1. Celebrar o Natal nas circunstâncias trágicas que Portugal e o mundo atravessam torna ainda mais dramática a situação daqueles que estão isolados em lares, em hospitais, em orfanatos, em cadeias ou em solidão profilática individual. Este é o Natal mais traumático, mais difícil e mais triste deste século que leva 20 anos. Foram duas décadas vividas numa euforia que alternou com sobressaltos negativos e colossais, como a crise bancária iniciada em 2008 e, agora .a pandemia.
De uma forma natural, o primeiro pensamento de afeto vai, pois, para os mais velhos, os pequeninos e os doentes que não podem receber visitas, carinhos, presentes e, muitas vezes, nem um aceno ou um beijo mandado à distância através de uma janela, a partir da rua ou de um telemóvel.
Estejamos onde estivermos, praticamente todos teremos alguém com quem conseguimos encontrar-nos. É verdade também que o Natal, apesar da aproximação que se procura, é, mesmo em anos normais, muitas vezes um tempo de tensão e tristeza devido a opções e disputas que dividem famílias. Não são assim tantos os casos em que tudo corre sem sobressaltos e como se gostaria. São dramas correntes que este ano são agravados pela pandemia, cujas consequências já se contam em milhões de vidas, dezenas de milhões de empregos perdidos, patrimónios desfeitos e irremediáveis traumas psicológicos. Não haverá praticamente ninguém no planeta que não tenha sentido angústia e medo. Um medo que pode não ter a ver apenas connosco, mas que diz, por vezes, mais respeito àqueles que mais queremos, sejam familiares, amigos ou gente que admiramos. A cada um cabe proteger-se e proteger os outros da melhor forma possível, minorando os riscos em tempos de mais proximidade humana.
Os últimos dias trouxeram vacinas mas, simultaneamente, novas e fundadas preocupações, dada a modificação e multiplicação do vírus. Pouco ainda se sabe sobre a matéria mas, obviamente, não é bom.
Na corrida contra a doença, o mundo mais desenvolvido reagiu rapidamente, investindo, protegendo-se, utilizando os seus poderosos recursos, enquanto no dos muito pobres (onde quer que eles vivam) não surgirão defesas contra a doença antes de alguns anos. Houve curas mais avançadas para ricos. É assim desde os primórdios da humanidade.
Apesar de tudo, há luzes que diariamente se acendem e nos animam. São sinais que chegam da ciência, dos esforços das organizações internacionais, dos Estados mais avançados, dos profissionais de muitas áreas, das confissões religiosas, dos voluntários, dos familiares, dos amigos e, às vezes, de desconhecidos que nos amparam e consolam.
Temos de nos defender, resistir e ter esperança. É a esperança que faz caminhar a humanidade e a tem mantido viva, apesar do percurso aparentemente suicidário que ela traçou para si própria.
2. Entretanto, no terreno duro do quotidiano português não há razões objetivas para estar otimista relativamente ao plano de vacinação da covid-19. Basta saber o que aconteceu com a campanha da gripe e os seus sucessivos falhanços. Como se esses antecedentes não chegassem, surgiu a notícia de que Francisco Ramos, o timoneiro da “operação vacina”, foi nomeado presidente da administração do Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. Será que as suas responsabilidades são compatíveis com o exercício em part-time de um lado e de outro? Isto para não questionar a circunstância de a pessoa ser alguém que ocupou sucessivos cargos sobretudo por indicação político-partidária. Alguém explica? Quem dá cobertura a esta situação?
3. O caso do ucraniano assassinado por agentes do SEF é aterrador. Pelo ato bárbaro cometido sobre pessoa indefesa, por toda a operação de encobrimento que se lhe seguiu, pela ausência de reações atempadas dos poderes político, judicial e mediático, a todos os níveis. Todos os portugueses com algum grau de responsabilidade e possibilidade de intervenção cívica têm de reconhecer que não estiveram à altura da gravidade dos factos, apesar de eles terem ocorrido precisamente quando o país entrava de emergência em confinamento. Mesmo assim, não vale a pena tentar justificar o que quer que seja. Foi uma vergonha da qual só escapou a Provedora de Justiça. Honra lhe seja feita. No domingo surgiu, pelo Correio da Manhã, a notícia de que o médico legista que denunciou o crime não viu o seu contrato de trabalho renovado pelo Instituto de Medicina Legal. Ao que parece, alegam-se motivos que não os da denúncia. Há que esclarecer o assunto rapidamente, porque a coisa cheira a esturro. Há mais é que louvar e até condecorar este médico, que percebeu o que aconteceu na sala de torturas do aeroporto. Talvez até por ser brasileiro e saber quanto é penoso ser estrangeiro e desprotegido em Portugal.
4. No campo da política, Marcelo brilha. Está, porém, a ser atacado mais por analistas do que pelos rivais e deu uma entrevista em que leu a sentença condenatória da ministra da Saúde, Marta Temido, e de Eduardo Cabrita, o titular do MAI. Costa fará orelhas moucas, o que não é difícil estando em isolamento. Vai evitar mexer no Governo o mais que puder. Mudanças, provavelmente só depois da presidência europeia, ou seja, no verão. Sucedem-se entretanto sondagens legislativas que mostram o PS à frente com uma margem confortável, enquanto o PSD marca passo (ou até Passos). A alternativa de centro-direita não se adivinha, antes definha. Para existir teria mesmo de ser com o Chega e ser mesmo de direita, o que colocaria certamente o país perante movimentos sociais e sindicais de hostilidade.
5. É muito curioso analisar o comportamento de alguns dos entrevistadores de André Ventura. Adotam uma agressividade como se estivessem num debate como parte. São posturas que contrastam com a forma suave e subserviente como questionam outros políticos. Foi especialmente notada a hostilidade de João Adelino Faria, na RTP3, em relação ao líder do Chega. Essa agressividade previsível é uma preciosa ajuda para Ventura, que a vira a seu favor, aumentando o grau de notoriedade e usando mensagens simplificadas. Há uns anos, o Bloco cresceu no colo de parte da classe jornalística, farta do PS e do PCP. Hoje, Ventura e o seu estratego Pacheco de Amorim (uma espécie de Steve Bannon em versão lusitana) levam a água ao seu moinho, alavancando o crescimento na hostilidade emotiva de que são alvo por quem tem medo de sair do politicamente correto e mostra manifesto excesso de zelo.
Escreve à quarta-feira