João Maurício Brás. Um filósofo resistente

João Maurício Brás. Um filósofo resistente


No seu mais recente livro, João Maurício Brás continua o ataque a um rol de ideias pós-modernas que se têm espalhado pelo globo.


João Maurício Brás (JMB), doutorado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa, foi discípulo de Fernando Gil. Conheci-o através do Onésimo Teotónio de Almeida, professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e ensaísta, quando me pediram um prefácio para o livro deles Utopias em Dói Menor. Conversas transatlânticas com Onésimo (Gradiva, 2012). JMB teve o mérito de chamar a atenção para a mundividência de Onésimo, uma visão que contrasta com a visão pós-moderna que rege hoje em dia no mundo e em Portugal. Continuou a fazer a valorização das ideias do professor da Brown em dois volumes, um analítico e, outro, uma recolha de contribuições: Identidade, Valores, Modernidade – Pensamento de Onésimo Teotónio de Almeida (Gradiva, 2015) e Onésimo – Único e Multimodo (Opera Omnia, 2015).

JMB já antes tinha publicado O Pensamento Insuportável de Émile Cioran (Campo das Letras, 2006), um ensaio sobre as ideias do filósofo franco-romeno; A importância da Desconfiança (Veja, 2010); O Negativo. A importância do conceito na cultura e na história (Theya, 2017); e O Mundo às Avessas. O manicómio contemporâneo (Opera Omnia, 2018), um ataque cerrado à pós-modernidade. Logo os títulos de algumas secções são elucidativos: “Em todo o homem que come carne há um violador e um pedófilo”, “Os direitos de autor dos macacos,” “A ecossexualidade e a salvação da Terra” e “O pénis é uma construção social”. Ri-me muito, apesar de ser uma tragédia.

JMB publicou há meses um novo livro, Os Democratas que Destruíram a Democracia (Opera Omnia, 2019), onde continua o ataque a um rol de ideias pós-modernas que se têm espalhado pelo globo. Concordo na maioria das vezes com as objeções que JMB levanta a essa ideologia dominante e à sua estapafúrdia linguagem. Concordo em particular quando ele diz que “a crença de que tudo é possível e nada é verdadeiro, praticada pelos progressistas, é o que nos resta quando já não acreditamos em mais nada” (pág. 9). O relativismo é a negação do pensamento científico: não está tudo certo porque a ciência busca e descarta os erros, distinguindo as afirmações certas das erradas. E mesmo fora da ciência: não é a mesma coisa Shakespeare, que já cá está há séculos, e um escriba qualquer que acabou agora de chegar.

Deixo três excertos do novo livro, para que o leitor perceba melhor. O primeiro é: “O civilizado descobriu que a cultura ocidental afinal era obsoleta e má, racista, machista, sexista, homofóbica, patriarcal, heteronormativa e egofalocêntrica. (… ) Descobrimos o fim da história, o fim do homem, o fim da metafísica, que a ciência é ideologia, que não há verdade, nem objetividade, nem realidade, que tudo é cultural, político e construção social” (pág. 10).

O segundo: “E este é o tempo do estatuto superior da opinião. Aboliu-se o legado da religião, dos grande romances, dos tratados filosóficos, dos intelectuais verdadeiros e temos o predomínio da opinião. Não é a opinião de A ou B, mas a opinião que circula como conhecimento e esta é a substância da ideologia progressista” (pág. 77).

E o terceiro: “A lengalenga do novo mundo neoprogressivo diz-nos que não há verdade, mas apenas verdadezinhas, tonalidades que refletem o que funciona, como pregam os neopragmáticos” (pág. 171).

JMB está a falar daqueles que veem racismo e machismo em todo o lado, dos que trocam um facto por qualquer opinião, dos que inventaram a “pós-verdade”. Entre eles estão aqueles que querem reescrever a História por esta ter sido escrita por “homens brancos de meia-idade”. Estão nesse grupo os que querem derrubar a estátua do Padre António Vieira em Lisboa e os que recusam um Museu das Descobertas.

JMB usa uma linguagem forte para descrever o mundo em que vivemos, onde essas vozes imperam, amplificadas pela internet: “Transformámos o mundo numa fusão indistinta de casino, manicómio e supermercado. Nada de novo. Todos os tempos têm os seus delírios e os seus prosélitos. A novidade reside na capacidade tecnológica e científica inédita que transformou totalmente o nosso modo de vida” (págs. 10-11). É uma linguagem que eu não usaria, mas que ele tem todo o direito de usar. Insiste na imagem do manicómio, que será, segundo ele, governado pelos próprios doentes: “A pós-modernidade é, em muitos dos seus aspetos propagandeados, a visão de um conjunto de loucos sem profundidade que exaltam as suas taras particulares. Novos radicalismos e fundamentalismos com os seus messianismos e escatologias laicas bloqueiam totalmente a lucidez, a razão e a sensatez” (pág. 18).

O autor sustenta-se em Cioran: “Escrevia Cioran que lhe bastava ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, ouvi-lo dizer ‘nós’ com um tom de segurança, invocar os ‘outros’ e sentir-se seu intérprete, para que o considerasse não só um perigo como um inimigo. É essa a matéria de que são feitos os carrascos e os tiranos, que dividem a humanidade entre os puros e os ímpios” (pág. 23). 

JMB acusa o norte-americano Richard Rorty de se ter “transformado num culturalista relativista ignorante e cínico. Como todos o são” (pág. 29). JMB tem um estilo provocador. Encontrei-me várias vezes a concordar com o que ele dizia, mas não com a maneira como ele o dizia. Não sei se todos os relativistas são cínicos, quero acreditar que alguns sejam apenas ingénuos.

E também se mete – e bem – com o filósofo francês Bruno Latour. Quando se descobriu que o faraó Ramsés ii tinha morrido de tuberculose, Latour discordou, uma vez que o bacilo da tuberculose só foi descoberto por Koch em 1882. Antes dessa descoberta, não poderia existir a bactéria… Chama-se a isto “construtivismo”: as coisas não existem, têm de ser inventadas. Não há uma realidade, mas sim, e tão-só, construções mentais.

Os maniqueístas que dividem o mundo entre esquerda e direita notarão que JMB cita pensadores conotados com a direita como John Gray (filósofo político inglês que gosto de ler, apesar de não partilhar o seu ultrapessimismo), Roger Scruton (filósofo conservador inglês, falecido há pouco) e Jordan Peterson (psicólogo norte-americano, com fama de guru). Esses e outros autores, alguns conotados com outras bandas do espetro político, têm o mérito de nos fazerem pensar, qualquer que seja a nossa posição ideológica. Falo por mim: gosto de ouvir os argumentos dos que têm convicções opostas às minhas. De resto, a divisão entre direita e esquerda é hoje questionável. Uma pessoa pode ter certas ideias em geral atribuídas à direita e outras em geral atribuídas à esquerda. Concordo com JMB quando ele diz: “É bom lembrar que as grandes questões do século xxi não são entre a esquerda e a direita, o centro e os extremos, os democratas e os fascistas, mas entre lucidez, razoabilidade e sensatez e ignorância ou mesmo imbecilidade disfarçada de ilustração, irracionalidade e emotividade” (pág. 47).

O problema com Trump e Bolsonaro não é serem de direita – ou “fascistas”, como alguns dizem, esquecendo que essa categoria pertence a um contexto histórico -, mas sim serem ignorantes, fazendo contínuo e amplo alarde da sua ignorância. Basta olhar para a sua reação à atual epidemia: os seus países estão no topo da lista das vítimas, em boa parte devido à sua desvalorização do vírus. 

JMB desmonta o modo como a linguagem do “politicamente correto” é usada para tentar o controlo mental: “A novilíngua progressista é o novo idioma oficial” (pág. 47). Ilustrando este controlo, conta logo no início que o corretor ortográfico lhe queria emendar a expressão “pessoas normais e comuns”, avisando que devia ser inclusivo, isto é, pretendia que escrevesse “pessoas normais e anormais, comuns e não comuns”. 

Uma das táticas dos “progressistas” é a vitimização. Escreve JMB: “Ser vítima é ser civilizado. É criminoso ou suspeito quem não é vítima de qualquer opressão, presente ou passada. A leitura caricatural da dialética do senhor e do escravo é a única chave para a compreensão da história e vai repetindo diversos protagonistas em variáveis infinitas. Os alunos são vítimas dos professores, as crianças dos adultos, os negros e os ciganos dos brancos, os homos dos héteros, os democratas dos fascistas, os ateus dos crentes, os vegans dos animalistas, etc.” (pág. 178). Mas o autor vai mais longe ao afirmar que as políticas identitárias, ligadas à vitimização, estão a destruir a democracia. Refere, como exemplo, a existência na Universidade de Yale de pós-graduações em Gestão só para gays.

Lembrando as distopias de Huxley, Orwell e Houellebecq, JMB fala da opressão que o pensamento dominante procura exercer através da linguagem: “A ditadura do pensamento pós-moderno progressista existe. É gente boa, culta, inteligente, reproduz uma mundividência e as suas pragas como doentes contaminados por uma peste da qual não conseguem fugir” (pág. 52).

Num mundo tolhido pela ideologia e controlado pela linguagem, a democracia está em risco. Segundo o autor, foi “traída”. Justifica: “Sabemos que aquilo a que chamamos democracia nos sistemas políticos ocidentais, e considerando a melhor aceção do conceito, já pouco tem de democracia, pois vivemos num simulacro perfeito desse ideal” (pág. 99). E a “traição” foi perpetrada pelos “democratas”. Como JMB lembra, Sócrates, o filósofo grego, foi condenado à morte pelos democratas. E, entre nós, há outro Sócrates que ainda não foi condenado, ou só o foi de modo muito leve, por muitos democratas no poder.

Qual será a solução para recompor um “mundo às avessas”? De que precisamos, agora e sempre? Pensamento claro e livre. O pensamento que, há séculos, foi reclamado por Espinosa, citado na abertura do livro. Escreveu o filósofo holandês: “Num Estado Livre, todos os homens podem pensar o que querem e dizer o que pensam”. 

Não podemos ter medo de pensar. JMB pensa o que diz e diz o que pensa. Homem livre, resiste a uma vaga que engoliu muita gente. Oxalá continue a fazê-lo.