Não há lugar para mais médicos em Portugal


Jovens com médias acima de 170 valores são obrigados a ir para Espanha, para a República Checa, ou para a Polónia para cursarem Medicina, porque em Portugal não conseguem ingressar no ensino superior nesta área.


Foram publicadas as vagas disponíveis e as notas para todos os cursos superiores que integram o concurso nacional de acesso ao ensino superior, a decorrer entre 7 e 23 de agosto. São cerca de 51 mil vagas distribuídas por todos os cursos, sendo que para Medicina abriram 1441 vagas, repartidas por 7 instituições de ensino superior, nomeadamente: Universidade da Beira Interior, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Universidade do Minho, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.

Os números não sofreram qualquer alteração relativamente ao ano passado e as médias de acesso do último colocado, em 2019, cifraram-se entre 175,3 e 185,0 valores.

A 4 de julho, foi também publicado o relatório da Pordata, com o alto patrocínio da Fundação Manuel dos Santos, de consulta obrigatória, que espelha o retrato estatístico da sociedade portuguesa, analisando os números de ano para ano, os quais revelam as tendências evolutivas de cada setor. Constata-se que, no que respeita ao setor da saúde, temos 230 hospitais e 53 657 médicos para 10 286 263 habitantes.

A discussão já tem barbas e os vencedores desta disputa são sempre os mesmos. Sempre que o interesse público reclama da necessidade de aumentar o número de vagas para Medicina ou até de permitir que outras instituições de ensino superior possam disponibilizar esta formação, a Ordem dos Médicos e as faculdades de medicina existentes aparecem logo a assumir uma posição irredutível e de indignação perante o que entendem ser uma ingerência numa área tão reservada e complexa, que não pode ser tratada como uma mera resposta a uma necessidade da população. Cada vez mais se torna claro que os argumentos são de interesse próprio e, pouco ou nada, fundamentam a posição imutável dos profissionais deste setor que, a todo o custo, combatem com todas as palavras e não só, a manutenção do seu status quo, assumindo-se como corporação numa época em que todas as profissões foram desprovidas desta condição/prestígio, umas em nome da transparência, outras em nome da justiça social, outras porque simplesmente lhes foi retirado o reconhecimento alcançado em tempos mais conturbados, outras porque hoje não nos é permitido reconhecer extraordinariamente a relevância de certas profissões sob pena de estarmos a excluir e a estratificar profissões de primeira ou de segunda.

Partindo deste princípio de igualdade e da necessidade imperiosa do interesse público em reformar o setor da saúde com a máxima urgência e considerando que o cenário nacional evidencia debilidades alarmantes que se mantêm inalteráveis ano após ano, convém interrogar por que razão não há coragem política para intervir neste setor com medidas claras e concretas, em vez de se recusar, sistematicamente, as soluções apresentadas como parte da resolução de alguns problemas, depois da pressão exercida pela Ordem dos Médicos, dos sindicatos e das instituições que detêm este monopólio da formação superior em Medicina.

O tempo extraordinário em que vivemos, exigente para a classe médica, comprovou que estes profissionais andam sempre sobrecarregados (não é por acaso que é uma das profissões que mais sofre de burn-out), o que não se alterará numa realidade pós-Covid. Ouvimos relatos de médicos esgotados; o Presidente do Sindicato Independente dos Médicos já referiu diversas vezes que é necessário investir nas infraestruturas dos hospitais, em equipamentos e em meios humanos; antes da pandemia, as listas de espera para cirurgias situavam-se entre um e dois anos; administradores hospitalares já fizeram as contas e informaram que estão em atraso dezenas de milhares de cirurgias e mais de um milhão de consultas; continuamos a ter 650 mil pessoas sem médico de família atribuído; e, o mais surpreendente, é termos, em Portugal!, mais de 1800 médicos estrangeiros para colmatarem as falhas existentes em determinadas especialidades. O ridículo constata-se quando os nossos jovens, com médias acima de 170 valores são obrigados a ir para Espanha, para a República Checa, ou para a Polónia para cursarem Medicina, porque em Portugal não lhes reconhecemos habilitações ou mérito para ingressar no ensino superior nesta área. Mas se depois regressarem para exercer Medicina em terras lusitanas, já não há qualquer filtro e até são bem-vindos, e o Estado agradece. Mas quem agradece mais, somos nós -os utentes, porque sabemos o quanto são necessários e imprescindíveis para a nossa qualidade de saúde e do sistema que os rejeitou no início da sua formação.

Quase passada uma década, e prevendo o agravamento da situação no setor da saúde, finalmente, o Governo autorizou o aumento de vagas para os cursos de Medicina, até 15 %, correspondendo em números absolutos a cerca de 200 novas vagas. Em resposta, o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, declarou que não intenciona proceder a este aumento de vagas e até se refere a esta decisão como um pecado, ao dizer: “parece uma tática de dividir para reinar, para ver se alguma faculdade cai na tentação de o fazer”.

A incredulidade é tanto maior quando estas declarações são secundadas pelos diretores da Universidade de Coimbra e da Universidade do Porto que, pedantemente, afirmam não abrir mais vagas, mas consideram a hipótese de aumentar as vagas exclusivamente para os alunos estrangeiros, deixando ostensivamente de fora os nacionais.

Há algum sentido em tudo isto? Ou é demasiado evidente o corporativismo arrogante aqui descrito?