A pandemia da precariedade

A pandemia da precariedade


Ao contrário de outros profissionais que têm recebido o justo agradecimento pelo seu esforço, é tímido o reconhecimento do papel dos cientistas.


Aos primeiros sons de alarme da pandemia despertou uma numerosa força de soldados prontos a enfrentá-la. Desde então, munido das suas ferramentas de trabalho, da sua experiência e conhecimento, este exército tem lidado com a covid-19 nas suas muitas dimensões e manifestações: procura entender a virulência do seu agente causador e o mistério dos seus efeitos nos humanos, cria testes de despistagem mais baratos e eficazes ou avalia o impacto do confinamento na saúde das populações, além de tantas outras investidas que se estendem ao objetivo máximo de tentar produzir uma vacina contra a doença.

As fileiras desta legião são engrossadas pelos membros da vasta comunidade científica de todo o mundo. Ao contrário das caricaturas que os mostram como estranhas criaturas de bata branca e cabelo desgrenhado, em permanente confinamento no seu laboratório, estes cientistas (ou investigadores) têm uma vida normal, intercalando o teletrabalho com o apoio aos filhos em telescola, entre outros afazeres triviais.

Prosseguindo com o seu trabalho para não ficarem para trás na acérrima competitividade do meio científico, encontram, ainda assim, tempo para pensar em soluções para a atual crise, partilhando as suas descobertas nas diversas revistas científicas que há meses produzem volumes em torno do vírus e da pandemia. Muitos dedicam-se também a manter o mundo informado, escrevendo ou participando em entrevistas e painéis de debate em diversos meios de comunicação.

Esta multidão é a massa cinzenta da ciência e a sua força vital. Paradoxalmente, é também uma massa cinzenta para a sociedade, uma substância pouco apelativa que não atrai muita atenção, apesar do seu contributo determinante para o progresso e bem-estar. Em alguns avanços científicos recentes relatados na comunicação social, por exemplo, os seus intervenientes são de tal forma translúcidos que mais parece que a ciência se faz a si própria.

Como consequência, e ao contrário de outros profissionais que têm recebido o justo agradecimento pelo seu esforço, é tímido o reconhecimento do papel dos cientistas, pois não recebem ovações públicas nem lhes são dedicadas correntes de gratidão nas redes sociais ou murais burilados pelo génio de Vhils. Parece até que a ciência não faz mais do que a sua obrigação.

Apesar disso, a contribuição desta massa cinzenta é tão imensurável quanto imprescindível, e talvez só no futuro venha a descobrir-se a sua verdadeira magnitude. Para já, podemos assumir que este contributo dos cientistas seria certamente mais determinante se muitos não estivessem debilitados por uma outra pandemia que há décadas persiste: a precariedade.

Esta é uma pandemia que lhes tem roubado qualquer resquício palpável de certeza de que a sua vocação e formação, conseguidas ao longo de vários anos de trabalho intenso, venha a ser útil por muitos mais, pois o seu percurso (que para um cientista não é sinónimo de carreira), por mais relevante que seja ou até imprescindível, depende frequentemente da sua capacidade de conseguir autofinanciamento.

Na epidemia da precariedade há, assim, uma sina à qual muitos não escapam: acumulam graus, títulos, patentes, publicações e tudo o mais que faz estender os seus currículos por diversas páginas, mas não acumulam reconhecimento da sociedade. Mais trágico ainda, nem sempre acumulam estima das instituições que os acolhem e que, em alguns casos, deles espremem o mérito, apropriando-se depois da reputação do seu trabalho. Talvez seja isto, mais do que a incerteza do amanhã ou o alheamento da sociedade, que justifique a elevada prevalência de problemas de saúde mental dentro da comunidade científica.

Esmorecidos pela competição intensa de infindáveis concursos para conseguirem um salário, esgotados pela contínua pressão de terem de publicar o seu trabalho, muitos desertaram deste exército nas últimas décadas. Fugiram em busca de estabilidade e segurança ou de uma situação mais dignificante, mesmo que isso implique abraçar um ofício desligado da ciência. Outros, de coração entregue à descoberta do conhecimento e empenhados no progresso, altamente treinados na sua arte, acabaram por ter de abandoná-la não por decisão, mas por imposição, face à escassez ou ausência de recursos financeiros para se pagarem a si próprios. Ou até esgotarem o seu soft money, como diz quem tende a suavizar a realidade com o conveniente filtro da terminologia opaca. Uns e outros sucumbiram à pandemia da precariedade.

Apesar de tudo, a face da precariedade em tempos de pandemia é um evidente arregaçar de mangas para a enfrentar. Se tantos investigadores respondem desta forma estando debilitados e desmotivados, só se pode imaginar como seria se tivessem uma carreira estável, com melhores garantias de continuidade do seu contributo indispensável.

Numa segunda onda da covid-19 ou numa futura pandemia, muitos dos que agora lutam poderão já ter abandonado a ciência. Em Portugal, se as recentes reformas na investigação se mantiverem, poderemos ter melhor sorte. Por cá, a curva epidémica da precariedade tem mostrado um decréscimo nos últimos anos, muito à custa de leis como o DL57, que trouxe alguma dignidade ao trabalho científico dos investigadores e, em menor escala, da regularização extraordinária de vínculos laborais precários (PREVPAP) que, ainda assim, poderia ter ido mais longe no setor do ensino superior, onde a maioria dos investigadores gera a sua ciência.

Só resta esperar que também na epidemia da precariedade não haja uma segunda vaga.

 

marcos.mateus@tecnico.ulisboa.pt

Investigador no Maretec – Centro de Ciência e Tecnologia do Ambiente e do Mar, Instituto Superior Técnico