Há quem pense que existe oposição entre a ciência e a poesia. Mas o facto é que os primeiros versos publicados em letra de forma por Luís de Camões surgiram num livro de ciência, Colóquios dos Simples (1563), do médico Garcia de Orta. E alguns dos nossos grandes poetas versaram temas de ciência: basta referir António Gedeão, pseudónimo do professor de Físico-Química Rómulo de Carvalho, o autor de “Pedra Filosofal”; e Vitorino Nemésio que, no seu livro Limite de Idade (1971), cantou a física atómica e a biologia molecular. Mas, além de Rómulo de Carvalho, outros poetas portugueses têm formação científica: Ruy Cinatti era antropólogo, José Blanc de Portugal era meteorologista, Jorge de Sena era engenheiro civil e Eugénio Lisboa é engenheiro eletrotécnico. Uma profissão que tem dado numerosos poetas é a de médico: Miguel Torga, Fernando Namora, Bernardo Santareno, António Lobo Antunes, Jorge de Sousa Braga, João Luís Barreto Guimarães, etc. Encontram-se esses e muitos outros autores em duas antologias sobre poemas de base científica, uma luxuosa, coordenada por Maria Bochicchio e pelo saudoso Vasco Graça Moura – O Binómio de Newton e a Vénus de Milo. Poesia e ciência na literatura portuguesa (Fundação Champalimaud e Aletheia, 2011), e outra mais modesta, da responsabilidade de Rui Malhó – O Bosão do João. 88 Poemas com ciências (By the Book, 2014).
O poeta português Jorge de Sousa Braga (Cervães, Vila Verde, 1957) concluiu o curso de Medicina na Universidade do Porto em 1981, precisamente no ano em que saiu o seu primeiro livro de poemas, com um título extraordinário: De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu (Fenda). Especializado em obstetrícia e ginecologia, iniciou a sua carreira no Hospital de Santo António, no Porto, e tem focado a sua prática clínica na esterilidade e infertilidade. A sua obra poética, muito fértil, está compilada no livro O Poeta Nu [poesia reunida], cuja 1.a edição é de 1991 (Fenda) e cuja 4.a edição é de 2014 (na Assírio & Alvim; junta 11 livros do autor). Há uma antologia breve: Balas de Pólen (Quasi, 2001).
Sousa Braga é também um inspirado e prolixo tradutor de poesia. É, nesse âmbito, responsável por quatro antologias temáticas que contêm poemas de autores de todo o mundo: A Religião do Girassol (2000), Qual é a Minha ou a Tua Língua – Cem poemas de amor doutras línguas (2003), Animal Animal – Um Bestiário Poético (2005) e O Vinho e as Rosas (2006), todos eles na Assírio & Alvim, a nossa grande editora de poesia. Traduziu também, noutras edições, livros de poetas como o japonês Matsuo Bashô, o francês Guillaume Apollinaire, o argentino Jorge Luís Borges, o canadiano Leonard Cohen e o polaco Adam Zagajewski.
É ainda autor na Assírio & Alvim de três admiráveis livros para crianças mas que são, afinal, para todas as idades, ilustrados por Cristina Valadas: Herbário (1.a edição, 1999, distinguido com o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens; há várias edições posteriores, com muito boa receção nas escolas), Poemas com Asas (2001) e Pó de Estrelas (2004).
Já se vê deste rol de títulos quais são os gostos do poeta-médico: o céu, a natureza (em especial, as plantas e os animais), o corpo, o amor, os estados alterados. O seu estilo, que se expressa, por via de regra, em poemas breves sem rima, oscila entre o ternurento e o irónico. O poeta, com os seus sentidos muito atentos ao mundo, é sensível sempre, sensual por vezes. Repara em pormenores, que transforma em pormaiores. Gosta da surpresa e do paradoxo. Espanta-se e espanta-nos. Joga com as palavras, enleando-nos com elas.
Para exibir o estilo do autor, nada melhor do que apresentar três poemas de O Poeta Nu, que ilustram curiosas e inesperadas ligações entre poesia e ciência. O primeiro, intitulado “Poema de amor” e saído logo no seu livro de estreia, fala de uma paixão astronómica: “Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno/ e quase ia morrendo com o receio de que não/ te coubesse no dedo.” O segundo, sem título e inserto no seu segundo livro, Greve dos Controladores de Voo (1984), conta um eco inaudito: “Deixara de acreditar nas ciências tradicionais, desde que se sentara em frente de uma montanha e gritara morango e a montanha lhe devolvera cinquenta alperces, e ele gritava vermelho e a montanha lhe devolvera rosa rosa rosa, um rosa cada vez mais ténue.” O terceiro, intitulado “Via Láctea” e contido em Ferida Aberta (2001), um título que remete para a especialidade clínica do autor, fala do potencial de fertilidade do nosso planeta: “Segundo dados da Organização Mundial/ de Saúde praticam-se diariamente// Cem milhões de cópulas em todo/ o mundo das quais resultam// Mais ou menos trezentos mil/ litros de esperma isto sem// contar com o produto das actividades/ solitárias e das poluções nocturnas.”
Acaba de ser publicada na Assírio e Alvim uma nova obra de Jorge Sousa Braga: A Matéria Escura e Outros Poemas. Integra a coleção Poesia Inédita Portuguesa dessa editora, onde na lista dos últimos títulos se encontram obras de Luís Quintais, que é antropólogo como Cinatti, e de Adília Lopes, que estudou física como Rómulo de Carvalho. Eu, que sou um grande admirador da poesia de Sousa Braga, tenho a agradecer-lhe mais esta adição à sua obra. Como físico, apreciei que tivesse ido buscar o título à minha disciplina: matéria escura é a matéria não luminosa que preenche as galáxias sem que sem nós façamos ideia da sua constituição. Estamos à procura dela na Terra e no espaço mas, até agora, debalde.
O livro inclui 11 poemas a que podemos chamar cósmicos por falarem do espaço e 25 outros, de temas diversos, num total de 72 páginas. Abre com uma “ladainha” de nove páginas que dá o título ao livro e que é devedora de notícias na imprensa de descobertas científicas, conforme o autor indica em nota final. O céu não é, de modo nenhum, um sítio de paz e tranquilidade, mas sim o palco de eventos fantásticos e, amiúde, violentos. Conforme disse o padre Teilhard de Chardin, antropólogo e teólogo francês: “À escala do cósmico só o fantástico poderá ser verdadeiro”. Tal como Sousa Braga, não podemos deixar de ficar impressionados com a espantosa variedade de fenómenos que ocorrem em escalas inimagináveis: buracos negros, anãs brancas, gigantes vermelhas, quasares, etc. Quando a ciência não consegue descrever o nosso espanto, a poesia é bem-vinda.
Cito alguns versos soltos da “ladainha” cósmica, que por vezes é também cómica: “Hoje acordei com vontade de dar uma volta à Via Láctea/ é pena que para dar essa volta sejam necessárias umas centenas de milhões de anos”; “Será que estes enxames de galáxias produzem mel?”; “Alguns buracos negros são insaciáveis”. A respeito da relação entre ciência e poesia, lembro que o jornal O Século publicou, em 1919, a notícia da confirmação da teoria da relatividade geral de Einstein, que foi conseguida pela observação de um eclipse solar na ilha do Príncipe, então uma colónia portuguesa, e no Sobral, no Brasil, com o curioso título: “A luz pesa”. Este título poderia ser um verso de Eugénio de Andrade, porque o cosmos é poesia pura!
Entre os poemas seguintes há um sobre quarks que está, mais uma vez, cientificamente certo, apesar de, como é óbvio, a poesia não ter de seguir a ciência. Os quarks, cujo nome foi retirado de um romance de James Joyce, são os constituintes mais pequenos do núcleo atómico (existem três em cada protão ou neutrão). Como só foram vistos em agregados de três ou de dois, os físicos falam do seu confinamento – uma palavra hoje muito em voga. Eles estão livres nos seus agregados, mas não podem quebrar as fortes cadeias que os ligam, vindo para a rua. O poema, de título “Os quarks”, reza assim: “Os quarks / São criaturas / peculiares / Estão sempre / A tentar/ Agarrar/ Outros/ quarks // e /quanto mais / se tenta / separá-los/ mais forte / se torna / a sua / ligação.”
Um outro poema, intitulado “O Cérebro”, chama a atenção para a quantidade espantosa de células cerebrais e a quantidade muito maior de ligações entre elas: “O cérebro tem dez milhões de células em contacto / Umas com as outras e dez triliões de conexões // Tanta conexão / E tanta solidão.” Este poema já não está tão certo como o anterior porque existem mais células no nosso cérebro, cerca de cem mil milhões de neurónios, para não falar de outras células como as gliais. O poema tem a ver com o cosmos, embora não pareça à primeira vista. Basta evocar o famoso poema da norte-americana Emily Dickinson “Mais vasto que o céu”, que deu o mote a uma exposição sobre neurociências na Fundação Gulbenkian: “O Cérebro – é mais vasto do que o Céu -/ Pois – colocai-os lado a lado – / Um o outro irá conter/ Facilmente – e a ¬Vós – também – (…)”
E há depois poesia com outros temas. Melhor do que comentá-los será deixar aqui uma amostra, esperando que ela desperte o apetite para a leitura dos demais. Começo por “Mulheres e árvores”, sobre o ciclo das estações do ano: “Quando as árvores começam a vestir-se/ As mulheres começam a despir-se/ Quando as árvores começam a despir-se/ As mulheres começam a vestir-se.” Fez-me lembrar um outro poema, intitulado “Strip-tease”, do autor de O Poeta Nu: “Quanto mais me dispo/ menos nu/ me sinto.”
Gostei, pela rima inesperada, do poema “Exercício de lógica”: “Na lógica/ do capital/ é-se/ o que se/ vale // Seja/ no Hesse/ ou no/ Sardoal/ é-se/ o que se/ vale (…)” Fez-me lembrar os jogos de palavras do poeta, romancista e também matemático inglês Lewis Carroll, o autor de Alice no País das Maravilhas.
Por último, transcrevo um poema de tema bíblico, “A Última Ceia”, que vem na linha do livro anterior O Novíssimo Testamento e Outros Poemas (2012). Fala de um Cristo tão humano que não chega a morrer na cruz mas se limita, como nós, a carregar a “cruz quotidiana”: “Havia mais doze lugares à mesa e estavas sozinho/ Uns não puderam aparecer porque houve greve dos comboios/ outros porque havia actividades da empresa que não podiam descurar/ outros ainda porque aproveitaram as férias para relaxar uns dias em Cancum/ Não tinhas ninguém que te pudesse trair/ não tinhas ninguém que te pudesse escutar a dizer Ecce Hommo/ Comeste em silêncio uma sopa instantânea de lentilhas/ e foste-te deitar/ Amanhã continuarás vivo/ Não terás de te dar ao trabalho de ressuscitares/ e ascenderes ao céu/ apenas de continuares a carregar/ a tua pesada cruz/ quotidiana.” É quase uma oração e por isso digo: ámen.