Estranhas formas de vida


Para quem já teve um embaixador em Portugal que até torcia pela nossa seleção nacional de futebol, ter um diplomata que verbera ultimatos é um retrocesso sem perdão.


A pandemia é a mãe de muitas justificações, mas as costas largas do vírus não podem servir de desculpa para muito do que se passa nas opções, nas interações e nos comportamentos individuais, comunitários, nacionais e internacionais.

É certo que a pandemia e a sua mortandade generalizaram uma certa banalização da morte, marcada a indiferença perante o número de vítimas mortais da covid-19, algo que já estava a acontecer com acontecimentos fatais noutras latitudes. Quantas vezes não olhámos para o televisor ou para o ecrã digital e dispensámos segundos a dezenas, centenas e milhares de mortes num qualquer acontecimento só porque era longe da nossa porta? Agora somos bombardeados com vítimas mortais da covid-19 ou da ausência dos cuidados de saúde adequados a outras doenças que captam momentos da nossa atenção, cada vez mais tolhida pelas couraças que vamos criando para enfrentar a realidade.

Em Portugal e, provavelmente, no mundo, dependendo das religiões e dos seus valores, é como se tivéssemos passado do oitenta da sacralização do momento da morte para o oito da normalidade de uma notícia que tem poucas horas de existência nos média e na vida das pessoas até à próxima ou próximas vítimas. A volatilização do quotidiano chegou à morte, sem ponto de equilíbrio sobre os seus impactos reais, como tantas vezes acontece nas dinâmicas da vida nas suas diversas expressões.

Os Estados Unidos da América foram decisivos para a libertação do risco nazi e para o reerguer da Europa como território de paz, de democracia e de desenvolvimento. Essa linha de compromisso dos Estados Unidos com a Europa foi posta em causa pelo populismo de consumo interno e ignorância de Donald Trump, que persiste num posicionamento global do país à medida dos interesses do seu umbigo e do seu ego. A banda larga da ação presidencial tem-lhe permitido alimentar o seu eleitorado enquanto destapa a influência e posicionamento estratégico dos Estados Unidos no mundo. E os americanos não só deixam como têm gostado. Se, nas questões militares da presença na Europa, até se pode compreender que queiram gastar menos e que os europeus assumam maiores responsabilidades na sua defesa perante os riscos materiais e digitais, na dimensão comercial, a posição norte-americana é só ridícula. É o chamado “não faz nem deixa fazer”, que muitos portugueses até apreciam, a ver pelas atitudes pessoais e de algumas instituições. O recente ultimato dos norte-americanos sobre a influência chinesa nas telecomunicações, a propósito da Huawei e do 5G, sucede-se aos investimentos no porto de Sines e a tantas outras contradições da administração de Donald Trump. Não querem que os chineses façam, mas também não se propõem fazer. São uma força de bloqueio, uns empatas. O drama é que esta deriva demencial da atual liderança, em divergência com a história e com as marcas norte-americanas, corre o risco de ser renovada nas próximas eleições presidenciais. Para quem já teve um embaixador em Portugal que até torcia pela nossa seleção nacional de futebol, ter um diplomata que verbera ultimatos é um retrocesso sem perdão, em linha com os disparates da atual Casa Branca. Portugal terá de escolher sempre de acordo com a defesa do seu interesse nacional, em função dos seus valores e princípios-padrão. Nem sempre foi assim e nem sempre os valores-padrão estão apurados o suficiente, mas o critério soberano, com consciência da integração no mundo, terá de ser esse.

O problema é que este comportamento norte-americano está presente em atitudes que temos com partes do nosso território nacional. Por exemplo, a partir dos corredores de Lisboa ou do conforto de empregos públicos, tem-se assistido à emergência de movimentos que contestam a agricultura intensiva possibilitada pela água do Alqueva ou a profusão de estufas de produção agroalimentar na Costa Vicentina, sem indicarem qual a alternativa que propõem para as pessoas e para os territórios, para a vida de todos os dias, não dos que por lá passam ocasionalmente. É que o paradigma de abandono a que esses territórios estiveram votados pelos poderes mais ou menos centrais conduziu-os a uma estagnação, desertificação e ausência de investimentos em pilares essenciais da vida durante anos – sem que alguém de fora se importasse. O mesmo Miguel Sousa Tavares que agora puxa pelo tema das estufas na Costa Vicentina calcorreava, nos idos de 90, as dunas dessa costa com o seu jipe, sem qualquer pudor ambiental ou de preocupação com os ecossistemas daqueles territórios. Trump não faria melhor: olha para o que eu digo, não para o que eu fiz ou faço. Partilhar a preocupação com os impactos dos desequilíbrios faz-me defender que exista uma efetiva valorização sustentada desses territórios que criem emprego, sejam geradores de riqueza e dinamismo para as economias locais e reponham equilíbrios centrados nas necessidades das pessoas – tudo o que não foi e continua a não ser feito. É por isso que não é aceitável, também no plano local, o “não faz nem deixa fazer”.

A vida está a assumir estranhas formas de existência, sem memória, senso e sentido de equilíbrio. Não pode valer tudo, mas há quem continue a tentar.

Notas Finais:

Desesperados da bola // As contas foram aprovadas, a equipa joga e ganha e os extraídos dos cargos, em modo de pré-candidatos ao Benfica, continuam o bota-abaixo, sempre com preocupações de olhar ao espelho para questionarem a partir do passado e do presente “há alguém mais benfiquista do que eu?”, com o foco em Luís Filipe Vieira e os argumentos dos outros. Para eles, o Benfica tem três momentos fundacionais: quando foi fundado, quando saíram dos cargos e se voltassem a ter cargos. Pelo meio há um hiato de existência, apesar dos títulos, do património e da consolidação financeira.

Desesperados dos Média / Sem olhar a meios e ao que faz na sua casa, o grupo Cofina continua a procurar recuperar as vendas e as audiências à conta da distorção e predação do que outros grupos fazem ou das histórias que inventam, em conluio prático com o grupo Impresa.

Desesperados da Justiça // Enquanto prossegue o esforço de branqueamento do criminoso digital Rui Pinto, evidencia-se a solidez do pacto com a justiça. Afinal, a PJ não tem acesso aos discos, não tem as passwords de acesso, mas só acende quando o artista entende e, quiçá, para o que entende. A desculpabilização esboçada dos crimes digitais é só para proteger a correspondência da Procuradoria-Geral da República e de outros alvos do sistema de justiça?

Escreve à segunda-feira