entre milícias centro-africanas, que supostamente os tornavam invulneráveis contra balas, é difícil encontrar futuro para estes jovens, num país que continua a estar no fundo dos rankings de bem-estar infantil. Pelo menos um em cada cinco crianças continua a não ir à escola, mesmo após quase oito anos de intervenção da MINUSMA, a operação de manutenção da paz das Nações Unidas na República Centro-Africana – no território controlado por rebeldes, ou seja, quase dois terços do país, estima-se que a taxa de crianças sem acesso a escolaridade chegue a quatro em cada cinco.

E o que não falta são ameaças a essas crianças. Aliás, escondido nas selvas do nordeste do país, estão à espreita os restos do Exército de Resistência do Senhor, conhecido por raptar dezenas de milhares de crianças e obrigá-las a combater (ver páginas 18 e 19). Nos últimos anos,  têm-se aliado a rebeldes locais, multiplicaram os ataques a aldeias, pilhando, roubando gado e raptando crianças, para reabastecer as suas fileiras – deixando claro que a ameaça da guerra nunca está longe desta região conturbada.

Para as tropas que têm de enfrentar crianças soldado, vítimas tornadas em agressores, não se trata de uma tarefa fácil. “Uma bala disparada por um rapaz de 14 anos é tão letal quanto uma disparada por alguém com 40 anos”, mas os estragos psicológicos de ripostar são diferentes, lembrou Peter Singer, autor do livro Children at War, em entrevista à Brookings. “Além disso, os militares têm de ter níveis de proteção um pouco mais elevados, porque as crianças tendem a tomar riscos que os adultos não tomariam. Muitos destes miúdos no campo de batalha foram obrigados a tomar drogas e coisas do género. Portanto, eles correm direito a fogo de metralhadora, algo que não seria de esperar de adultos”.