SpaceX e Marte

SpaceX e Marte


Desde o programa Apollo da NASA, que levou a presença humana à Lua em 1969, que Marte se tornou, naturalmente, o próximo objetivo.


No dia 2 de agosto deste ano aterraram no golfo do México dois astronautas da NASA – Bob Behnken e Doug Hurley – após uma missão de pouco mais de dois meses a bordo da estação espacial internacional (ISS na sigla inglesa). Uma missão histórica, por vários motivos: o retomar por parte dos EUA da capacidade de transportar astronautas entre a ISS e a Terra, cerca de nove anos depois da última missão da icónica Space Shuttle, em julho de 2011, durante os quais os russos detiveram o monopólio dessa capacidade. Foi também a primeira vez que uma companhia privada, a SpaceX, conseguiu efetuar esse transporte, e com um nível de reusabilidade sem precedentes na indústria ao fazer aterrar em segurança o primeiro estágio do lançador, um Falcon 9. Com esta missão, a Demo Mission 2 (DM-2), a cápsula Crew Dragon da SpaceX ficou certificada pela NASA para lhes prestar comercialmente este serviço. Apesar de a SpaceX já providenciar serviço de transporte de carga para a ISS desde 2012, o transporte de humanos é um problema significativamente mais complexo, devido à necessidade absoluta de garantir a segurança dos astronautas.

Na véspera do lançamento desta missão, a 29 de maio, na mesma SpaceX, um dos protótipos do seu novo lançador Starship, o SN4, explodiu acidentalmente no fim de um teste estático. Esta coincidência poderia ter tido, porventura, mais impacto, não fosse o caso de três protótipos antes deste terem sofrido o mesmo destino. E, curiosamente, dois dias depois da chegada de Bob Behnken e Doug Hurley à Terra, o novo SN5 efetuou com sucesso o seu primeiro voo de 150 metros – uma distância modesta para um lançador, mas um importante passo que demonstra a integração, o lançamento e a aterragem do protótipo. Note-se que este lançador tem 9 metros de diâmetro por 50 metros de altura (aproximadamente, a altura de um edifício de 11 pisos). Falhar na SpaceX não é defeito, é feitio: em contraste com a típica abordagem conservadora (mas compreensível) da indústria aeroespacial, a SpaceX adota uma estratégia agressiva de desenvolvimento ágil, segundo a qual é dada prioridade ao teste sucessivo de protótipos, aceitando as falhas e aprendendo com elas, em vez de remeter os testes para fases mais avançadas do desenvolvimento – uma estratégia pouco habitual na área do espaço, mas frequente no desenvolvimento de software (porventura, com raízes no passado de Elon Musk na PayPal). Note-se que me refiro a testes integrados de protótipos completos, e não a testes unitários de componentes. Outro aspeto interessante da abordagem da SpaceX é a estratégia de integração vertical, que significa desenvolver de raiz e construir no seio da companhia, do componente ao sistema completo. Por exemplo, em vez de comprar propulsores baratos aos russos, a SpaceX decidiu desenvolver de raiz os seus.

O lançador que levou os astronautas Bob Behnken e Doug Hurley à ISS, o Falcon 9, nome inspirado num veículo homónimo da saga Starwars, é o único lançador em operação para órbita cujo primeiro estágio é inteiramente reutilizável. Este feito permite reduzir drasticamente os custos, uma vez que as alternativas implicam a perda total ou parcial deste estágio. Contudo, antes que a SpaceX tenha dominado a técnica, vários estágios foram perdidos, quase sempre de forma espetacular (ver compilação da própria SpaceX em https://youtu.be/bvim4rs0-=NHkQ ), mas nunca comprometendo a missão principal de colocação de satélites em órbita. Aprendendo com as suas falhas, a taxa de sucesso aproxima-se atualmente da totalidade. O mesmo espera a SpaceX conseguir com o desenvolvimento da Starship, um passo importante no objetivo desta companhia desde a sua fundação, em 2001, de não menos do que colonizar Marte, tornando a espécie humana multiplanetária.

Desde o programa Apollo da NASA, que levou a presença humana à Lua em 1969, que Marte se tornou, naturalmente, o próximo objetivo. Lutando contra várias dificuldades orçamentais, apesar de ser a agência espacial com maior orçamento (e por uma boa margem; segue-a a China, com cerca de metade, e a ESA, com cerca de um terço), a estratégia atual passa pelo desenvolvimento do polémico lançador Space Launch System (SLS) e da cápsula Orion. Apesar de o SLS seguir uma estratégia conservadora de reaproveitar soluções existentes e provadas (por exemplo, os quatro propulsores principais são versões ligeiramente modificadas dos mesmos propulsores da Space Shuttle, os RS-25, desenvolvidos inicialmente na década de 70 e usados até 2011), o seu primeiro voo tem vindo sucessivamente a ser adiado (primeiro 2016, depois 2017… e agora planeado para 2021). Mas, apesar de toda a crítica de que tem sido alvo, é o único veículo que, quando concluído, terá a capacidade de levar astronautas à Lua e a Marte. O Starship da SpaceX não terá por si essa capacidade, sendo necessário o desenvolvimento de um primeiro estágio: o planeado Super Heavy.

Assistimos, portanto, à execução de duas abordagens muito distintas ao desenvolvimento de veículos espaciais: por um lado, a NASA, que prossegue cautelosamente o seu percurso, sabendo que qualquer falha poderá levar os contribuintes norte-americanos a cortes orçamentais pesados; e, por outro, a SpaceX, na sua estratégia de desenvolvimento ágil, sempre a aprender com os sucessos e as falhas dos seus testes – testes estes que podem ser seguidos em direto, corram bem ou corram mal, difundidos por aficionados que percorrem as estradas de Boca Chica, no Texas, e se instalam nas proximidades da SpaceX, com hordas de seguidores nas redes sociais.

 

Professor auxiliar do Instituto Superior Técnico