Agora temos tempo, não o desperdicemos


O Governo tem de assumir que o SNS é uma prioridade nacional e patriótica. Como país, como coletivo, temos de dar ao SNS tudo o que for preciso, custe o que custar.


A história das pandemias diz-nos que as segundas vagas podem ser mais violentas e duradouras do que o primeiro impacto do vírus.

Com muita probabilidade, teremos uma segunda vaga de covid-19 no nosso país e na Europa lá para o outono.

Até lá, não sabemos que mutações sofrerá o vírus. Não sabemos como vai ser a curva epidemiológica. Mas sabemos que temos dois a três meses para nos prepararmos. É tempo precioso que não podemos desperdiçar.

Essa preparação deve começar com um debate franco sobre as lições aprendidas com a primeira vaga, uma discussão multipartidária séria sobre o que correu bem, o que correu mal, o que podemos fazer melhor. Lamentavelmente, o ambiente no país não está propício a grandes debates. De um lado temos os que acham que vivemos um milagre; do outro, os catastrofistas. E algures, não se sabe bem onde, os que pensam que este não é tempo para críticas – porque lesam o interesse nacional. Esta é uma posição fundamentalmente errada – como se o inverso, o unanimismo, fosse benéfico para a nação. É tempo de críticas, sim. Este é o tempo em que mais precisamos de um olhar crítico, de espíritos livres e não alinhados para encontrarmos soluções para os nossos problemas.

Há várias áreas onde os poderes públicos não estão a fazer o melhor que podem para proteger os portugueses. Que áreas são essas?

Serviço Nacional de Saúde. Numa crise de saúde pública, é aqui que tudo começa. E o nosso SNS é uma catástrofe à espera de acontecer – e não é por falta de aviso. Os nossos médicos, enfermeiros e auxiliares estão esgotados. Deram o melhor que tinham pelo país e evitaram o pior. Mas a escala dos problemas que enfrentamos é tão massiva que esse seu esforço heroico está longe sequer de ser suficiente para podermos vencer a batalha pandémica. Em apenas 3 meses – março, abril e maio –, o SNS colecionou cancelamentos de 3,9 milhões de consultas e 93 mil cirurgias. Três meses causaram uma disrupção desta magnitude, o que nos coloca, ao dia de hoje, a correr atrás de um enorme prejuízo do qual não se recupera com facilidade. Milhares de portugueses estão a necessitar desesperadamente de cuidados de saúde.

Perante a hipótese real de uma segunda vaga, esperada para novembro e, possivelmente, a alongar-se por todos os meses de inverno até à primavera, adicionamos mais seis meses de covid-19, aos quais se juntam a gripe sazonal e as doenças respiratórias da época – uma conjugação de circunstâncias capaz de deixar o SNS de joelhos.

O Governo tem de assumir que o SNS é uma prioridade nacional e patriótica. Como país, como coletivo, temos de dar ao SNS tudo o que for preciso, custe o que custar – com a perceção clara, porém, de que já estamos em duas frentes: o combate à covid-19, por um lado, e recuperação de todos os portugueses que ficaram para trás em termos de cuidados de saúde, por outro.

O país será tão mais bem-sucedido nestas duas frentes quanto mais rapidamente o Governo compreender que precisa dos privados e do poder local para cumprir a tarefa.

Com os privados, deve-se contratualizar um ambicioso programa de recuperação de cirurgias e consultas.

Com as autarquias, deve o Governo ter claro que é o poder local a primeira linha de defesa na pandemia. Portanto, transferir problemas e responsabilidades não basta. É preciso que com os problemas e com as responsabilidades venham as competências e os recursos. As autarquias podem ser o pivô de uma rede de cooperação local que junta autoridades de saúde e de segurança social numa resposta holística à crise.

A plataforma SL3S – Serviços Locais de Saúde e Segurança Social –, de que há semanas aqui falei, será a forma avançada de combate às pandemias – social, económica e de saúde pública – que nos assolam. Formar essas equipas e criar essas plataformas implica uma nova visão cooperativa dos poderes públicos, uma nova forma de o Estado operar. E isso, por conseguinte, exige audácia do Governo na arquitetura de um novo pacto com as autarquias.

Dados e informação pública. Estamos todos a aprender durante a pandemia. Mas há erros que não se podem voltar a cometer. As informações contraditórias, o “é proibido mas pode-se fazer” se for do grupo A ou do sindicato B, leis que mais parecem fatos à medida do que normativos gerais e abstratos debilitam os poderes públicos. A Direção-Geral da Saúde e o Ministério da Saúde têm de tirar gás ao spin e investir mais numa comunicação e diplomacia pública de qualidade, rigorosa e credível. Como por todo o lado a crise mostra, os líderes que falaram verdade têm maior apoio dos seus eleitores.

Mais importante do que a comunicação, os dados. Esta pandemia tem tudo a ver com números. Falamos de percentagens de infetados sobre 100 mil habitantes, do “R”, de ativos e não ativos. Os números ajudam a opinião pública a guiar-se em tempos conturbados: são formativos e informativos. Os números ajudam os políticos e gestores a tomar as melhores decisões. Todavia, em Portugal, a qualidade na recolha, tratamento e leitura dos números é deficiente. Isto permite que, ao invés de informarem e apoiarem na decisão, os números comecem a ser usados por forças demagógicas e manipuladoras que, nas falhas de rigor no tratamento dos dados, encontram espaço para fazer florescer a guerrilha política.

Volto a sublinhar: não podemos gerir o que não conseguimos medir. Com cinco meses de pandemia, ainda não temos um sistema de recolha e tratamento de dados afinado.

Logística e procurement. É incerto o que nos espera e a economia não aguenta outro fechamento prolongado. Para a atividade económica se manter à tona é imperioso que o país acautele as suas cadeias logísticas e que, com tempo, o Governo faça a escolha dos fornecedores mais ágeis e resilientes, num processo de procurement sólido, que dê garantias de que nada falta ao país a tempo e horas.

Do Governo às empresas, do poder local às estruturas do Estado, não há ninguém que não queira vencer a pandemia. E vencer depressa. Isso implica que sejamos todos capazes de aprender com o passado-presente e, sobretudo, ver que em cada problema há uma oportunidade de fazer melhor na proteção dos nossos concidadãos.

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira