Hospitais. “O cenário é o de guerra ou de um terramoto”

Hospitais. “O cenário é o de guerra ou de um terramoto”


Os hospitais estão à beira da rutura e médicos pedem que se mostre o que se vive nas urgências para as pessoas mudarem o seu comportamento.


O cenário que se vive nos hospitais privados assemelha-se a uma “guerra ou a um terramoto”, desabafou ao i um médico destacado para a frente de combate, apesar de a sua especialidade ser outra há muitos anos. “Não fiquem doentes, por favor, pois não há pessoal para vos atender nem espaço para vos receber”.

Se o retrato dos privados é este, o que dizer dos públicos, onde as ambulâncias chegam a ficar sete horas até poderem “descarregar” os seus doentes? Ontem, o Hospital Beatriz Ângelo tinha 204 doentes internados com covid. “Ou o Governo define rapidamente uma retaguarda que possa acolher os doentes não covid ou isto vai ser uma tragédia”, confessava outro profissional de saúde. A própria ministra do setor, Marta Temido, confessava ontem, depois de visitar o Hospital Garcia de Orta: “Estamos a pôr todos os meios que existem no país a funcionar, mas há um limite e estamos muito próximos do limite. E os portugueses precisam de saber disso”, disse, referindo-se ao sistema de saúde, incluindo Serviço Nacional de Saúde (SNS), setor social e privado e estruturas de retaguarda.

E quando a ministra da Saúde referia, na semana passada, que o Governo podia recorrer à requisição civil, são muitos os que dizem que isso é impossível: “Só se tirarem os doentes não covid que estão nesses hospitais para serem operados”.

Certo é que o Governo já fez acordos para transferir doentes covid para a CUF Tejo, Hospital da Luz, Hospital dos Lusíadas, Hospital das Forças Armadas e Centro de Apoio Militar (CAM/Belém). Segundo o semanário Nascer do SOL, até dia 12 já tinham sido transferidos 523 doentes para esses hospitais.

Também a Base Naval de Lisboa está a ser posta ao serviço da pandemia e já recebeu quatro doentes infetados com covid-19, na sequência de um pedido da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil ao Estado-Maior-General das Forças Armadas. “O centro de acolhimento de doentes, disponibilizado pela Marinha Portuguesa na Escola de Tecnologias Navais, na Base Naval de Lisboa, em Almada, como Estrutura de Apoio de Retaguarda (EAR), recebeu”, na sexta e no sábado, “quatro doentes infetados por covid-19, provenientes de unidades da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo”, afirmou a este jornal o comandante Pedro Santos Serafim, do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Segundo o comandante, o centro de acolhimento está a funcionar como estrutura de apoio de retaguarda, “com 60 camas, disponibilizando alojamento e alimentação aos doentes, e é guarnecido e gerido por pessoal do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social”. Pedro Santos Serafim sublinhou ainda que, no total, as Forças Armadas disponibilizaram ao Serviço Nacional de Saúde e ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social “11 centros de acolhimento de doentes, em unidades militares dos três Ramos, no Continente e Ilhas, os quais dispõem de um total de 840 camas, para acolher doentes infetados por covid-19, sem critérios de gravidade”.

Recorde-se que Portugal é o país do mundo que regista mais casos diários de covid-19 por milhão de habitantes, aparecendo o Líbano em segundo lugar e a Espanha em terceiro. Estes dados estão disponíveis no site Our World In Data, da Universidade de Oxford. É de referir que há cerca de uma semana e meia, o país passou para o topo da lista, tendo vindo a verificar, há cinco dias consecutivos, mais de 10 mil casos diários. O número de mortes também disparou e houve 11 dias em que morreram mais de 500 pessoas por dia, tendo a última segunda-feira registado 659 óbitos. Ontem morreram mais 152 pessoas.

Fora de controlo A situação portuguesa começa a ser insustentável e os números são muito claros, aumentando a convicção de que o país está no limite da capacidade de diagnóstico e que o planalto de 10 mil casos diários é artificial. Ao sábado e domingo, com menos laboratórios a funcionar, são esperados, regra geral, números mais baixos do que nos outros dias da semana, mas os mais de 10 mil diagnósticos a um sábado são mau sinal e os internamentos a aumentar ao ritmo dos últimos dias são outro mau prenúncio. Segundo o Nascer do SOL, há milhares de inquéritos epidemiológicos atrasados. Questionada pelo semanário, a ARS não indicou quantos inquéritos estão pendentes. Garante, no entanto, que as equipas estão a ser reforçadas para realizar o maior número de inquéritos possível e que atualmente já estão a colaborar com o departamento de saúde pública 200 militares, mais de 100 médicos internos e cerca de 80 profissionais cedidos por municípios (técnicos superiores, assistentes técnicos, técnicos de serviço social, psicólogos e nutricionistas)

“Se tivesse de tomar uma decisão política, mandaria toda a gente para casa”. Na ótica de Tiago Correia, especialista em saúde pública internacional e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), “não é pelas exceções que as pessoas estão na rua. Estão na rua porque procuram pretextos, com base nas exceções, para saírem e continuarem a conviver”, jogando com o alívio, quando comparado com o confinamento na primeira vaga da pandemia, das regras impostas pela Direção-Geral da Saúde. “Estes casos estão a arrastar-se sistematicamente desde o final da primeira semana de janeiro. Estamos a assistir a uma acumulação de fatores que produz uma tempestade perfeita”, explicou o docente, acrescentando que “na altura do Natal entrámos numa situação-limite” e, atualmente, “como não há um efeito imediato nos números, porque as pessoas podem estar infetadas e nem sequer saber, não conseguimos aperceber-nos do seu comportamento real”. Para Tiago Correia, “estamos a viver a pior fase”; no entanto, “os números vão baixar, só não sabemos daqui a quanto tempo nem a que preço”. Porém, até tal acontecer, “vai ser o cabo das tormentas”, o que acontece devido à falta de medo manifestada pela população.

“Não se trata de uma questão de mensagem. Quem está sensibilizado está. Quem não está, não vai estar”, avançou Tiago Correia, adiantando que “perante uma circunstância destas, em que temos de moldar o comportamento de milhões de pessoas ao mesmo tempo e de forma imediata, se não houver um episódio de medo, todas terão de ser obrigadas a ficar em casa”. O especialista acredita que “o confinamento tem graves problemas a todos os níveis, mas a população não o respeita”. Assim, esclareceu: “Se eu tivesse de tomar uma decisão política, mandaria toda a gente para casa. Não porque eu ache que a culpa seja das exceções, mas sim porque as pessoas estão a abusar das mesmas”.

Outro médico contactado pelo i vai mais longe. “As pessoas, em março e abril, tinham as imagens dos hospitais de Itália e Espanha, com os cadáveres a amontoarem-se. Hoje não sabem que em Portugal estamos muito perto disso e, como tal, continuam a não respeitar o confinamento geral. Isso vai ser trágico. As pessoas não fazem a mínima ideia do que se está a passar”.

Recorde-se que, na semana passada, Carlos Antunes alertava ao jornal i para um possível planalto artificial de 10 mil casos por limite de testagem, explicando que “antes do Natal tínhamos uma taxa de positividade [testes positivos entre o total realizado] à volta dos 8% e que agora está em cerca de 20%. Se lançamos uma rede de pesca no mesmo sítio e se estamos a apanhar mais peixe, é porque existe mais peixe no mar. A percentagem de sintomáticos entre os [testes] positivos também está a aumentar, o que quer dizer que estamos a deixar os assintomáticos de fora”, afirmou.

A importância do socorro pré-hospitalar “A Sociedade Portuguesa de Emergência Pré-Hospitalar (SPEPH), na sua reunião de 16 de janeiro de 2021, analisou de forma circunstanciada o modo como tem decorrido o socorro pré-hospitalar. É com elevada preocupação que reportamos que o mesmo não tem decorrido de forma satisfatória, de resto como temos vindo a reportar continuamente, sem que tenha havido respostas por parte das entidades responsáveis pela área”, começou por esclarecer num comunicado a que o i teve acesso. “Pela evidência da sobrecarga dos hospitais centrais e distritais” – fornecida, a título de exemplo, pela fila de ambulâncias presente à porta das urgências do Hospital Santa Maria, em Lisboa –, o órgão que representa a emergência pré-hospitalar enumerou um conjunto de medidas recomendadas, nomeadamente o “reforço das unidades de saúde periféricas, como os serviços de atendimento permanente e serviços de urgência básica, criando alguma capacidade de internamento e com capacidade de aliviar os serviços de urgência polivalente dos hospitais distritais e centrais”, a ponderação da “criação de Viaturas de Emergência Médica Pré-Hospitalar, sem base fixa, com médico a bordo, por forma a garantir a execução criteriosa das orientações emanadas” ou a “elaboração de uma campanha publicitária, nos meios de comunicação social, fortemente direcionada no sentido de consciencializar a população sobre o recurso aos SU e ao 112/INEM”, apelando igualmente ao “início da vacinação dos Bombeiros e da Cruz Vermelha Portuguesa”, devendo a prioridade na vacinação ser idêntica à dos profissionais de saúde.