A fiscalização da constitucionalidade pelos tribunais


Tem vindo a ser consolidada pelo TC a jurisprudência de que os direitos fundamentais, mesmo em situação de pandemia, não podem ser restringidos por resoluções governamentais.


Desde que a pandemia foi declarada a nível mundial que o país tem assistido a sucessivas supressões dos direitos constitucionais dos cidadãos. Nalguns casos, essas supressões ainda foram legitimadas pela declaração do estado de emergência, conforme exige o art.o 19.o da Constituição. Noutros casos, porém, as autoridades, fora do estado de emergência, suprimiram direitos fundamentais dos cidadãos sem qualquer cobertura constitucional.

Uma das situações mais graves de supressão dos direitos fundamentais ocorreu na Região Autónoma dos Açores, onde foi decretada uma quarentena obrigatória de 15 dias num quarto de hotel a todos os cidadãos que se deslocassem ao arquipélago. Essa situação só terminou quando, em Maio passado, o Tribunal de Ponta Delgada julgou procedente um habeas corpus de um cidadão enclausurado no hotel, devolvendo-o à liberdade. E a essa liberdade foram igualmente devolvidos todos os restantes cidadãos que se encontravam detidos nos hotéis, uma vez que, apesar de o habeas corpus apenas ter efeito num caso concreto, o anterior Governo Regional dos Açores terminou imediatamente as quarentenas ilegais.

A decisão do Tribunal de Ponta Delgada foi confirmada pelo Tribunal Constitucional que, no seu acórdão 403/2020, afirmou que “todo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art.o 165.o, n.o 1, al. b) da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um direito, liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.

O anterior Governo Regional dos Açores não desistiu, porém, do intuito de estabelecer quarentenas obrigatórias, que correspondem a verdadeiras privações da liberdade fora dos casos em que a Constituição o admite. Foi assim que aprovou a resolução do Conselho do Governo 207/2020, de 31 de Julho de 2020, a qual obriga os passageiros a apresentar comprovativos de testes já realizados, ou a realizá-los à chegada, ou a realizar “isolamento profilático” em hotel definido para o efeito.

Caso o passageiro recuse esses procedimentos, determinou o n.o 5 da resolução que “a autoridade de saúde local pode, no âmbito das suas competências, determinar a realização de quarentena obrigatória, pelo período de tempo necessário à obtenção de resultado de teste de despiste ao vírus SARS-CoV-2, ou, caso o passageiro não concorde realizá-lo, pelo período de tempo necessário a completarem-se catorze dias desde a sua chegada à Região, em hotel definido para o efeito, sendo os custos da mesma imputados ao passageiro que assim proceda”. Em relação ao regime anterior, a diferença é que o n.o 6 da resolução prevê que “nos casos em que seja decretada quarentena obrigatória pela autoridade de saúde, a mesma deve, no prazo de 24 horas, ser submetida a validação judicial junto do tribunal competente”.

Sucede, porém, que tendo a autoridade de saúde solicitado ao Tribunal de Ponta Delgada a validação judicial de uma quarentena de quatro pessoas, este indeferiu liminarmente esse pedido, considerando inconstitucional a privação da liberdade fora do estado de emergência e que a resolução do Conselho do Governo dos Açores se ingeria em matéria reservada à Assembleia da República, sendo por isso organicamente inconstitucional. Interposto pelo Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, este veio, no seu acórdão 687/2020, do passado dia 26 de Novembro, a confirmar esta decisão, julgando essa norma “inconstitucional, por violação do disposto nas alíneas b) e p) do n.o 1 do artigo 165.o da Constituição”.

Tem vindo a ser, assim, consolidada pelo Tribunal Constitucional a jurisprudência de que os direitos fundamentais, mesmo em situação de pandemia, não podem ser restringidos por resoluções governamentais. O que se estranha é que estas decisões só surjam em fiscalização concreta da constitucionalidade, uma vez que as entidades que têm poderes para requerer a fiscalização abstracta da mesma não o estão a fazer. No momento em que se fala de fiscalizar a constitucionalidade da exigência de uma auditoria para fazer nova transferência de fundos para o Novo Banco, há muitas outras medidas que afectam os cidadãos cuja constitucionalidade há muito deveria ter sido fiscalizada.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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