RESUMO
Ainda bem presentes na memória da sociedade francesa, os massacres do jornal satírico Charlie Hebdo, de 7 de Janeiro de 2015, e a série de atentados mortíferos, ocorridos a 13 de Novembro, do mesmo ano, em Paris e em Saint-Denis, aos quais se viria a juntar um novo conjunto de acções terroristas, que resultaram, até aos nossos dias, no assassinato de mais de 240 pessoas, reacenderam o debate sobre a islamofobia, levando as autoridades francesas a adoptar fortes medidas antiterroristas. Para além de França, o ano que agora terminou foi marcado por uma onda de ataques de matriz jihadista, que atingiu, igualmente, outros países da Europa, como foi o caso da recente acção terrorista, em Viena. Esta grave situação levou grande parte dos líderes europeus a solicitar à União Europeia (UE) uma pronta resposta na prevenção e no combate ao flagelo jihadista internacional. Ciente de que “o terrorismo continua a ser uma ameaça real e actual”, a Comissão decidiu propor uma nova Agenda de Luta Contra o Terrorismo, “a fim de combater eficazmente as ideologias extremistas, prevenir a radicalização e assegurar uma melhor protecção dos espaços públicos visados pelos terroristas, promovendo simultaneamente a plena aplicação das normas em vigor e a utilização das ferramentas disponíveis actualmente”, e que “tem por base os ensinamentos retirados ao longo da evolução da ameaça terrorista”[i]. Face à grave realidade vivida no território, o presidente francês, Emmanuel Macron, decidiu, sem mais delongas, apresentar no passado dia 2 de Outubro, a sua repensada estratégia de prevenção e combate às permanentes ameaças que têm submetido à sociedade francesa.
Sendo o país mais populoso da Europa Ocidental, com um número de habitantes superior a 65 milhões[ii], a França conta, ainda, com a segunda maior população muçulmana residente no território europeu, atrás da Rússia, registando um número superior a 5 milhões (8,3 por cento); ainda assim, bem distante dos quase 38 milhões de cristãos (58,1 por cento)[iii].
ANÁLISE
Ao longo dos últimos anos, o território francês tem sido palco de inúmeras acções terroristas reivindicadas tanto pelo DAESH, como por células da Al Qaeda, a par de outras de iniciativa individual [lobos solitários]. Numa reacção ao que considerou ser a resultante de um “Islão em crise, em todo o mundo”, o presidente francês, Emmanuel Macron, para quem ”o islamismo radical é um projecto consciente e teorizado”[iv], afirmaria a sua firme intenção de apresentar um projecto visando o reforço de uma lei francesa, de 1905, que separa oficialmente a Igreja, do Estado, motivando, assim, a criação de um plano contra o que identificou como sendo o “separatismo islâmico”, o qual revela propósitos “contrários às exigências republicanas, enquanto esteios da democracia francesa”. Tal como noutros domínios da sociedade, de um lado estão os que apoiam a iniciativa, enquanto do outro se perfilam os contestatários, nos quais estão, naturalmente, e, desde logo, incluídos os membros da comunidade muçulmana, temendo ficar sujeitos a um maior isolamento face à sociedade francesa, por via de um crescente sentimento islamofóbico, que começou a ganhar forma, sobretudo a partir das acções terroristas que ocorreram na capital francesa, em 2015.
As propostas apresentadas pelo presidente francês incluem um plano de combate à radicalização e àquilo a que denominou de “separatismo islâmico” existente em França, considerando tratar-se de uma “questão particularmente delicada, num país considerado fortemente ligado ao secularismo”. Através de alterações de carácter legislativo, o líder francês pretende pôr termo ao que identifica como sendo o “favorecimento das leis religiosas aos valores republicanos e seculares da França”, por si entendido como uma postura associada ao “separatismo”, numa clara referência ao Islão que descreve como “uma religião em crise, no actual contexto mundial, cujo radicalismo deve ser combatido”, de modo a “defender o secularismo francês; um princípio jurídico centenário, que separa a Igreja e o Estado e impõe a neutralidade da França na religião”. O presidente francês referiria, ainda, que o passado colonial da França, destacando o caso da Argélia, “deixou cicatrizes numa sociedade que, por vezes, luta para integrar comunidades de imigrantes oriundos da ex-colónias”[v]. Com a implementação do projecto presidencial, passa a haver, entre outras determinações, um maior e mais rigoroso controlo sobre o financiamento estrangeiro aos lugares de culto e escolas religiosas privadas, passando pelo impedimento da actividade de imames estrangeiros, que, actualmente, atingem as três centenas, provenientes de Marrocos, da Argélia e da Turquia, indo até a uma mais efectiva vigilância na esfera associativa.
Como reflexo da sua política, também no plano externo a França continua a contas com o flagelo jihadista, começando o novo ano, tal como havia terminado anterior, com o registo de um novo ataque terrorista às suas forças; desta vez, no nordeste do Mali, onde mais dois militares foram vitimas de um ataque bombista, reivindicado já pelo Group for the Support of Islam and Muslims (GSIM), o braço da Al Qaeda, no Sahel, como “retaliação pelo passado colonialista francês”[vi], elevando, assim, para 50 o número de baixas francesas naquele território do Sahel, desde que a França ali intervém militarmente, com a finalidade de repelir as iniciativas jihadistas naquela zona da África Ocidental, que, da sua parte, as justificam como “resposta à continuada presença militar francesa na região, e às caricaturas do Profeta Maomé, publicadas por um jornal francês, e defendidas por Macron, em nome da liberdade de expressão”[vii].
Com a população francesa a aderir progressivamente ao projecto presidencial de combate ao terrorismo islamista, a partir de um discurso sempre pautado por uma clara diferenciação entre a maioria dos muçulmanos franceses e os radicais islamistas, a reacção internacional não se fez esperar, marcada por manifestações de repúdio, um pouco por todo o lado. De imediato, o presidente turco, Recep Tayip Erdogan, mostrou a sua indignação com um veemente apelo ao Mundo Islâmico de hostilização a tudo o que se relacione com o Estado francês. Também o Paquistão, pela voz do seu primeiro-ministro, Imran Khan, viria a defender, num inequívoco apelo à jihad, que “qualquer muçulmano tem o direito de lutar contra a França”, no que está subentendida a materialização de atentados terroristas que tenham a população ou os interesses franceses como destinatários. Há que recordar, entretanto, que estes dois Estados têm sido dos principais patrocinadores da actividade proselitista levada a cabo em território francês pelos líderes religiosos muçulmanos mais radicais. Em sentido naturalmente contrário ao de uma parte da comunidade internacional, sobretudo a muçulmana, estão outros países, com destaque para o universo comunitário europeu, que, no passado mês de Novembro, e em apoio tácito às teses francesas, os ministros dos Assuntos Internos dos Estados-Membros discutiram a necessidade de reforço da acção conjunta no “combate ao terrorismo, e em defesa dos valores comuns da União Europeia”, com destaque para a implementação de medidas, entre outras, tendentes a promover uma mais eficaz partilha de informações entre as autoridades policiais, judiciárias e Serviços de Inteligência[viii].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decurso da última década, a Europa tem vindo a ser confrontada com uma crescente actividade do jihadismo terrorista, onde a ideologia salafista do DAESH tem servido de inspiração para alegados requerentes de asilo político, infiltrados nas grandes massas migrantes que têm entrado na Europa, provenientes, sobretudo, da Síria, logo após o início da guerra civil, em 2011, e, também, pelo regresso ao solo europeu dos chamados “combatentes estrangeiros”. O ano de 2020 acabou mesmo por ser o ponto mais alto dessa escalada terrorista, levando a própria EUROPOL a admitir que “o terrorismo islamista está mais complexo”[ix], para o que o actual contexto pandémico muito tem contribuído. França é o país da Europa Ocidental que regista o maior número de problemas com uma comunidade islâmica residente no seu território, superior a 5 milhões de crentes.
Por muitos considerado de matriz iliberal, o projecto apresentado por Emmanuel Macron visa criar inequívocas condições para um efectivo combate ao crime e o ao terrorismo. Para os sectores mais críticos, este projecto não tem outro fim que não seja o de proteger as forças da autoridade ao “permanente escrutínio” a que estão sujeitas pela sociedade francesa e pelos meios de informação. Em resposta, o governo assegura que “não vai restringir o trabalho da Comunicação Social”, o que é considerado pelos defensores da classe um falso argumento. Com a alegação de que os sinais da comunidade muçulmana, em França, apontam para a sua intenção de criar uma “contra-sociedade", as propostas apresentadas visam, sobretudo, uma efectiva monitorização da actividade associativa, a par de uma rigorosa supervisão da escolaridade e controlo sobre o financiamento estrangeiro das mesquitas, o que, para grande parte dos líderes religiosos muçulmanos, não passa de uma clara intenção de Macron em “reprimir o Islão, em França”. O líder francês insiste, contudo, que “a França luta contra o separatismo islâmico, nunca contra o Islão”, acusando fontes mediáticas do mundo árabe de distorcerem as suas declarações[x]. Todavia, são muitos os analistas, não-muçulmanos incluídos, que acusam Macron de objectivamente não entender os verdadeiros fundamentos da civilização islâmica e as suas raízes teológicas. Para o líder francês, o ano que agora começa deverá ser o da mudança e da consolidação dos valores republicanos – o despertar republicano –, desde sempre por si exultados, e configurados no que deverá ser um efectivo combate à radicalização islamista e ao extremismo político. A sua ambiciosa agenda vai agora ser posta à prova, marcada, desde logo, com o estigma de proteger os “tradicionais valores republicanos” à custa da inequívoca alienação, para si inevitável, da orientação religiosa da comunidade muçulmana. Por saber fica a resposta que a comunidade muçulmana, nomeadamente a que é representada pelas gerações mais jovens, irá dar ao impositivo plano, que parece, entretanto, ignorar que a muitas vezes referenciada lei francesa de 1905 impede que o Estado exerça controlo sobre as mesquitas, o que, do ponto de vista islâmico, obsta a que os lugares de culto fiquem sob o controlo de um Estado secular. O tema reveste-se, de facto, de enorme complexidade e de profunda sensibilidade, num momento em que no seio da sociedade francesa cresce o sentimento de insegurança resultante do previsível aprofundamento das clivagens já existentes. Assim sendo, resta aguardar pelos efeitos práticos das medidas preconizadas pelo Plano Macron.
[i] COMISSÃO EUROPEIA. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/qanda_20_2325 [Consultado em 1 de Janeiro de 2021].
[ii] WORLDOMETER. Disponível em: https://www.worldometers.info/world-population/france-population/ [Consultado em 2 de Janeiro de 2021].
[iii] PEW RESEARCH CENTER. Disponível em: http://www.globalreligiousfutures.org/countries/france#/?affiliations_religion_id=0&affiliations_year=2020®ion_name=All%20Countries&restrictions_year=2016 [Consultado em 2 de Janeiro de 2021].
[iv] LE MONDE, 2 de Outubro de 2020.
[v] FRANCE 24, 2 de Outubro de 2020.
[vi] LE MONDE, 5 de Janeiro de 2021.
[vii] Agence France-Press, 2 de Janeiro de 2021.
[viii] CONSELHO EUROPEU. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/media/47338/1011-12-20-euco-conclusions-pt.pdf [Consultado em 4 de Janeiro de 2021].
[ix] EUROPOL. Disponível em: https://www.europol.europa.eu/about-europol/european-counter-terrorism-centre-ectc [Consultado em 1 de Janeiro de 2021].
[x] RADIO FRANCE INTERNATIONALE, 5 de Novembro de 2020.
João Henriques
Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris