Os picos de mortalidade registados desde março, pelo menos três períodos em que houve excesso de mortalidade por todas as causas em relação ao que seria esperado, foram hoje alvo de esclarecimentos na conferência de imprensa da DGS. A ministra da Saúde apresentou as conclusões do Instituto Ricardo Jorge sobre o tema, sublinhando que o aumento de mortes foi sobreponível à epidemia de gripe no início do ano, ao pico da covid-19 em abril e a ondas de calor e que a análise dos peritos do INSA “não sugere que uma menor utilização de urgências hospitalares e consultas hospitalares tenha intensificado” o efeito das elevadas temperaturas que se verificaram no verão.
A questão surgiu depois de o INE ter publicado uma nova análise que aponta para mais 6312 óbitos do que a média dos últimos cinco anos desde março, dos quais 1822 ligados à covid-19, mas o tema tem sido suscitado ao longo dos últimos meses em várias ocasiões. Em abril, um primeiro estudo divulgado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa apontou para um excesso de mortalidade que poderia ser de quase 4000 mortes entre 1 de março e 22 de abril, isto porque os investigadores defendiam que, uma vez que os acidentes rodoviários diminuíram no estado de emergência, não se poderia fazer comparações com meses normais de outros anos. Surgiram entretanto novas análises e alertas de médicos e administradores hospitalares, que pedem para serem conhecidas as causas de morte e admitem um impacto da quebra de atividade, quer por cancelamento quer pelo medo de procurar cuidados de saúde, na descompensação de doentes.
Baltazar Nunes, responsável pela divisão de epidemiologia do INSA, que também participou na conferência de imprensa, explicou por que não concorda com a metodologia do INE, que semanalmente tem vindo a divulgar novas análises sobre a mortalidade, e explicou também por que é que o INSA afasta que a quebra de cuidados possa ter sido o motivou ou a “principal causa” para o aumento de mortalidade.
“O cálculo do excesso de mortalidade deve ser realizado tendo em conta o fator provável para esse excesso. Calcular o valor de óbitos num período e subtrai-lo à média dos últimos cinco anos é um indicador mas é um indicador frágil na perspetiva de perceber quais os fatores que estão associados a esse aumento”, disse o investigador, que nos últimos meses tem feito a modelação da epidemia para o Ministério da Saúde. “Para fazer um cálculo mais preciso precisamos de ter em consideração se a mortalidade tem uma tendência crescente ao longo do tempo, perceber se é um período de verão ou de inverno, porque existe sazonalidade na mortalidade, e também entender quais são os possíveis fatores que possam provocar essa mortalidade”, disse Baltazar Nunes.
O investigador confirmou os picos no número de óbitos, indicando que foram coincidentes com três períodos: um primeiro relacionado com a epidemia de gripe do último inverno, um segundo relacionado com o pico dos casos de covid-19 em abril e um terceiro relacionado com o período de calor. “Ou seja, a mortalidade aumentou e depois decresceu”, concluiu. “Se o excesso de mortalidade estivesse relacionado com, ou se a principal causa da mortalidade fosse a ausência ou diminuição do acesso aos cuidados, o aumento de mortalidade não teria um comportamento de subida e descida. É essa a principal razão pela qual acreditamos que o aumento da mortalidade tem a ver com estes três fatores.”
A Direção Geral da Saúde já anunciou que as causas de morte ainda estão a ser codificadas, um processo que habitualmente só é feito no ano seguinte e este ano foi antecipado ao mesmo tempo que se finaliza a codificação das causas de morte de 2019.
A partir dos certificados de óbito das cerca das 100 mil pessoas que anualmente no país, os técnicos da DGS atribuem uma causa de morte a cada pessoa falecida, o que permite perceber quantas pessoas morrem todos os anos de doenças cardiovasculares, de pneumonia dos vários tumores, de causas externas como acidentes ou suicídios, estatísticas publicadas anualmente pelo INE. Médicos e administradores hospitalares já pediram uma avaliação mais detalhada e a divulgação de dados sobre as causas de morte que sofreram aumentos.
Numa entrevista ao i publicada esta fim de semana, o médico Miguel Oliveira da Silva, ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, defendia também a necessidade de mais esclarecimentos sobre o tema. "Tudo indica que serão doenças cardiovasculares mal tratadas ou diagnosticadas tardiamente, pessoas que não foram ao hospital ou á urgência por ter medo, e isto é grave. Não se pode olhar apenas para a covid-19", afirmou, apelando para que as autoridades de saúde falassem sobre o tema. "Mais tarde ou mais cedo, as contas terão de ser feitas e a autoridade de saúde tem de ser parte interessada em explicar o excesso de mortos que não têm, aparentemente, nada a ver com a covid-19".