George Bernard Shaw. “Cuidado com o homem cujo Deus está no céu”

George Bernard Shaw. “Cuidado com o homem cujo Deus está no céu”


Escrito em 1946, As Aventuras de Uma Negrinha à Procura de Deus foi editado pela Sistema Solar em outubro último.


“A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos”, diz-nos George Bernard Shaw em As Aventuras De Uma Negrinha à Procura de Deus.

Mas a verdade é que nunca sabemos à partida de que metal somos feitos. Na verdade, desconhecemos em absoluto a colónia dos nossos limites e das nossas forças. No fundo, desconhecemos por completo a espécie de homens e mulheres que nos vamos tornando com a evangelização do tempo. E porque o tempo é o mais implacável, endemoninhado e castrador dos Evangelhos. Porque o tempo é a mais cruel das selvas, onde nos embainhamos em suor no mistério da revelação. Porque o tempo é o mandamento último e primeiro de qualquer sacrifício, de todo o desprezo e intolerância, tememo-lo mais do que a qualquer deus. No fundo, a esta hora, já não queremos saber se a vida nos desgasta ou afia, se nos turva, se nos adoça ou endurece. No fundo, já ninguém quer saber de que metal é feito, mas não é por isso que a vida deixa de ser essa pedra de amolar de que fala Shaw.

Escrito em 1946, As Aventuras de Uma Negrinha à Procura de Deus foi editado pela Sistema Solar em outubro último, com belíssimas ilustrações de John Farleigh e a magnífica tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, que nos recorda que o livro retoma o tema da “perversão das religiões cristãs” – mas, desta vez, numa “inspiração que muito deve ao Candide, de Voltaire”. E perguntará o leitor o porquê desta analogia. Pela ideia de que só nos encontramos se soubermos cultivar o nosso próprio jardim. Se lhe soubermos arrancar as ervas daninhas, as bagas venenosas, os desejos malditos. Se lhe soubermos cavar todos os segredos.

A primeira edição em Portugal desta obra, pela Livros do Brasil, nos anos 40, acabou ensombrada “sob a vigilância de um implacável lápis softizador”, explica Aníbal Fernandes. Além do lápis softizador, a editora incluiu uma generosa advertência ao leitor. Uma advertência altamente enganadora, mas muitíssimo eficaz: “Antes que o leitor se disponha a acompanhar esta turbulenta negrinha – toda ela curiosidade e ânsia de conhecimento, querendo por força e à sua custa encontrar Deus, o caminho que conduz a Deus e à Sua ambicionada e pacificadora certeza -, antes que o leitor prossiga através da floresta de enganos e interrogações por onde a negrinha se embrenhou, cumpre ao editor português desta obra de Shaw fazer notar que o texto bíblico nela consignado é o da vulgata adotada pela Igreja Anglicana. Sobre o texto em questão, já de há muito a Igreja Católica se pronunciou e é evidente que as objeções e reservas postas pelo Autor não se referem ao texto pela nossa Igreja aprovado. Não nos custa a crer que Bernard Shaw, achando supérflua esta nossa advertência, a não poupasse a uma das suas severas e irreverentes gargalhadas… Em todo o caso, ela aí fica para uso, governo e tranquilidade do leitor português”.

Antes de mais, esta negrinha que irrompe destemida com a sua moca floresta adentro, de turbulenta não tem nada. Turbulentos, sim, serão todos os homens com quem ela, na sua devota procura de Deus, se irá encontrar. Todos os homens e todos os seus discursos, cada argumento e contra-argumento. Um ponto importante que interessa salvaguardar é que Shaw em nenhuma passagem faz uma única diferenciação entre a Igreja Anglicana e a Igreja Católica. Faz, sim, uma sátira deliciosa em torno desta peregrinação, da fé, da figura do Criador, seja ele qual for. Da sua misericórdia, da sua aventura, do seu mistério, dos seus mandamentos.

Vencedor em 1925 do Prémio Nobel, Shaw foi também um notável crítico, jornalista, poeta e dramaturgo.

É impossível pensar nas suas peças e nos seus romances sem nos deslindarmos da sua Irlanda, de Swift, Synge, Behan, Wilde, O’Casey, Yeats, Joyce ou Beckett. Mas Shaw esteve muito para além dos seus conterrâneos irlandeses. Ao ter rumado a Londres muito jovem para ir ao encontro da mãe e das irmãs, anos depois do divórcio dos pais, teve a oportunidade de privar com muitos outros artistas. Longe de uma formação superior em instituições académicas, autodidata e frequentador do British Museum, viu os seus primeiros três romances serem recusados por editores.

Ainda assim, e muitas vezes escrevendo em jornais sob disfarce de um pseudónimo, conquistou a amizade de inúmeras celebridades. Virginia Woolf, Pound, Eliot, Robert Bolt, Doyle, Day Lewis, ou H. G. Wells foram alguns dos literatos com quem manteve proximidade.

Inspirado no dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, foi com Brecht, Eugene Ionesco e Samuel Beckett que revolucionaria o teatro inglês para sempre. A respeito da sua relação com Brecht, Beck escreveu: “Ambos tinham algo a dizer sobre o estado de coisas social, económico e político. Ambos acreditavam que não se poderia falar francamente destas coisas ao público, que os espetadores se aborreceriam e sairiam da sala. Ambos tinham um método próprio para dourar a pílula. Shaw com a sua ironia, Brecht com os seus divertimentos: palcos móveis, planos inclinados, cenas múltiplas, coros, exotismo, canções, rostos pintados, neve a cair, tempestades e todas as mais intermináveis distrações para captar e manter a atenção”.

Sem dúvida que Shaw se munia da sátira e da ironia para dourar a pílula, para fazer passar as suas mensagens, a sua ideologia socialista, a sua crítica mordaz à sociedade inglesa, mas também à religião, à exploração da classe trabalhadora, à desigualdade entre homens e mulheres. Ele que era um socialista ativo, ele que se opôs convictamente à Grande Guerra, ele que tantas peças de caráter político escreveu.

Através do teatro, do romance, da poesia, dos seus diários, ou da vasta correspondência que trocou com Joyce, Woolf, John Quinn ou Campbell, mostrou ser sempre um homem que acreditou na igualdade entre todos os seres humanos. Não basta dizer que era um socialista, um vegetariano ou um protestante. É muito pouco. Shaw foi um homem completamente à frente do seu tempo. Um homem com um apetite revolucionário voraz por um mundo menos capitalista, mais ético, mais justo e mais livre.

Chesterton escreveu que em Shaw era declarado muitas vezes o seu intuito de magoar, abalar e ferir o leitor. Mas Shaw precisava de magoar não porque odiasse ou se debatesse contra alguém em especial, mas sim porque desprezava em absoluto certos e determinados pilares ideológicos. “Ele provoca, não deixa ninguém em paz. Até se pode dizer que intimida, mas isso seria até injusto, visto que a todo o momento deseja ser também atingido pelo leitor”.

Bernard Shaw queria ser, sim, magoado de volta pelo leitor, porque ele é o escritor filado em abalar-nos, em atingir-nos, mas certamente mais do que atingir-nos, ele desafia-nos ao troco, ao soco, à resposta. É o próprio que nos adverte: “Cuidado com o homem que não devolve a bofetada. Ele não a perdoou nem permitiu que você se perdoasse”. Shaw é, por isso, o protótipo do escritor provocador, do escritor que dá o peito às balas, que as carrega em pólvora nos lábios, e neste livro em particular, cada diálogo desta negrinha sem nome, desta “preta pagã”, não deixa de ser um soco de punho cerrado. O leitor fica atordoado, mas ao mesmo tempo é capaz de se rir e de se espantar consigo próprio, com os seus preconceitos azedos e pestilentos. O leitor vai ficar boquiaberto com a perspicácia e a astúcia mental dessa negrinha que foi catequizada por uma missionária branca inglesa. Dessa negrinha que sabe pensar por si própria, que tenta decifrar uma Bíblia por todos inquestionável, por todos verdadeiramente incompreendida. Dessa negrinha que acaba por casar com um branco, e o mais caricato é que esse homem branco é precisamente irlandês e defensor do socialismo, como o próprio autor do livro.

Por ser uma “insatisfeita convertida, em vez de abraçar com suave docilidade o cristianismo que lhe era incutido”, esta negrinha vai provar ser muito mais espiritual, sensível e profunda do que qualquer outra das muitas personagens com que se cruzará ao longo de uma floresta crivada de falsos deuses.

A certa altura passa por uma tenda onde eram vendidas imagens de madeira, gesso e marfim, e ao lado vê um homem deitado no chão numa enormíssima cruz, com os tornozelos sobrepostos e os braços abertos, a fazer de modelo para o fazedor de imagens que as esculpia freneticamente. Esse homem que servia de molde era um mágico, miserável, paupérrimo, que só tinha como único meio de subsistência aquele trabalho: carregar aquela “fastidiosa cruz” a troco de muito pouco. Ao que um árabe que os observava, indignado com as imagens que se avolumavam dentro da tenda, acusou o escultor de cometer uma falta contra o segundo mandamento dado por Deus a Moisés.

É sempre a partir destes diálogos proféticos, imbuídos de símbolos e de alusões, de diagramas e mitologias, que o escritor consegue fulminantemente atravessar diferentes perspetivas. A da eternidade, da arte, da condição da mulher, da justiça, do racismo, do quotidiano.

Foquemo-nos no diálogo que envolve a negrinha, o mágico, o escultor e o árabe.

Quando o árabe explica que Alá proíbe aos seus fiéis qualquer adoração a alguma imagem que seja, o escultor justifica-se alegando que essa adoração é um culto de todos os cristãos. Mas o árabe, zangado, não consegue compreender como os cristãos podem adorar um Deus em forma de homem.

“-Pff! – disse o escultor. O teu Alá é um trapalhão, e Ele sabe-o. Tenho ali na tenda uma cortina que oculta um recanto com deuses gregos tão belos que o próprio Alá morreria de inveja se os comparasse com as suas próprias tentativas de um amador. Digo-te que Alá me deu esta mão por as Suas serem tão desajeitadas, se é que ele tem qualquer espécie de mãos. O deus-criador é um artista nunca satisfeito com a Sua obra, e está sempre a aperfeiçoá-la até onde os Seus poderes chegarem, embora consciente de que deve parar quando atinge esse limite, e de que haverá sempre uma perfeição maior, e sem ela a imagem não terá significado. O teu Alá, que pode fazer uma mulher, será capaz de criar a Deusa do Amor? Não, só um artista poderá fazê-lo. Olha! Alá pode fazer isto? Do recanto tapado com a cortina tirou uma Vénus de mármore e pousou-a no balcão. 

– Tem membros frios – disse a negrinha, durante todo este tempo a escutar sem os outros repararem na sua presença. 

– Bem dito! – exclamou o árabe. É melhor um fracasso com vida do que uma obra-prima morta”.

São magníficos diálogos como este que nos encaminham para uma reflexão capaz de abrigar muitos outros contornos. Nas mãos do autor, da fé passamos para a arte, e da arte para a questão do casamento, ou do casamento para a demanda da prostituição ou da desigualdade social. A arte, na figura da estátua, passa a ser um elemento teorizador da conjugação entre dois mundos, o artístico e o religioso, o poético e o palpável. Nada escapa à perícia literária de Shaw e é aqui que o termo shavian pode aplicar-se na perfeição.

Oriundo de uma família protestante com escassos recursos, ruma com 20 anos a Inglaterra para se dedicar à literatura a tempo inteiro. Embora Londres não o tivesse recebido propriamente de braços abertos, visto que durante vários anos os seus romances foram alvo de insucesso e invisibilidade junto da crítica e do público, Shaw nunca baixou os braços. E é em 1885 que consegue um trabalho fixo na imprensa, no Saturday Review, onde passaria a ter um papel fundamental na crítica literária, musical e teatral. Apreciador entusiasta da obra de Wagner, conhecedor exímio embora polémico no tratamento da obra shakesperiana, rapidamente adquire reconhecimento e se consagra no campo intelectual e jornalístico.

T. S. Eliot, escreveu no seu ensaio Poesia e Drama que “uma fala de uma personagem de Congreve ou Shaw tem – por mais claramente que as personagens possam diferenciar-se – aquele inequívoco ritmo pessoal que é a marca de um estilo de prosa, e de que só os conversadores mais dotados – que, por sinal, geralmente monologam – revelam algum vestígio na sua conversação”.

Outra das suas marcas é o enaltecimento do feminino. Algo que não passou despercebido às feministas, antes lhes conquistou o seu agrado e admiração. Shaw acabou por casar com uma delas, Charlotte Frances Payne-Townsend.

A questão do papel da mulher na sociedade, o seu descrédito, a sua postura, o seu calcanhar de desigualdade é inabalavelmente um alicerce na fundição da sua obra. Se neste livro encontramos uma negrinha que reclama com o árabe os seus direitos, também nos deparamos com uma negrinha que reivindica um Deus feminino, porque não?

Em muitas obras shavianas deparamo-nos com mulheres que perseguem homens, que os exigem como sendo propriedade sua. Mulheres desprendidas, inteligentes e independentes que sentem inexplicavelmente uma necessidade de casar, mas também outras que só procuram no casamento um meio para atingir um fim. Sobre o casamento escreveu: “Do modo como a concebemos, a vida em família não é mais natural para nós do que uma gaiola é para um papagaio” ou “Cabe à mulher casar-se quanto antes e ao homem ficar solteiro tanto tempo quanto puder”.

Shaw era capaz dos ditos mais espirituosos, capazes de arrancar das entranhas as mais estridentes gargalhadas. Por isso, dizia T. E. Lawrence: “Nunca li uma réplica de Shaw sem sentir que ela melhorava o estado do meu humor”.

Numa entrevista que Shaw deu na sua residência ao Daily Mail, a jornalista, encantada com a beleza do seu jardim e das suas árvores floridas, questionou-o acerca da ausência de arranjos florais nas bonitas jarras, ao que o próprio, com a troça habitual, respondeu: “Eu adoro flores, mas também adoro crianças, e ainda assim não lhes degolo a cabeça, e as enfio em jarras com água pela casa”.