Zé Nuno Fraga (n. 1974), após ter trocado a engenharia pelos quadradinhos, cujo estudo e prática aprofundou na Galiza, apresenta-se ao grande público com a adaptação da peça A Assembleia das Mulheres, de Aristófanes. O comediógrafo (e poeta) da Grécia Antiga fez representar o texto pela primeira vez em Atenas, em janeiro de 392 a.C., num concurso teatral realizado durante as festas dionisíacas das Leneias. Perdeu; porém, tratou-se dum belo insucesso, considerando os dois milénios que o texto já atravessou…
Aristófanes parodia a ideia que advogava a possibilidade de o governo da pólis ser entregue às mulheres. Perante a crise que assolava Atenas, decorrente da longa Guerra do Peloponeso, travada com Esparta, um grupo de mulheres lideradas por Praxágora, disfarçadas de homens, propõe numa assembleia uma mudança de paradigma: já que o sexo masculino havia governado tão mal, era altura de tentar um governo exclusivamente delas. Mas havia mais: as leis seriam alteradas – deixaria de haver propriedade e bens particulares, tudo fazendo parte de um fundo comum. Os escravos, obviamente, estavam fora desta medida, pois a democracia era só para os atenienses.
O longo diálogo entre Praxágora e o marido, convencendo-o da bondade do novo sistema, corre de feição, mesmo quando lhe é comunicado que homens e mulheres podem dormir com quem quiserem e que os filhos passarão a ser de todos os pais e mães. A forma como Fraga consegue contornar a dificuldade óbvia de reproduzir esta troca de argumentos entre o casal é plenamente conseguida, ao longo de dez pranchas, tão cheias de movimento como de filacteras e com um traço caricatural que se casa bem com o texto.
Se a utopia perseguida até hoje pelos visionários poderia fazer sorrir o público ateniense nesse janeiro de 392 anterior à nossa era, a irrisão surge quando a igualdade sexual passa a ser imposta por forma a não deixar ninguém para trás, como se leria hoje num cartaz político: antes dos jovens, havia que satisfazer os velhos, sob pena de avultada sanção em caso de incumprimento; antes dos belos, os feios; e à frente dos saudáveis, os aleijados. Estamos já no domínio do grotesco, e que disputas se nos apresentam, por Zeus! De tal forma que a fome aperta. Está, pois, na altura de se iniciar o banquete, prazeres da mesa e da mente, e de um prato especial, o Lopadotemakhoselakhogaleokranioleipsanodrimypotrimmatosilphiokarabomelitokatakekhymenokikhlepikossyphophattoperisteralektryonoptekephalliokinklopeleiolagōiosiraiobaphētraganopterygon –, um guisado imaginado pelo autor. Com ele, Aristófanes brindou-nos, não com dotes culinários, mas com aquela que ainda hoje se considera a mais longa palavra jamais escrita.
Ao substituir um género por outro à frente dos destinos da cidade, cabe perguntar se isso estaria assim tão longe da ideia de paridade, como Platão viria a defender em A República – ainda que Aristófanes não parecesse partilhar do mundo ideal do filósofo, antes preferisse o gosto de meter a mão na massa…
A Assembleia das Mulheres
Texto Aristófanes
Desenho Zé Nuno Fraga
Edição A Seita, Prior Velho, 2019
BDTECA
Era uma vez o Muro Várias histórias de um autor alemão, Flix, recordando em conversa com outros que passam o tempo em que havia duas Alemanhas, um muro a separá-las e uma realidade nem sempre linear: Aqui Já Houve Algo – Memórias Deste e do Outro Lado, edição Polvo, 2020.
Piratas A pirataria conta com mais uma personagem de BD: Raven, um jovem audaz defrontando um governador corrupto, uma comandante de flibusteiros que dá pelo nome de Lady Darksee – uma venda no olho, uma homofonia com o negrume do mar da pirataria… –, tudo ambientado no Caribe, como teria de ser. Texto e desenhos de Mathieu Lauffray, autor que gosta de cultivar o género, responsável pela série Long John Silver – para quem se não lembra, o perna-de-pau de A Ilha do Tesouro (1883), do escocês Robert Louis Stevenson –, com argumento de Xavier Dorrison. Edição Dargaud, Paris, 2020.
Teodoro Frank Le Gall é autor de uma maravilhosa série de aventuras dentro da “linha clara”: Théodore Poussin, ou Teodoro Pintainho, como ficou na tradução do primeiro e único álbum publicado em Portugal, pela Meribérica, que teremos um dia de ir buscar à velha estante. Para já, a notícia de que a Dupuis se prepara para lançar “a integral”, com os seis primeiros álbuns divididos por dois volumes. Edição Dupuis, Marcienelle, 2020.