Ruben A. Os Barbelas somos nós

Ruben A. Os Barbelas somos nós


O romance mais célebre de Ruben A. acaba de ser reeditado pela colecção Miniatura, da chancela Livros do Brasil. “Drama lírico das nossas deficiências” lhe chamou o autor. A Torre da Barbela é uma genial rosa dos tempos onde todos os encontros e todos os atropelos são possíveis.


Triangular, como se recusasse verticais semelhanças tumulares, fora da medida comum, encerrada nas suas incógnitas, tem tantos séculos quantos conta a nacionalidade portuguesa. São 32 metros a trepar rumo aos céus do Alto Minho (margem esquerda do rio Lima), 89 ofegantes degraus – “de deitar os bofes pela boca”, lastimam os turistas que se atrevem ao topo do monumento nacional. É a Torre da Barbela, o ápice da obra ficcional de Ruben A., capítulo por capítulo arquitectada. Torre de quê? Barbadela? É sabido que em Portugal o escritor conta apenas com um aliado, o leitor, mas é verdade que até este lhe pode faltar, deixando-o entregue a uma solidão que nem as comissões das festas centenárias conseguem disfarçar. Mal se extinguem cor e ruído, mal a ilusão pública se desfaz, o escritor fica duplamente enterrado.

Nunca a vida foi fácil para os escritores, e Ruben A., cujo centenário do nascimento este ano se assinala com celebrações que hão-de prolongar-se por 2021, fê-lo notar no seu estilo de efervescência controlada: “O escritor vive uma situação defeituosa, marreco, chagas, cotovelos coçados, guita no farnel. O público conhece o meu nome pela estranheza do A. e do Rúben, desconhece os livros, e muda o indicativo dos títulos. Torre de Barbela estica para Barbadela ou para Barrela, a autobiografia muda para memórias, assim segue e não soma”. Nisto, está o romance que Ruben A. deu ao prelo em 1964, depois de cinco anos de escrita e de várias tampas editoriais, muito e bem acompanhado. É ver, aliás, o que ainda sucede com o seu antepassado queirosiano, vezes a mais designado como A Ilustre Casa de Ramiro ou, em versão encolhida, Casa de Ramiro, onde também comparece uma torre simbólica e uma linhagem de fidalgos.

Há quem nunca falte. Todos os dias, ao cair do sol, depois de o caseiro debitar aos turistas que visitam a Torre a eterna cantilena sobre o nobre clã familiar, os falecidos Barbelas, “vestidos em séculos diferentes”, levantam-se das tumbas, meio zonzos pelos séculos da História, e convivem até de madrugada como se estivessem vivos: “Cá vou [diz um tal de Dom Payo], com os meus sessenta anos já feitos neste século de tão magras façanhas. Ainda há pouco chegaram as naus do Cabo Bojador […] Que pena eu não ter ido lá. Hoje é tudo só a querer ganhar dinheiro. Uns chulos. Nada de brios em galanterias de capa e espada. Um horror”.

A noite é tanta que a Barbela se confunde com o mundo português: conformado, engrenado na rotina baça e mediana dos dias atávicos, sempre a tocar as cordas sentimentais e a puxar pela ponta de um novelo de ressentimentos e de medos, a caminhar em círculos na sua própria paisagem interior, a ver crescer velhas forças obscuras contra as quais nada pode. Depois, é uma espécie de comichão do passado, ansiedades seculares sempre a formigar.

De madrugada, recolhem à tumba, aos esconderijos da morte, para regressar no entardecer seguinte. A vida manifesta-se num sentido de vazio ou de espera, que se traduz amiúde pelo termo “suspensão”: “ É uma vida suspensa desde o nascimento à morte”. Nunca os Barbelas se deixam arremessar para o futuro nem se atrevem a desafiar o viver habitualmente. A morte precede-os, acompanha-os, circunda-os.

O elenco da nobre família, agentes de um sentido a decifrar, é de longo curso: Dom Raymundo, poeta-guerreiro, autor de cutiladas memoráveis e de uma “poesia ainda em estado desbravativo e onde mais tarde os filólogos encontrariam tanto motivo para aborrecerem os tipógrafos e os alunos de liceu”; Dom Mendo e os primos Pero e Payo, homem do século XVI, trazem consigo a imagem severa das glórias de epopeia. Com a perucada Dona Mafalda vêm a luxúria e o requinte do século XVIII e os gloriosos dias de D. João V. Com ela, está o bobo, importado directamente de Nápoles (no currículo, um rol de maleitas portuguesas). Dona Brites, favorecida de peito, exibido “com o decote permitido pelos mais rigorosos códigos do Romantismo”, é a dama trágica; Dona Urraca é a beata do clã. Esta família-metáfora integra também o Menino Sancho, o mais novo dos Barbelas, personagem pueril que evoca essa figura perpétua do mítico imaginário nacional que é D. Sebastião, sempre vestido com “um fato à maruja”. Movimenta-se entre brinquedos e outros elementos de jogo que desarrumaram para sempre o espaço nacional. Depois, há as figuras de criação própria: uma bruxa, um abade, um santo, um cavaleiro medieval, um moderno burocrata que fala, fala, fala e ninguém ouve. Madeleine, a experimentada prima francesa do século XX, vem desassossegar a Barbela: todos a querem, todas a odeiam. Com o Cavaleiro protagoniza “um coito que atravessava os séculos”. Mortos seculares, percorre-os um sangue antigo e obsoleto donde mais nada pode pingar. A vida, para esta fidalguia, é sempre na primeira pessoa do singular, “eram todos de egoísmo atroz. Só queriam saber de si e contar as suas próprias historietas.”

Na Barbela, todos se tratam por primos. Importa menos esclarecer as relações que os ligam e mais juntá-los nas ramadas do tronco lusíada. São entes da mesma família, unidos pelos mesmos desarranjos, os mesmos desacertos, os mesmos erros. Cada um deles é a ponta que ata oito séculos de história nacional. Os Barbelas são uma espécie de rebanho tresmalhado que a Torre, casa comum, vem reunir. O cajado do narrador, de ponta recurva, desanca-os: “ […] não se importavam para nada com o que se passava à sua volta, copiavam o inútil, vegetavam nas glórias do passado e detestavam o presente como medida preventiva. Quando viajavam, ainda voltavam mais labregos do que à partida. Transformava-se num suplício caricato e boçal ver aquela massa informe a movimentar-se no terreiro da torre.”

Ruben A., numa admirável performance de registos, num cruzar de acrobacias estilísticas executadas com aquela liberdade de movimentos que era espelho do seu modo de estar na literatura e na vida, faz pensar nos alunos de outros tempos diante das figuras dos manuais escolares, que ganhavam embutidos e enfeites e perdiam dentes. Era um modo transgressor de desenfastiar das matérias mais pastosas. Numa espécie de gana de urgência, de euforia plástica, salienta o autor barbichas, distribui “bigodes conforme a época”, chapéus conforme a tineta: um chapéu de plumas para inadaptado Cavaleiro, outro de abas largas para o vetusto Dom Raymundo. A semelhança com a pose imóvel, meditabunda do Infante D. Henrique é notória e parece justificar o aparecimento do famoso adereço. Altera, com alto rendimento carnavalesco, a matéria-prima: “Ao entardecer, Dom Raymundo punha um chapéu de aba larga, de palha de verga, duro como o quê, e sentava-se nos degraus do alpendre a ver o movimento da Barbela no seu acordar. […] Sentado de lança sobraçada e de armadura a incomodar, parecia vagamente o que mais tarde se chamou n’ Os Lusíadas o «Velho do Restelo».”A Torre, figura tutelar da Barbela e seu eixo simbólico, também não fica sem cobertura: “dava a impressão de uma galinha choca a guardar debaixo das asas a ninhada viva que daí a pouco iria lançar ao mundo.”

E o que fazem os Barbela na sua insólita movimentação nocturna, perguntará o leitor, cedo chamado a esta genial bagunça? Bom, os Barbelas dão corpo (espectro?) à cultura nacional: entretêm-se com quermesses, intrigalhadas, fazem burricadas (símbolo da teimosia e do tempo lento, o burro é o agente de percursos de quem, no fundo, não sai do mesmo sítio) , giros locais para desadormecer os músculos, entornam jeropiga, metem o nariz no fumeiro da quinta dos primos da Beringela e arrotam grandezas e glórias brasonadas. Tudo pretérito, tudo outroras. E falam – “falam todos da véspera”, do que já foi feito, do já estabelecido –, como quem desenrola um pergaminho antigo. Conversa de entreter, lérias.

O itinerário mental do narrador segue um GPS trágico-cómico, imediatamente familiar ao português que tem por hábito pôr espelho não embaciado à cara. Estamos no terreno dos Dons por extenso, da ironia da importância, da cómica incongruência entre os mínimos pormenores que os Barbelas trazem dependurados e o significado colossal que estes podem assumir. No terreiro do fantástico catapultado para a realidade onde fincamos os pés.