Retalhos da vida judiciária III – Olhar e ver


Há, de facto, muito olhar, mas há pouco ver, e o olhar é, ele mesmo, muito mais limitado do que parece.


Existe a ideia, mais ou menos generalizada, de que – ao contrário do que aconteceu no passado – o nosso sistema de justiça é hoje alvo de amplo escrutínio público, em particular através da comunicação social. Permito-me discordar, não no que toca à análise do passado (onde, de facto, e do que me é dado ver em diacronia, a justiça tendia à opacidade, por razões intrínsecas e extrínsecas), mas sim no que respeita ao presente. Na verdade, este escrutínio é mais aparente do que real – e digo-o com desapontamento, porque considero não só que a justiça deve ser e tem de ser escrutinada, mas também que (e apesar dos pesares que a vida me trouxe e ensinou) a comunicação social tem um papel fundamental numa sociedade aberta e democrática. Há, de facto, muito olhar, mas há pouco ver, e o olhar é, ele mesmo, muito mais limitado do que parece. Vamos por partes, começando pelo olhar.

Com efeito, existem muitas notícias e muita opinião, mas quase só sobre alguns processos (que estão longe de dar uma ampla e correta visão de conjunto), maioritariamente de dois tipos: processos que envolvem pessoas conhecidas; e processos que causam “escândalo”, “emoções”, normalmente de natureza passional ou com algum ingrediente do estilo “o homem que mordeu um cão”. Por outro lado, também existem notícias e opiniões sobre temas de justiça, normalmente temas ditos fraturantes, mas muito frequentemente motivados por ou relacionados com aqueles dois tipos de processos, e mais os primeiros do que os segundos. Contudo, poucas vezes as notícias são mais do que relatos – e muitas vezes rápidos e parciais – do que acontece nos processos. São relatos de episódios, sendo certo que, hoje, a maior parte do jornalismo sobre justiça consiste em narrar partes de processos, fazendo a narrativa processual as vezes do jornalismo de investigação (que exige os meios materiais e humanos e o tempo de que se não dispõe). O jornalismo de investigação é essencial, seja sobre tudo em geral, seja sobre a justiça em particular. Mas, salvo melhor opinião, andar, qual rémora, à boleia da narrativa pública de processos e partes deles tem pouco de jornalismo de investigação. Quanto às opiniões, há para todos os gostos, e também aqui (como nas notícias) há exceções no sentido de ir para lá da superfície e dos retalhos, mas uma grande parte das opiniões não é muito informada, acontecendo não raras vezes haver excesso de impressões, muito ouvir dizer e até preconceitos ou agendas (mais ou menos óbvios). Não é sempre, valha a verdade, mas é frequente, e impera um certo achismo.

Ora, tudo isto de escrutínio tem pouco. De olhar, tem muito, às vezes até tem quase só “entreter” ou “dizer presente”; mas de ver, isso tem pouco. Não é essencialmente uma crítica (aqui e agora, pelo menos), é uma constatação. Os dias sucedem-se numa espiral de “casos”, de “escândalos”, de “episódios”, e muito de narrativas de parcelas processuais – seja de um lado, seja de outro, embora seja mais de um lado do que do outro, estatisticamente falando, pela razão elementar de que há um lado das coisas que tem mais sucesso, que vende mais, que é mais apelativo, sendo sociologicamente mais conforme ao ar dos tempos. Quem quer ver, ouvir e ler coisas “normais” ou, pelo menos, “cães que mordem o homem”? Parece que poucos, ou nenhuns, e é muito mais interessante “uma mulher barbuda”, “um nariz de Gogol” ou “uma marquesa de Távora no patíbulo”. E também é mais rápido, mais fácil, e no dia seguinte, ou três dias depois (e três dias é o tempo médio dos circos, das feiras e das romarias), já passou, e venha outro “caso”, outro “número”, outro “escândalo”.

O que falta, a meu ver, para se poder começar a falar em verdadeiro escrutínio, e para que a sensação de amplo escrutínio não seja em larga medida exagerada, e até falsa e enganosa, é simples de enunciar, mas leva tempo e dá trabalho a fazer (e também exige, diga-se, que a justiça e os seus agentes sejam mais abertos, e que sejam, em termos de estatística e de dados, mais exigentes, elaborados e sofisticados do que são, e menos corporativos também, todos): por um lado, uma tentativa de visão mais ampla, se possível de conjunto, e desligada de um número diminuto de casos e de episódios; por outro lado, mesmo nos casos “eleitos” para a espuma dos dias, uma visão mais crítica sobre as posições, as atitudes e as decisões, olhando para tudo isso com atenção, e não indo logo à conclusão, ao soundbite e/ou ao episódio pitoresco ou sonante. Olhar para as coisas criticamente, com profundidade, para ver. Para tentar ver, mais e melhor, ou tudo; e, desde logo, dando dois exemplos que considero críticos, para tentar ver o que assinalei nas duas crónicas antecedentes: as “conversas de snack-bar” e o “copia, corta e cola”. Para começar, era um bom serviço à República.