Um dia Saramago escreveu que de Marvão se vê a Terra toda. Hoje os de lá têm medo do que veem. Maria de Jesus, 81 anos, por exemplo, não se atreve a sair da fortificação desde fevereiro, como se o inimigo de agora também pudesse ser travado como o de outrora, pelas muralhas. Tem receio da abertura das fronteiras e conta que nas últimas semanas quem vê espanhóis na vila dá o alerta aos vizinhos: “Eles andam aí”.
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Mais de 200 quilómetros a sul, em Barrancos – um posto de vigia avançado, encaixado no território espanhol –, José Nunes entende bem o receio: “Eu digo uma coisa… tenho 87 anos e coisa como esta nunca vi. Nem na guerra civil espanhola foi isto, e olhe que na altura houve muitos espanhóis que se agasalharam aqui, que vinham para aqui, mas não era isto”.
Está sentado numa cadeira de plástico à porta da sua casa, no alcatrão, porque não há passeio, mesmo em frente à Maria Casa de Chá, e não demora até desafiar para uma mini. Foi uma coisa que esteve várias semanas sem poder fazer. “O café, o vinho, a cerveja e o que é vicioso bebia-o em casa nestes dias. Não compreende?”, diz lançando uma pequena gargalhada e virando costas para ir buscar a sua máscara, que estava pendurada atrás da porta.
Apesar de ali o vírus ainda não ter batido à porta, como aliás acontece em outros municípios alentejanos, como Marvão, Mourão, Castelo de Vide e Nisa, José prepara-se já para ‘perder’ o filho: “Era o dono aí do café, esteve fechado dois meses e agora vai para França ver se ganha algum. Esteve lá em pequeno, porque eu vivi lá 16 anos, e desde que voltámos nunca mais foi para lá”. Esta perda traz à cabeça de José doenças de outros tempos, como a tuberculose, que roubou a primeira namorada ao pai e anos mais tarde voltou a assustar a família. “Sou do tempo da tuberculose, nem se podia beber pelo mesmo copo, havia famílias a morrer por falta de medicamentos. Ainda antes de conhecer a minha mãe, meu pai teve uma namorada que sabia que ia morrer e casou na mesma. Só depois casou com a minha mãe. Por acaso, a minha irmã também adoeceu e foi para o sanatório de Setúbal. Esteve lá quatro anos e salvou-se”.
José, que em outros tempos já fora contrabandista de café para Espanha, é reformado e vai-se safando com “o assunto de sucata”.
Manuel Monteiro, 36 anos, também. Mas para se safar hoje precisa de fazer 240 quilómetros por dia, apesar de estar a cinco minutos de carro da sua exploração. “Tenho animais em Espanha, antes de chegar a Encinasola, a 8 quilómetros daqui, mas como a fronteira mais próxima está bloqueada tenho de usar a de Ficalho/Rosal, ou seja, tenho de fazer 110 quilómetros para cada lado, três horas por dia”. Manuel é agricultor, está ligado a uma associação de agricultores do baixo Alentejo que, por sua vez, está associada a uma cooperativa espanhola que garante a comercialização do borrego. “Vendo para o mercado muçulmano, Espanha e norte da Europa”, diz, admitindo que “no borrego, no cabrito e no leite se sentiu uma quebra”: “No que toca a animais vivos, eles garantem o escoamento. E, entretanto, terminou o Ramadão e começou a haver procura de borrego para comercialização em países muçulmanos, Israel e Arábia Saudita”.
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