Alertas sobre o rumo da covid-19. “Os casos vão aumentar. O grande desafio é proteger os grupos de risco”

Alertas sobre o rumo da covid-19. “Os casos vão aumentar. O grande desafio é proteger os grupos de risco”


À décima reunião de peritos, a incerteza sobre como vão ser os próximos meses mantém-se. Três especialistas falam ao i da situação atual do país e dizem o que gostavam de ver discutido.


O Infarmed recebe esta quarta-feira a décima reunião técnica sobre a covid-19. Quatro meses depois dos primeiros casos em Portugal e dois meses após o início do desconfinamento, Lisboa mantém-se o principal foco de novas infeções, mas nas últimas semanas houve um ligeiro aumento de casos na região Norte, que nos últimos cálculos tornados públicos pelo INSA tem agora o índice de contágio mais elevado no país. Os internamentos aumentaram em relação ao início do junho, quando atingiram o ponto mais baixo desde o início da epidemia, e estão agora no patamar dos 500, mas atividade não urgente do Serviço Nacional de Saúde mantém-se suspensa ou mais limitada na grande Lisboa. Os boletins da DGS têm apresentado nos últimos dias menos informação e ontem tornaram a não ser revelados casos por concelhos e a idade dos novos infetados, mas o Governo tem apontado para um cenário de estabilidade, inclusive na Área Metropolitana de Lisboa. Ontem, questionada pelo i, a DGS não forneceu mais dados sobre a situação nos diferentes concelhos. “Os dados da curva epidémica parecem indiciar uma tendência decrescente. No entanto, têm de continuar a ser acompanhados”, indicou. Três especialistas explicaram ao i do que gostavam de ver sair da reunião que decorre à porta fechada e como veem o momento atual do país. Defendem informação clara sobre a situação epidemiológica mas também sobre estratégia para enfrentar a pandemia. Certo é que a covid-19 está para durar e que a epidemia está “no princípio dos princípios”.

Pior, melhor ou na mesma?
Fernando Maltez, diretor do serviço de infecciologia do Hospital de Curry Cabral, que há duas semanas, no dia da última reunião, alertou que a situação em Lisboa estava descontrolada, por não serem conhecidas as cadeias de transmissão numa percentagem significativa dos doentes, considera que não existem sinais de agravamento da situação, mas os sinais de melhoria na grande Lisboa só poderão ser consolidados nos próximos dias. “Estamos na altura de ver se as medidas implementadas a 1 de julho tiveram repercussões. Para já não me parece, tendo em conta os últimos dados, embora haja dúvidas sobre notificações e subnotificações, que a situação esteja a piorar, mas temos de ver.” Em termos de controlo das cadeias de transmissão, a preocupação que manifestou há duas semanas, Fernando Maltez diz que a perceção continua a ser a mesma, de que uma percentagem significativa dos casos não tem ligação epidemiológica, mas a sua expectativa era que o apertar das medidas travasse o alastrar da transmissão comunitária e não que revertesse essa situação. “Isso é difícil que mude, não vai mudar. As medidas têm de procurar reduzir a transmissão que o ponto de partida não identificável, mas isso não vai voltar atrás. Temos é de tentar fazer tudo para que amplifique. A partir do momento que está enraizado, não se consegue prevenir, conseguimos é impedir que alastre mais”, diz o médico. Sobre o que gostaria de ver discutido na reunião, Fernando Maltez pede uma análise objetiva. “O que gostava de ter era uma resposta clara e objetiva dos epidemiologistas é se estamos a piorar ou não estamos a piorar, se as cadeias de transmissão já estão todas controladas ou há cadeias que ainda não estão controladas, se estamos a evoluir num sentido da redução de casos ou num aumento, isso é que precisávamos. Neste momento não temos essa informação e não ouvi nenhuma tomada de posição epidemiológica em relação a isto.” Para o médico, se não houver sinais de melhoria, será necessário apertar medidas de restrição. “Se as coisas não estão a melhorar, temos de apertar as restrições”.

“Desconfinar sem estratégia é um mero desejo”
Para Pedro Simas, virologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular, não é expectável que os novos casos em Portugal baixem muito do atual patamar, como já tem alertado nas últimas semanas, mas não considera que seja linear a necessidade de apertar restrições, pois a alternativa será ficar em casa sempre que os casos aumentem. “Se for esse o objetivo, estamo-nos a concentrar num objetivo que não vamos conseguir cumprir em desconfinamento. Se quando estávamos confinados não conseguimos reduzir o número de casos abaixo de 100, não é agora com mais movimentos que vamos conseguir e a tendência será crescer”.

O investigador não vê na atual situação de Lisboa ou mesmo do país sinais de descontrolo epidémico, embora admita que o aumento dos internamentos é uma tendência a monitorizar de perto pois uma das chaves na resposta à pandemia será a capacidade de resposta dos serviços de saúde. “O que temos ouvido é que o SNS não está sobrecarregado. Se há capacidade que não está a ser usada, porque é que não se liberta para a atividade normal?", diz, questionado sobre a limitação de consultas e cirurgias na grande Lisboa. "Nos últimos 90 dias temos estado relativamente estáveis em torno dos 300 novos casos por dia. Sabemos que é uma situação que pode mudar porque o potencial pandémico agora é maior e a maioria da população é suscetível, mas temos medidas como a regra dos 3C: evitar close contacts, close spaces e crowded spaces – contactos próximos, espaços fechados e multidões – e o uso de máscaras, que podem diminuir a transmissão. Os casos vão aumentar, mas penso que deve ser incutido às pessoas que isso é o expectável, garantindo que não existe uma sobrecarga para o sistema de saúde e proteção dos grupos de risco”.

O que o investigador gostava de ver debatido na reunião técnica é qual é o objetivo e a estratégia para os próximos meses. “O vírus por si só não desaparece e por isso só há uma solução para a pandemia que é termos imunidade, seja imunidade através de uma vacina ou através de infeção natural, o que será um processo difícil e lento”, frisa, defendendo que a partir do momento em que se avança para o desconfinamento, sendo previsível o aumento do risco de contágio, é necessária uma estratégia com os indicadores expectáveis e o reforço da proteção dos grupos de risco, nomeadamente idosos. “Foi tomada uma decisão que foi desconfinar. Ao ser tomada essa decisão, e sendo esse o objetivo, é preciso proteger os grupos de risco. Desconfinar sem haver uma estratégia é um mero desejo”, diz Pedro Simas, que aponta duas áreas onde poderia haver mais medidas, salientando que a retoma de alguma normalidade na vida do país será sempre um equilíbrio difícil e que a Suécia, país que não seguiu o confinamento estrito, é exemplo disso.

A primeira é o reforço da prevenção dos lares, setor em que o Ministério da Saúde já anunciou que passará a haver visitas para avaliar o cumprimento das medidas, admitindo também novos rastreios a profissionais. Para Simas, o caminho deve ser esse: “Para a maioria das pessoas a infeção é ligeira. Temos neste momento 4,5 milhões de casos em todo o mundo, a maioria ligeiros. O inquérito serológico que foi feito em Espanha revelou que 5% da população teve contacto com o vírus. Sendo que reportaram perto de 300 mil casos e têm cerca de 46 milhões de habitantes, estamos a falar de 2,3 milhões de pessoas infetadas, o que é quase dez vezes mais. Sabemos que a infeção será ligeira e assintomática na maioria das pessoas, mas 40% a 60% das mortes na Europa aconteceram em lares e enquanto cidadão não percebo porque é que não se reforça a resposta a esse nível”, diz. Na Suécia, quase metade das mais de 5 mil mortes ocorreram em lares, revelou esta semana um relatório da Inspeção de Saúde Sueca. “O grande desafio está na proteção dos grupos de risco e temos cultura suficiente para os proteger. Conseguimos fechar um país e não conseguimos proteger os grupos de risco, os lares? Fechar um país é eticamente correto e fazer cordões em torno de lares é discriminar?”, pergunta. Sem soluções fechadas e não indo tão longe como a suspensão de visitas, o investigador considera que “ter um cordão sanitário no sentido em que todas as pessoas que vão aos lares e trabalham nos lares são regularmente testadas é algo que pode fazer sentido”, o mesmo nos serviços de saúde.

O afinar da política de testagem é outra área em que acredita que o país pode avançar, não pela comparação com os outros países, mas para um retrato mais em tempo real da disseminação da doença, isto numa altura em que são esperados este mês os resultados do primeiro estudo serológico de base nacional feito pelo INSA com testes a uma amostra de 2100 portugueses.“Temos de conseguir perceber como o vírus se está a disseminar e com que velocidade e se seria possível com uma rede de sentinelas que fosse regularmente testada para se perceber a prevalência da doença e a sua disseminação nos bairros, nas cidades. Temos de ter uma testagem aleatória da população, não é testar nem mais nem menos que os outros, mas testar de forma planeada para ter uma perceção do que está a acontecer.”

Se Portugal tem estado no foco das comparações internacionais, Pedro Simas sublinha que nunca partilhou da visão do país “mau aluno” que ganhou forma nas últimas semanas e sublinha que há sinais de aumento de casos também noutros países, o que era expectável. “Que possa haver outras razões para os países não quererem ter casos, sejam turísticas e económicas, pode ser uma estratégia legítima, mas para isso é preciso isolarem-se do resto do mundo e manterem grandes restrições. Não é possível é desconfinar e não aumentarem os casos. Como costumo dizer, estamos no princípio dos princípios. Como virologista, ter 300, 400 ou 500 casos não são muitos casos porque é importante a população ter contacto com o vírus, desde que isso não representa uma sobrecarga para os sistemas de saúde e não seja feita à custa dos mais vulneráveis.” Foi isso que quis transmitir esta semana num encontro de urbanismo da Câmara de Lisboa, onde afirmou “que é preciso incutir na sociedade que um elevado número de infeções não significa risco de doença e morte. “A alternativa é ficarmos com medo em casa enquanto durar a pandemia? Não podemos”, diz.

Ouvir o terreno
Para Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, o reforço e planeamento da resposta da saúde pública continua a ser essencial para isolar e conter cadeias de transmissão. O médico defende mesmo que deveria haver espaço na reunião técnica para ouvir um retrato na situação no terreno. “Era preciso ter uma voz de alguém no terreno, que não sou eu, mas alguém que esteja a trabalhar numa unidade de saúde pública que abranja uma destas 19 freguesias que diga o que se passa no terreno sobre as dificuldades, os recursos humanos que têm, penso que seria elucidativo para quem está sentado naquelas cadeiras”, diz.

Para os próximos meses, concorda que seria importante conhecer a estratégia para o país. “Eu não conheço que estratégia está a ser pensada e não tinha de ter conhecido. Também não conheci a estratégia para o desconfinamento além de que seria gradual. Para o médio prazo também não conheço e acho que seria importante para todos os portugueses saber o que está a ser pensado.”