Guida Cândido e a cozinha portuguesa

Guida Cândido e a cozinha portuguesa


Em abril foi publicado pela Dom Quixote um livro que, pelo seu conteúdo, apresentação, rigor e estética, não hesito em classificar como o mais saboroso do ano.


Estávamos em abril, no pico do primeiro surto pandémico em Portugal, quando foi publicado um livro que, pelo seu conteúdo e pela sua apresentação, pelo seu rigor e pela sua estética, não hesito em classificar como o mais saboroso do ano. E também não hesito em recomendá-lo como oferta. O título é A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa e o subtítulo Como nasceram os pratos tradicionais portugueses. A editora é a Dom Quixote. A autora é Guida Cândido (nascida em Coimbra, em 1975), licenciada em História de Arte pela Universidade de Coimbra, mestre em Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade pela mesma universidade e atualmente a realizar o doutoramento em Patrimónios Alimentares: Culturas e Identidades, ainda na mesma escola.

São da autoria de Guida Cândido dois outros livros cuja qualidade não fica atrás do mais recente. O primeiro, em grande formato e de capa dura, é Cinco Séculos à Mesa. 50 receitas com história (Dom Quixote, 2016), com prefácio do chefe Hélio Loureiro. A autora ganhou com esta obra, repleta de notáveis fotografias de sua autoria (uma verdadeira foodstylist!), os prémios Gourmand Award de 2016 e Livro do Ano Cookbook Fair de 2017. Para a escrever foi buscar receitas a cinco livros históricos da cozinha portuguesa, cada um deles representando um século: o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (séc. xvi), o mais antigo livro de cozinha nacional; a Arte da Cozinha, de Domingos Rodrigues (1680), o primeiro livro de cozinha impresso entre nós (a edição mais recente e também a melhor surgiu nas Obras Completas da Cultura Portuguesa (Círculo de Leitores, 2017); o Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud (1780); O Cozinheiro dos Cozinheiros, de Paul Plantier (1870); e o Livro de Mestre, de João Ribeiro (1996). O segundo livro, de menor formato mas ainda com capa dura, tem um título homónimo do da tese de mestrado da autora: Comer como Uma Rainha (Dom Quixote, 2018). Apresenta uma boa amostra do receituário real português do séc. xvi ao séc. xx, incluindo 50 receitas das mesas de D. Catarina de Áustria, mulher de D. João iii; D. Maria Francisca de Saboia, mulher, primeiro, de D. Afonso vi e, depois, de D. Pedro ii; D. Maria Ana de Áustria, mulher de D. João v; D. Maria i; e D. Maria Pia de Saboia, mulher de D. Luís. Todas elas foram retiradas de livros contemporâneos dessas rainhas, começando novamente pelo Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal. Com a nova obra, a autora ganhou o prémio de Literatura Gastronómica 2019 da Academia Internacional de Gastronomia. Dela existe uma versão em inglês, Five Centuries of Portuguese Cuisine. 50 Recipes with History (Dom Quixote, 2017). 

O livro mais recente de Cândido, de capa mole e, por isso, de preço mais em conta, segue na linha dos dois anteriores. A ideia é a mesma: escolher pratos folheando as nossas melhores fontes gastronómicas, experimentar 50 receitas, contar cada prato muito bem contado e fotografar a primor. Agora, em vez da evolução da alimentação em geral ou da mesa real em particular, a autora centra-se em pratos bem conhecidos de todos, alguns deles bastante antigos (vem indicada a data da receita original). Ela explica: “Relativamente aos pratos que podemos então dizer que nos identificam, quais as suas origens? Que segredos escondem? Quem registou pela primeira vez essa receita? Através de quase uma vintena de livros de cozinha de todos os tempos, procurámos reconhecer e fixar o que poderá ser o registo primitivo de cada uma destas iguarias culinárias que nunca falham na casa dos portugueses”. 

Depois do prefácio, do gastrónomo José Bento dos Santos, e de uma introdução sobre a história da alimentação em Portugal guiada pelos livros de cozinha mais relevantes, surgem capítulos aos quais é associado um provérbio. Intitulam-se, na ordem em que aparecem, “Do Mar” (“Peixe não puxa carroça”), “Do fiel amigo” (“Para quem é, bacalhau basta”), “Do rio” (“Não comas lampreia que tem a boca feia”), “Do açougue” (“Carne que baste…. vinho que farte… pão que sobre”), “Da matança” (“Ai se o porco voasse, não havia ave que lhe chegasse”), “Da capoeira e da caça” (“A galinha da vizinha é mais gorda do que a minha”), “Da horta” (“Gabem-se as couves que há nabos no caldo”), “Do grão e da farinha” (“Grão a grão, enche a galinha o papo”) e, para sobremesa, “Do açúcar” (“O doce nunca amargou”). No final, além da bibliografia estão os créditos das receitas (na sua maior parte são da responsabilidade da autora: houve que experimentar e explicitar ingredientes e procedimentos omissos no original). O leitor poderá aqui aprender, por exemplo (escolho uma receita de cada capítulo, indicando a data da respetiva fonte mais antiga), como fazer amêijoas à Bulhão Pato (1933), bacalhau à Gomes de Sá (1949), enguias fritas (1780), cozido à portuguesa (1928), papas de sarrabulho (1919), arroz de pato (1928), caldo-verde (1904), arroz de polvo (1901) e arroz-doce (séc. xvii), este último um dos meus doces preferidos. Continuando no capítulo do açúcar, muito apropriado para a quadra natalícia, a autora também inclui o bolo-rei (1928), os coscorões (séc. xvii), as filhós (séc. xvii) e as rabanadas (séc. xviii). Isto para já não falar do célebre pastel de nata (1729) – cujas virtudes para o país foram salientadas pelo ministro da Economia Álvaro Santos Pereira em 2012. O pastel de nata tem, aliás, uma história interessantíssima. Vai agora fazer 200 anos, pois o proprietário de uma refinaria de cana-de-açúcar situada junto ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, começou a vender esse pastel por altura da Revolução Liberal de 1820, quando os conventos e mosteiros começaram a ser encerrados. 

Tal como os anteriores, o novo livro está muito bem produzido pela Dom Quixote (parabéns, Maria do Rosário Pedreira, a editora dos três livros!). As fotografias, da autora como nas outras suas obras, foram feitas desta vez no Palácio do Correio-Mor, em Loures, que remonta ao tempo de D. João iv. 

O elogio de José Bento dos Santos, no prefácio, não podia ser maior. Começa assim: “Li este livro de ponta a ponta, como se lesse um romance. Um romance histórico, cheio de personagens fascinantes, de pequenas histórias encantadas, de subtis ligações e de secretismos apaixonados”. E eu não posso deixar de acompanhá-lo. Cândido, com este seu terceiro grande livro, afirma-se como uma das maiores divulgadoras da nossa história da alimentação, confirmando-se como uma excelente mediadora entre as fontes históricas e a nossa mesa. É divulgação feita ao mais alto nível e da melhor maneira, decerto pelos olhos e eventualmente pela boca. Poderá a cozinha francesa ter maior fama mundial, mas a nossa, de resto bastante influenciada por aquela (pelo menos se olharmos para a mesa dos reis), tem uma riqueza e uma variedade que lhe pede meças. 

No início do livro, a autora apresenta uma tábua cronológica dos livros de cozinha de que se serviu. Começa mais uma vez pelo Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (um manuscrito da Biblioteca de Nápoles, publicado apenas em 1967 pela Universidade de Coimbra), que ensina a fazer marmelada, mas a seguir coloca um livro do séc. xvi ou xvii, a Arte de Cozinha ou Methodo de Fazer Guizadoos, do Mosteiro de Tibães (que representa bem a origem conventual de muito do nosso receituário), onde está a receita do arroz-doce. Na mesma linha, refere também o Livro das Receitas de Doces e Cosinhados Vários Deste Convento de Santa Clara de Évora, de Sóror Maria Leocádia do Monte do Carmo (1729), onde está a receita original dos pastéis de nata, próxima da atual. Já no séc. xx, não se esquece desse clássico moderno que é a Culinária Portuguesa (1936), de António Maria de Oliveira Bello (mais conhecido por Olleboma, sigla construída lendo ao contrário o seu último apelido e juntando as iniciais também ao contrário), onde está a receita do cozido à portuguesa. Está indicada a proveniência de todos os pratos. Por exemplo, o bacalhau à Gomes de Sá surge na Arte de Bem-comer, de Alfredo Morais (1949); a receita é “copiada do original escrito por Gomes de Sá Júnior, negociante de bacalhau com armazéns na Rua dos Bacalhoeiros, no Porto”. Confesso que é um dos meus pratos preferidos… 

O que aprendi neste livro? Tanta coisa que seria fastidioso enumerar. Por exemplo, que as amêijoas à Bulhão Pato não serão do escritor oitocentista com esse nome, embora este fosse um aficionado da gastronomia. Que Ramalho Ortigão, nas suas Farpas, fala do cozido à portuguesa, chamando-lhe só “o cozido”. Que o arroz-doce é chamado, num livro espanhol de 1611, “arroz a la portuguesa”, e que “no Mosteiro de Tibães, em meados de Seiscentos, era o doce mais comum à mesa dos monges”. Que o bolo-rei, após a implantação da República, em 1910, se passou a chamar “bolo-república,” “bolo-Arriaga” ou, simplesmente, “bolo de Natal”. Que as filhós já aparecem em Gil Vicente, na Farsa dos Almocreves. Que as rabanadas são referidas por Júlio Dinis n’A Morgadinha dos Canaviais. Etc.

Guida Cândido é uma artista não apenas na cozinha, mas também na apresentação dos pratos, pois ficamos a olhar para as fotografias com mais olhos do que barriga. A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa é uma obra de cultura e, para aqueles que forem capazes de transformá-la em iguarias, um deleite gastronómico. Bom apetite!