Joseph Campbell e os mitos

Joseph Campbell e os mitos


O professor de Literatura, antropólogo, ensaísta e conferencista norte-americano dedicou praticamente toda a sua vida ao estudo e à explicação dos mitos.


O professor de Literatura, antropólogo, ensaísta e conferencista norte-americano Joseph Campbell (1904-1987) dedicou praticamente toda a sua vida ao estudo e à explicação dos mitos, procurando pontes entre os mitos da Antiguidade Clássica, das religiões orientais, da Igreja cristã, da moderna cultura popular e até dos índios americanos. Para Campbell, há temas comuns nessas várias mitologias: ele defendeu a tese do monomito, ou “jornada do herói”, que é tratada num dos seus primeiros livros, O Herói de Mil Faces (1949): o herói sente uma chamada para a aventura, entra, após um período de iniciação, num mundo extraordinário onde experimenta provações, enfrenta a certa altura um desafio mortal, vence, ganhando uma recompensa e, de volta ao mundo comum, vai com ela ajudar as pessoas comuns. O leitor encontrará ressonâncias deste enredo nas histórias de Prometeu, Buda e Jesus Cristo, mas também nalguns filmes da Disney e da série Star Wars, de George Lucas (nestes casos houve influências claras de Campbell).

Qual foi a “jornada de herói” de Campbell, isto é, a história da sua própria vida (há um livro autobiográfico de entrevistas precisamente com esse título)? O apelo à aventura intelectual que empreendeu ao longo da vida começou quando, levado pela mão do pai, visitou as salas sobre os índios americanos no Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, em cujos arredores nasceu. O jovem ainda hesitou em ir para ciências (estudou Matemática e Biologia no Dartmouth College), mas acabou por se licenciar em Literatura Inglesa e fazer um mestrado em Literatura Medieval na Universidade de Columbia. Teve uma curta mas bem-sucedida carreira no atletismo. Tendo em 1927 obtido uma bolsa para estudar na Europa, nas universidades de Paris e Munique, a sua vida mudou. Além de ter ficado fluente em francês e alemão e de ter aprendido sânscrito, teve uma epifania ao contactar com a obra de James Joyce (Finnegans Wake tem uma ligação óbvia à “jornada do herói”) e de Thomas Mann, com a arte de Pablo Picasso e Paul Klee e com a psicanálise de Sigmund Freud e Carl Jung. Como influências filosóficas marcaram-no Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer. Nunca fez um doutoramento.

De volta à América em 1929, foi apanhado pela Grande Depressão. Decidiu fazer durante cinco anos um estudo independente, dedicando-se à análise comparada das mitologias. Leu, leu e leu. Depois de um encontro com Jiddu Krishnamurti, o famoso filósofo e orador indiano, ficou muito interessado pelo pensamento oriental, interesse que aprofundou depois de conhecer Heinrich Zimmer, o grande especialista alemão em filosofia hindu. Em 1934 começou uma carreira de professor de Literatura no Sarah Lawrence College, em Nova Iorque, onde ensinou durante quase quatro décadas. Casou com uma sua ex-aluna, Jean Erdman, bailarina e coreógrafa havaiana que morreu em maio deste ano, com a bonita idade de 104 anos.

Do prelo da Lua de Papel acaba de sair em português o mais popular livro de Joseph Campbell, O Poder dos Mitos, traduzido por João Carlos Silva. A capa representa o mito cristão de São Jorge e do dragão, associado a Jorge da Capadócia, o soldado romano que com o martírio ganhou aura de santidade (na história do dragão há também elementos da “jornada do herói”). A obra consiste num conjunto de entrevistas feitas pelo veterano (tem hoje 86 anos) da televisão americana Bill Moyers, para uma série televisiva da PBS de 1988 (acessível na Amazon Prime). São seis episódios de uma hora cada, os primeiros cinco gravados no rancho de George Lucas no Texas (uma conexão com Star Wars) e a última no Museu Americano de História Natural (um regresso simbólico à infância). As últimas gravações foram feitas pouco antes de Campbell morrer, de cancro do esófago. Campbell já não pôde, portanto, ver nem a série nem o livro, do qual saiu primeiro uma versão ilustrada e depois uma outra apenas textual, que é aquela que o leitor português tem agora à sua disposição. A série e o livro foram êxitos retumbantes, um pouco como tinha acontecido com Cosmos, a série televisiva, de 1980, de Carl Sagan, exibida também na PBS, e o livro que a Gradiva publicou em Portugal (a propósito, esta editora está a publicar esplêndidos álbuns de banda desenhada sobre os mitos da Antiguidade Clássica, com coordenação do filósofo francês Luc Ferry). 

Passados mais de 30 anos, o livro lê-se muito bem. Fala do que é universal no humano e, portanto, não havia nem há o risco de se desatualizar (tal como Cosmos não se desatualizou). Interessou-me em primeiro lugar a relação de Campbell com a ciência, que o desafiou em jovem. Na introdução, Bill Moyers expõe-na do seguinte modo: “Ele defendia que não foi a ciência a diminuir os seres humanos ou a divorciar-nos do divino. Pelo contrário, as novas descobertas da ciência ‘unem-nos aos antigos’ quando nos permitem reconhecer em todo este universo ‘um reflexo ampliado da nossa própria natureza mais íntima; para que sejamos na realidade os seus ouvidos, os seus olhos, o seu pensamento e o seu discurso – ou, em termos teológicos, os ouvidos de Deus, os olhos de Deus, o pensamento de Deus e a Palavra de Deus’” (as aspas dentro das aspas são frases de Campbell). Que Deus é o de Campbell? O Deus universal revelado pelos mitos. Segundo Moyers: “Um mito é também uma máscara de Deus – uma metáfora para o que se esconde para além do mundo visível”. Educado na religião católica, Campbell abandonou-a, seduzido talvez pelas ideias orientais de comunhão do homem com a natureza em vez de domínio. É curioso que também Carl Sagan fale de uma certa espiritualidade ligada ao cosmos. O mesmo faz a sua viúva, Ann Druyan, que fala do sagrado existente na ciência no seu recente livro (numa entrevista que lhe fiz há dias, com Vasco Trigo, ela reforçou precisamente esse aspeto). Não podemos esquecer que a ciência surgiu da mitologia: a cosmologia substituiu os mitos antigos e a química substituiu os sonhos alquímicos.

Campbell professava uma religião difusa, mas gostava de discussões sobre a religião tradicional. Conta no livro a seguinte história passada com ele num ginásio nova-iorquino: “O padre, que estava ao meu lado, perguntou-me: ‘Então Sr. Campbell, é padre?’ Eu respondi: ‘Não, padre’. Ele perguntou-me: ‘É católico?’ Eu respondi: ‘Já fui, padre’. E então ele perguntou – e é interessante que tenha formulado a pergunta dessa forma: ‘Acredita num deus pessoal?’ ‘Não, padre’, respondi. E ele respondeu: ‘Bem, suponho que não há uma maneira, pela lógica, de provar a existência de um Deus pessoal’. ‘Se houvesse, padre’, disse-lhe eu, ‘qual seria então o valor da fé?’ ‘Bem, Sr. Campbell,’ disse o padre rapidamente, ‘gostei de o conhecer’. E foi-se embora. Senti que lhe tinha aplicado um golpe de ju-jitsu”. É o que se pode chamar teologia de ginásio…

Moyers pergunta a páginas tantas: “Está a afirmar que a mitologia é o estudo da grande história única da humanidade. Qual é essa grande história única?” Responde Campbell: “A de que surgimos do campo único do ser como manifestações no domínio do tempo, que é uma espécie de jogo de sombras num domínio intemporal. E nós jogamos o jogo nesse campo de sombras, usamos com todo o nosso poder o nosso lado de polaridade. Mas sabemos que o nosso inimigo, por exemplo, não é mais do que a outra face daquilo que veríamos se fôssemos capazes de nos desligarmos da nossa dualidade”.

A máxima de vida de Campbell tem uma inspiração oriental: “Follow your bliss”, “Segue a tua felicidade”. Percebo e concordo com o que ele quer dizer, mas desagrada-me a conotação de autoajuda, porque esta nunca o é, mas sim a ajuda, normalmente paga, prestada por outros.

Fiquei admirado ao aperceber-me de que este é o primeiro livro de Campbell em português europeu. Consultada a lista da Biblioteca Nacional de Portugal, não encontrei nenhuma obra dele na nossa língua e só uma obra organizada por ele: Heinrich Zimmer, Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indianas (Assírio & Alvim, 1997). Por oposição, ao pesquisar na Biblioteca Nacional do Brasil, encontrei cerca de uma dúzia de títulos traduzidos, para além dos dois já referidos (O Herói de Mil Faces, São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992, e A Jornada do Herói: Vida e obra de Joseph Campbell, São Paulo: Saraiva, 1994). Lá está a sua obra de maior fôlego, uma história mundial dos mitos em quatro volumes: As Máscaras de Deus (São Paulo: Atena, 2004). O Poder dos Mitos, que agora saiu em Portugal, saiu em 2003 na editora Atena, tendo conhecido mais de 20 edições. Talvez se possa concluir que a cultura brasileira se interessa mais pelos mitos do que a portuguesa. Mas, qualquer que seja o sítio do mundo onde vivamos, não podemos viver sem mitos.

Campbell é muito bom a criar metáforas e a contar histórias. É uma mente vibrante que sacode as nossas. Os mitos são desafios permanentes. Não temos de concordar com tudo, até porque muitos académicos, conhecedores da antropologia, da literatura e da teologia, já contestaram algumas das suas teses. Mas Campbell faz interpretações dos mitos que, sem dúvida, nos seduzem. Confesso que a mim me seduz esta espécie de “teoria unificada” dos mitos que ele propõe, um pouco como o Santo Graal (outro mito que, vindo dos celtas, passou para a cristandade), que é a teoria de unificação das forças dos físicos. Quer a ciência quer a literatura – a arte, em geral – comprazem-se em juntar aquilo que está separado.