O mensageiro inesperado


Em 1990, cientistas da Universidade do Wisconsin imaginaram e mostraram que podiam injetar mRNA sintético num organismo e assim comandar as suas células para produzirem uma proteína.


 

As notícias de que as primeiras vacinas contra a covid-19 estão prestes a ser aprovadas pelos reguladores fizeram as manchetes dos jornais no último mês. Um destaque especial tem sido dado ao facto de as primeiras vacinas a passarem a exigente barreira dos ensaios clínicos serem de um tipo completamente novo. No seu âmago existe uma espécie particular de material genético, o RNA mensageiro (mRNA), que transporta informação sobre o vírus. A história da invenção e desenvolvimento das vacinas de mRNA e da sua concretização enquanto arma fundamental no combate à pandemia exemplifica, de forma paradigmática, o valor que ideias e esforços científicos, aparentemente irrelevantes e inúteis na sua génese, podem assumir.

 

O mRNA contém informação sobre como fazer uma proteína. As células de todos os organismos usam inúmeras destas fitas de mRNA para produzir as centenas de diferentes proteínas (e.g. insulina, hemoglobina) necessárias à sua sobrevivência. Em 1990, alguns cientistas da Universidade do Wisconsin imaginaram e mostraram que podiam injetar mRNA sintético num organismo e assim comandar as suas células para produzirem uma proteína [1]. Nas suas conclusões idealizaram que a nova técnica poderia um dia ser utilizada para criar vacinas alternativas. Na altura, poucos levaram a sério o novo conceito face à sua natureza rebuscada e aos obstáculos inerentes à extrema vulnerabilidade do mRNA sintético e à sua tendência para provocar respostas adversas.

A investigadora húngara Katalin Karikó, da Universidade da Pensilvânia, foi uma das poucas pessoas a entusiasmar-se desde logo com a nova ideia. Determinada a ultrapassar os obstáculos técnicos e científicos, colecionou rejeições sucessivas aos seus pedidos de financiamento e enfrentou a falta de entusiasmo de colegas e administradores ao longo de anos. Mas a perseverança acabaria por dar frutos e, em 2005, Karikó e o colega Drew Weissman iniciaram a publicação de uma série de artigos em que descreviam estratégias de modificação do mRNA que reduziam a sua vulnerabilidade e propensão para gerar reações imunológicas adversas [2]. Estes avanços comprovaram que a ideia de usar mRNA como medicamento era tecnicamente viável. Embora não tenham atraído de imediato as atenções, estas descobertas estiveram na génese da fundação da Moderna e da BioNTech, duas empresas que apostaram em força na tecnologia de mRNA e viriam a ser responsáveis pelas vacinas de mRNA contra a covid-19.

As vacinas de mRNA contra a covid-19 contêm instruções que compelem as nossas células a produzir certas proteínas do vírus SARS-CoV-2. Esta síntese in vivo funciona como um estímulo controlado que prepara o nosso sistema imunitário para combater infeções futuras. Apesar da eficácia demonstrada em ensaios clínicos, a facilidade com que as vacinas de mRNA se degradam permanece o seu calcanhar de Aquiles. Esta debilidade pode ser contornada, em parte, embrulhando o mRNA em nanopartículas de lípidos ou modificando de forma cirúrgica a sua estrutura, como demonstrado por Karikó. A vacina da Moderna, por exemplo, pode ser armazenada a 2-8 °C mas, em contrapartida, a vacina da parceria BioNTech/Pfizer exige temperaturas ultrabaixas de -70 °C. No último caso, o frio exigido dificulta a já de si complexa gestão de programas de vacinação, que se querem rápidos e eficientes. Assegurar que as vacinas são mantidas a temperaturas tão baixas durante o transporte entre fábricas, armazéns, hospitais, centros de saúde ou farmácias constitui um esforço de logística tremendo. As arcas de ultracongelação são um elemento fulcral deste puzzle. Infelizmente, a procura por estes equipamentos especializados irá provavelmente exceder a oferta, atrasando ou mesmo comprometendo muito planos de vacinação.

A forma como, em 30 anos, uma curiosidade científica evoluiu ao ponto de emergir de forma inesperada como uma das melhores soluções para combater a pandemia de covid-19 constitui uma história notável de progresso científico. Por um lado, o caso mostra como ideias estranhas e aparentemente inúteis podem atrair a atenção de alguns fiéis indefetíveis que, com os seus esforços e contributos pioneiros, acabam por estimular o interesse científico, comercial e institucional. Mas é também evidente que o sucesso das vacinas de mRNA resulta da acumulação de uma multitude de pequenos avanços, contributos incrementais e estudos fundamentais que acabariam por originar uma tecnologia de valor inquestionável. Os previsíveis benefícios sanitários, sociais e económicos das primeiras vacinas de mRNA mostram que vale a pena investir na curiosidade e no engenho científico, mesmo quando o seu impacto é de todo impercetível.

[1] Wolf, J. et al., Direct gene transfer into mouse muscle in vivo, Science, 247 (1990) 1465-1468.
[2] Karikó, K., et al., Suppression of RNA recognition by Toll-like receptors: the impact of nucleoside modification and the evolutionary origin of RNA, Immunity, 23 (2005)165-175.

 

Professor no Instituto Superior Técnico
miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt