Ariosto, Calvino e a fúria

Ariosto, Calvino e a fúria


Publicado pela primeira vez em 1516, o Orlando Furioso de Ariosto conta a história de um paladino de Carlos Magno que “por amor ficou furioso e demente”. Italo Calvino contextualizou a obra, selecionou os excertos mais relevantes e resumiu o resto numa edição moderna agora publicada em Portugal pela Cavalo de Ferro.


Também eu aprendi a dividir orações pelos Os Lusíadas. E, por isso, não pude deixar de me lembrar dessa epopeia quando comecei a ler um dos livros do ano publicados entre nós em 2020: Orlando Furioso de Ludovico Ariosto contado por Italo Calvino, saído do prelo da Cavalo de Ferro e com excelente tradução de Margarida Periquito. Encontrei facilmente a oitava do canto I que invocava Orlando: “Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,/ Fantásticas, fingidas, mentirosas,/ Louvar os vossos, como nas estranhas/ Musas, de engrandecer-se desejosas:/ As verdadeiras vossas são tamanhas,/ Que excedem as sonhadas, fabulosas; /Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,/ E Orlando, inda que fora verdadeiro.”

Orlando, personagem claramente de ficção, surgiu da pena do escritor italiano Ludovico Ariosto (1474-1533), numa primeira edição em 1516, com 40 cantos, e numa edição final em 46 cantos, em 1532. É um paladino de Carlos Magno, que se atrasa a ir combater os sarracenos por estar louco de amor por uma bela rapariga, Angélica, filha do rei de Cataio (China). Só a ida à Lua de Astolfo, um excêntrico duque inglês, e de S. João Evangelista, montados num hipogrifo, um cavalo alado, permitirá, a meio do poema, resgatar o juízo de Orlando (pois não é verdade que os loucos têm a cabeça na Lua?) e esquecer a amada, ainda a tempo de ele entrar na refrega e ganhar. Rodamonte, pude agora verificar ao ler o livro de Ariosto na versão curta de Italo Calvino (1923-1985), é o chefe do exército maometano que acossa Carlos Magno às portas de Paris. Por seu lado, Rugeiro é Ruggiero, o guerreiro mouro descendente de Heitor de Troia e apaixonado por Bradamante, a guerreira cristã que o converte ao cristianismo. Rodamonte acaba por morrer num duelo com Ruggiero. Calvino apresenta, após uma introdução em que expõe o contexto histórico-literário, os excertos mais relevantes do longo poema, intercalando-os com resumos do que se passa nos hiatos. 

O Orlando Furioso (a este nome não é estranho o título Orlando do romance de Virginia Woolf) começa assim, usando oitavas como mais tarde Camões faria: “Damas, cavaleiros, armas e amores,/ cortesias e audazes feitos canto,/ do tempo em que o mar Mouros vingadores/ passaram, para França molestar tanto,/ seguindo a ira e juvenis furores/ do rei de África, Agramante, porquanto/ ousou vingar a morte de Troiano/ em rei Carlos, imperador romano.// Direi de Orlando, simultaneamente,/ o que nunca foi dito em prosa ou rima:/ por amor ficou furioso e demente,/ tendo antes de sensato fama opima;/ se a que quase me fez o equivalente,/ e o pouco engenho sem cessar me lima,/ permitir que eu conserve o requerido/ para levar a bom fim o prometido.”

Camões, que publicou o seu mais célebre poema em 1572, tomou, portanto, Ariosto como modelo. O mesmo se passou com Miguel de Cervantes, que inaugurou o romance ao publicar Dom Quixote em 1605. Não é por acaso que esse género literário se inicia com uma paródia às sagas medievais de cavalaria e que um dos episódios do livro seja a destruição, após inspecção prévia, de alguns livros da biblioteca de Dom Quixote, à qual acaba por escapar o Orlando Furioso. Cervantes, tal como Ariosto, cultiva a ironia.

Mas quem é Orlando? Orlando é um mito, que remonta à história carolíngia. Seria o cavaleiro francês Roland (daí a Chanson de Roland), que morre na batalha de Roncesvalles, nos Pirinéus, contra os infiéis, após os cristãos terem invadido a Península Ibérica. Ele haveria de entrar para as canções de jograis que alastraram para Itália, numa amálgama que misturava as aventuras carolíngias com outras mais tardias, do chamado “ciclo da Bretanha”, onde entram os Cavaleiros da Távola Redonda, o Santo Graal e o amor cortês simbolizado por Tristão e Isolda. Em Ferrara, na corte dos Este, foi Matteo Boiardo (1441-1494) quem escreveu, em 1476, o Orlando Innamorato, publicado apenas em 1495, da qual Orlando Furioso é a continuação, usando até os mesmos personagens. Foi na mesma corte, que rivalizava com a de Florença, que haveria de surgir, em 1581, um outro grande poema renascentista, Gerusalemme Liberata, de Torquato Tasso (1544-1595). Por falar em Ferrara, lembro que pela universidade local passaram dois portugueses da diáspora: no século XVI o médico judeu Amato Lusitano, que aí fez anatomias, e, no século XVIII, o jesuíta e matemático Inácio Monteiro, que foi prefeito dos estudos. 

As lendas em verso de Orlando e outros paladinos circularam na Europa oralmente, chegando até aos dias de hoje. O meu pai sabia vários versos de cor das histórias de Carlos Magno que o seu pai – que morreu quando o meu pai ainda era rapazinho – lhe contava à noite numa aldeia do Marão. Seja-me permitido contar um passo das memórias que o meu pai escreveu: “Não conheci os meus avós paternos: ambos morreram, vítimas de uma epidemia, nos anos 20. Os meus avós maternos eram pequenos lavradores e pequenos comerciantes, na área da mercearia. Os meus pais eram também pequenos comerciantes, na área da panificação (moleiros e padeiros). A minha mais remota recordação é ver-me sentado à lareira com o meu pai, depois de a minha mãe e as duas minhas irmãs terem ido para a cama. Eu ficava a ouvir o meu pai contar-me histórias sobre Carlos Magno e os doze pares de França, e outras, que eu adorava ouvir e me entusiasmavam. Ainda hoje recordo com saudade essas histórias.” Talvez eu, neto do contador de histórias que nunca conheci, me chame Carlos por essa circunstância.

Calvino é um dos meus escritores preferidos. Gosto do modo como ele combina ficção e ciência, mentira e verdade, que se encontra, por exemplo, nas Cidades Invisíveis ou nas Cosmicómicas. No seu livro Ponto Final. Escritos sobre Literatura e Sociedade (Teorema, 2003), fiquei maravilhado ao saber que, para ele, o maior prosador em língua italiana era Galileu, que por sua vez admirava Ariosto. No livro ora em apreço Calvino mostra o encanto que tinha por esta obra prima da literatura italiana, que progride num enleio de voltas e reviravoltas, fazendo-me lembrar as voltas e reviravoltas da Guerra das Estrelas, que não é mais do que um romance de cavalaria em que os cavalos são naves espaciais. Vejamos como Calvino apresenta Orlando: “O Orlando Furioso anuncia-se, desde o início, como o poema do movimento, ou melhor anuncia o tipo especial de movimento que o percorrerá de cima a baixo, um movimento em linhas quebradas, em ziguezague. […] É com esse ziguezague, traçado por cavalos a galope e com as intermitências do coração humano que somos introduzidos no espírito do poema. O prazer da rapidez de acção mistura-se imediatamente com uma sensação de largueza na disponibilidade do espaço e do tempo.”

Apesar da fama do poema, a primeira versão completa dele em português é o belo volume, saído em 2007 também da Cavalo de Ferro, com ilustrações, tal como a versão de Calvino, do francês Gustave Doré (o original deste, com mais de 600 gravuras, saiu na Hachette,em 1879). A introdução, notas e resumo são da mesma tradutora, Margarida Periquito, que do italiano traduziu outros autores como Giacomo Leopardi, Carlo Collodi, Dino Buzzati, Romana Petri, etc. Foi aliás dessa edição de formato maior e mais volumosa que foram retirados os versos para a presente edição, podendo numa ou noutra ser admiradas as engenhosas soluções encontradas para a rima em português, mantendo o ritmo e a beleza do original. Entre as tentativas anteriores de traduzir Ariosto encontra-se uma, restrita ao canto I, do poeta Gomes Leal, em 1889, a partir do francês, e outra em prosa de Xavier da Cunha, em 1895. As duas muito aquém da actual…

Qual é o episódio de Orlando que mais me fascinou? Foi a cena de ficção científica avant la lettre, em que o hipogrifo vai à Lua resgatar o siso de Orlando. Um pormenor irónico é que Astolfo encontra na Lua parte do seu siso, que ele não sabia ter perdido. Essa viagem imaginária à Lua foi bastante anterior a outra com o mesmo destino do astrónomo alemão Johannes Kepler no seu conto em latim Somnium (“Sonho”), saído em 1634, e, ainda mais, às viagens de Cyrano de Bergerac, Edgar Allan Poe e Júlio Verne. Mas, muito antes de Ariosto, no século II, já Luciano de Samósata, tinha descrito uma viagem à Lua, em Uma História Verdadeira. Ariosto canta uma Lua habitada: “Outros rios e lagos, campinas estranhas/ há lá, como não os há entre nós;/ outras planícies, vales e montanhas,/ a que cidades e aldeias dão voz; com casas como aquelas, tamanhas,/ Astolfo não viu antes nem após;/ e há selvas amplas, ermas e severas,/ onde as ninfas dão sempre caça às feras.”

Volto ao livro Ponto Final de Calvino, transcrevendo um passo muito interessante: “Ao ler Galileu gosto de procurar as passagens em que fala da Lua: é a primeira vez que a Lua para os homens se torna um objecto real, que é descrita minuciosamente como coisa tangível, e, no entanto, assim que a Lua aparece, na linguagem de Galileu sente-se uma espécie de rarefacção, de levitação: eleva-se-nos numa encantada suspensão. Não é por acaso que Galileu admirou e anotou o poeta cósmico e lunar que foi Ariosto. […] O ideal de olhar sobre o mundo que guia também o Galileu cientista alimenta-se de cultura literária. De tal modo que podemos assinalar uma linha Ariosto-Galileu-Leopardi como uma das linhas de força mais importantes da nossa literatura.” Ciência e literatura estão mais juntas do que normalmente se pensa.