Quando, em 1942, morre em Buenos Aires, com 42 anos, Roberto Arlt, que fez da vida escrita e trouxe esta dos recantos mais sórdidos da cidade, deixa em herança para os vindouros um conjunto de pequenos textos, de pequenas crónicas sobre as personagens – num sentido não literário do termo – que se tornaram indistintas da cidade onde as encontrou. Com selecção e tradução de Rui Manuel Amaral, que também assina um posfácio notável pela clareza e pelas linhas de leitura que deixa em aberto, Águas-Fortes Portenhas é uma galeria de pobres diabos, uma colecção de seres reduzidos a meia dúzias de traços fortes, rudes, que vemos desfilar num “empório infernal”: o homem da camisola caveada, legítimo esposo das engomadeiras que toma “posse jurídica e prática da porta”, passando os dias encostado a ela; o “squenun”, “poltrão filosófico” que, no café, “proferirá cátedras de comunismo e dissertará sobre o tema «quem não trabalha, não come»; ele, que nunca fez absolutamente nada durante o dia senão tomar banhos de sol”; o Cusco sinistro, cuja vida consiste em levar e trazer histórias entre comerciantes, coberto de “ruindades e invejas”; os “apanhadores de sol consuetudinários”, estudiosos de botânica que têm sempre o aspecto de vadios; o “homem que faz de morto”, “hipócrita do dolce fare niente” cuja vida consiste em fingir que trabalha; o homem que dá sempre razão; o “turco”, sonhador, que trabalha para jogar e joga para poder deixar de trabalhar; o homem rolha, que encontra sempre uma escapatória qualquer onde outro qualquer se afunda sem resgate; o parasita jovial, um “garronero” que se faz de morto quando é preciso encarar o empregado do café; Silvio Spaventa, que espantou a família no dia em que arranjou trabalho (“É verdade que trabalhas? Enlouqueceste?”); o relojoeiro, figura caída em desuso, pertencente a um “grémio misterioso e dono do tempo”; o “irmãozinho venal”, os ladrões e as suas histórias, o chato, aquele que se aborrece, os candidatos a milionários, os “assassinos, assaltantes de casa e quadrilheiros” cuja culpa reside sempre nas más companhias, o homem cuja ocupação é procurar emprego, o doente profissional, o invejoso. Nesta extensa colecção de excêntricos e marginais há uma característica que sobressai: nenhum deles faz o que quer que seja.
“No nosso país, ou melhor, na nossa cidade, a palavra “squenun” aplica-se aos poltrões maiores de idade, mas sem tendência para a bazófia, isto é, tem a sua exacta aplicação no filósofo do terraço, num desses tunantes perdulários, estóicos, que arrastam as alpercatas até à loja para comprar cigarros, e regressam depois para se instalarem no terraço de casa a apanhar banhos de sol até à hora de almoço, indiferentes aos resmungos do «velho», um velho que está sempre a podar a vinha caseira e que usa um chapéu preto, seboso como o eixo de um carro”
Se o realismo de Arlt, como realçou Ricardo Piglia, em que é a própria linguagem que parece nascer dos lugares marginais de onde escreve, dificilmente pode ser arregimentado para uma qualquer causa social, isso talvez se deva a uma absoluta ausência de revolta por parte destas figuras que permanecem sempre indiferentes “à riqueza, à poupança, ao futuro”. De facto, a cidade de Roberto Arlt, construída a partir das margens, é a consumação de uma cidade dos filósofos, à semelhança daquela sonhada por Platão. Porque, em última análise, todos esses seres que nada fazem, que se aborrecem de morte e que fogem a qualquer tipo de actividade, são filósofos, profundos conhecedores da vida, seres praticamente indiferentes a qualquer acontecimento exterior:
“Tem uma cabeça… mas… – Esse «mas» diz tudo. O nosso filosofante é o Sócrates do cortiço. É ele que intervém quando se dão aquelas confusões descomunais, é ele quem consola um marido enganado com duas frases de um Martín Fierro de pacotilha, é ele quem convence um calabrês a não cometer um homicídio complicado com a agravante de um filicídio, é ele quem, perante uma desgraça, exclama sempre pateticamente:
– há que aceitar, minha senhora. A vida é assim. Veja o meu exemplo. Não me aflijo com nada”
Talvez uma das características mais interessantes deste conjunto de pequenos textos de Roberto Arlt seja o grau de concentração de energia que cada uma destas figuras tem. De facto, todas elas são delineadas em breves traços, como se fossem pequenas notas – notas é, como informa Rui Manuel Amaral, o termo que Arlt preferia para estes pequenos textos – que tirava enquanto vagueava pelas ruas, como se fosse registando com o maior rigor possível as figuras excêntricas com que se deparava. Mas essa brevidade, as poucas linhas que usa para as desenhar, é talvez o que há de mais difícil de se fazer: não construir uma personagem, mas delinear, em breves traços, uma figura, que tem tanto de singular como de anónimo, que concentra em si um traço inaudito, nunca visto. Como refere Rui Manuel Amaral no posfácio: “Arlt observa, escuta, sente e escreve. Tudo começa e acaba na rua”. Não se trata, no entanto, de tornar literário as casas de má fama, toda a colecção de seres desocupados que vão comparecendo em Águas-Fortes Portenhas, sobrecarregando-os de efeitos, conferindo-lhes uma patine que lhes é estranha; pelo contrário, o objectivo declarado é trazer para o seio da literatura toda a diferença – de linguagem, de tonalidades, de seres – que Arlt vai encontrando, toda a inventividade dos dialectos que se movem nas margens, toda a maldade inscrita nas palavras e nos corpos: “arrancar palavras de todos os ângulos” contra os “senhores de colarinho bem passado, voz grossa, que esgrimem a gramática como uma lança e a erudição como um escudo contra as belezas que adornam a terra”.
Este “grémio de desocupados” é, na realidade, feito de seres inocentes, sem culpa, mesmo quando são capazes das maiores maldades, quando são “facínoras, turbulentos, azedos, malvados”. Com a sua impassibilidade, com a sua vida austera, feita de cigarros e longos períodos ao sol – aspiram apenas a uma “tarde eterna, com um longínquo pôr-do-sol, uma mesita sob uma árvore e uma jarra de água para a sede” – eles são os contemplativos, os verdadeiros donos das cidades.
“Desde então, não verga a mola. O seu trabalho é aborrecer-se, nada mais. Levanta-se às dez da manhã, põe o chapéu e vai até à esquina para se encostar ao balcão do café. Das dez às onze, apanha sol. Quieto como um lagarto, encostado à parede, com os pés cruzados, os cotovelos apoiados no peitoril da montra, a aba do chapéu protegendo-lhe os olhos, uma careta amarga lançando os seus dois catetos da ponta do nariz aos dois vértices dos lábios, triângulo de expressão matreira que se descompõe para cumprimentar superficialmente alguma vizinha”
E, de facto, Arlt desceu ao subterrâneo da cidade para trazer de lá estas figuras rapidamente esboçadas, estes tracejados rápidos e carregados, estes cristais claramente delineados que, sem futuro, sem passado ou presente, sem qualquer forma de horizonte, podem ter apenas como objectivo esse “único vestígio da impoluta passagem pela terra”: “umas cinzas puras”. São, na sua inutilidade, revolucionários, especialistas na arte da recusa: a cidade, é certo, precisa destes desocupados, mas eles arranjam sempre uma forma de escapar a qualquer tentativa de os inserir numa economia, a qualquer tentativa de arranjar para eles um papel a cumprir, nem que seja aquele de desocupados.
“E o caso é que ficam todos satisfeitos. Satisfeitos os funcionários da repartição por se terem visto livres de um colega «perigoso», satisfeito o chefe ao ver que com a ausência do doente o trabalho segue sem problemas, satisfeito o ministro por não ter de reformar o doente uma vez que este não adoeceu no desempenho do seu trabalho, satisfeito o médico por ter um paciente tão submisso e resignado, e satisfeito o doente por não estar doente (…)”
Se cada cidade existe sempre na diferença que se estabelece entre ela e esse imaginário que se vai produzindo aos poucos, com ou sem o concurso da literatura (hoje, talvez já não se possa pedir a esta esse papel social), a cidade de Arlt, a Buenos Aires que já não conhecemos, é esta cidade de filósofos, de contemplativos, de revolucionários. Porque eles, lidando com a antiga arte do ócio, conseguem algo que nos parece já impossível: não fazer nada.