O governo dos magistrados


Em Portugal existe presentemente uma forma extrema de governo dos magistrados que é a sua constante nomeação para integrar o Governo, os gabinetes ministeriais e até a administração pública.


A nomeação de um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça para assessor do Governo justifica uma preocupação séria sobre os termos em que está a ser respeitada a separação de poderes em Portugal. Na verdade, há muito tempo que têm sido defendidos limites à intervenção do poder judicial na esfera governativa, em ordem a evitar o denominado “governo dos juízes”. Esta expressão designou especialmente a situação da democracia norte-americana até aos anos 30 do séc. xx, em que os juízes do Supremo Tribunal sistematicamente declaravam inconstitucionais as propostas de legislação social. Quando tal igualmente sucedeu com o New Deal, a legislação do Presidente Roosevelt para combater os efeitos da crise de 29, este ameaçou alterar a composição do Supremo Tribunal, nomeando novos juízes até que essa legislação passasse. Tal levou a que a jurisprudência mudasse e o Supremo Tribunal americano deixasse de interferir em opções políticas.

Em Portugal, no entanto, existe presentemente uma forma ainda mais extrema de governo dos magistrados que é a constante nomeação de magistrados para integrar o Governo, os gabinetes ministeriais e até a administração pública. O que se passa no Ministério da Justiça é extremamente elucidativo a este propósito, com os cargos governamentais, as direcções-gerais e os gabinetes ministeriais a serem ocupados maioritariamente por magistrados.

Essa situação coloca sérios problemas em termos da independência dos magistrados, uma vez que se trata de cargos de confiança política do Governo. Parece-nos bastante estranho que um magistrado, ainda mais de um tribunal superior, aceite ser nomeado para um cargo de confiança política, e ainda pior será o seu regresso a esse tribunal superior depois de ter adquirido, merecido e conservado essa confiança política. A nomeação já colocaria, só por si, problemas, como se verificou com o coro internacional de protestos quando, no Brasil, Sérgio Moro, depois de ter condenado Lula da Silva, o que impediu a candidatura presidencial deste, aceitou ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Mas, após ter-se demitido, Sérgio Moro não vai regressar aos tribunais, uma vez que teve de ser exonerado da magistratura para assumir o cargo. Em Portugal, no entanto, vigora um sistema de portas giratórias em que os magistrados vão e vêm dos tribunais para cargos políticos e vice-versa, comprometendo assim seriamente a imagem de independência que deve caracterizar as magistraturas.

Mas, no caso do Ministério da Justiça, esta situação está igualmente a gerar uma preocupação exclusiva do Governo com o estatuto dos magistrados, ignorando completamente a situação dramática que atinge os restantes profissionais do sector. É assim que o Ministério da Justiça se preocupou em aumentar consideravelmente os magistrados, mas deixa por actualizar, desde 2004, a remuneração dos advogados que trabalham no âmbito do acesso ao direito, apesar de a lei 40/2018, de 8 de Agosto, impor a sua actualização anual. É assim que o Ministério da Justiça se preocupou em fornecer equipamentos de protecção aos magistrados, mas se recusa a fornecer essa protecção aos advogados e às testemunhas que os tribunais convocam. É assim que os advogados e os solicitadores foram os únicos profissionais independentes excluídos dos apoios governamentais, apesar das enormes perdas de rendimento que tiveram com o encerramento dos tribunais.

No seu discurso de Gettysburg, em 19 de Novembro de 1863, Abraham Lincoln caracterizou a democracia americana como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. No sector da justiça parece estarmos ,em vez disso, a assistir a um governo dos magistrados, pelos magistrados e para os magistrados. E isso é muito mau para a nossa democracia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990