A farsa dos coveiros


Marcelo Rebelo de Sousa colocou o Palácio de Belém ao serviço do Governo, ou seja, deixámos de ter alguém que defenda a Constituição e seja o árbitro da governação.


“Depois da farsa dos coveiros, Hamlet chama-nos à realidade do pó humano”

William Shakespeare

 

Confesso que, depois de ter passado quatro anos como deputado na Assembleia da República, não fiquei com muito respeito pelo Parlamento. Todavia, nunca pensei, ao tempo, que chegaríamos ao ponto em que estamos. Porque, apesar de os novos partidos terem animado alguma coisa o debate político, a qualidade e a seriedade dos parlamentares, a começar pelo seu presidente, é ainda pior do que há 20 anos. Hoje são bastante mais os que fazem da Assembleia da República um emprego para, se possível, mais altos voos. 

Enquanto deputado, nunca tive ilusões de que iria representar os portugueses, o que pode ser confirmado por muito do que então escrevi. Quando o António Guterres me convidou para ser cabeça-de-lista por Leiria, já sabia que seria eleito, porque a minha eleição não dependia dos eleitores, mas do próprio António Guterres.

Conheci pessoalmente António Guterres num hotel da beira-mar a norte do Porto, onde foi organizado, algum tempo depois do 25 de Abril, um encontro de fim de semana para debater o futuro democrático de Portugal. Penso que o encontro terá sido organizado por João Cravinho e Valente de Oliveira, mas não estou certo. Certo é que entre as dezenas de participantes que ali estiveram, a maioria vieram a ser participantes dos futuros Governos do PS e do PSD. 

Quando cheguei à Assembleia da República tinha grandes ilusões acerca de António Guterres, nomeadamente devido ao grande movimento democrático que foram os Estados Gerais Para Uma Nova Maioria. Depois fui, pouco a pouco, perdendo as ilusões, na medida em que a realidade da governação não correspondia às minhas expetativas. Acabei a escrever ao primeiro-ministro sobre muitas das minhas preocupações, então tornadas públicas, mas aprendi que era tempo perdido: os partidos políticos portugueses e os seus dirigentes não tinham, não têm hoje, nenhuma vontade de mudar, nomeadamente abrindo o regime democrático ao voto popular, para que cada eleitor possa escolher o seu representante. Hoje, metade dos portugueses não se dão ao trabalho de votar. 

Foi também hoje, no dia em que escrevo, que o senhor Presidente da República e o senhor primeiro-ministro visitaram a Autoeuropa, onde parece terem feito declarações surpreendentes. Não que não soubéssemos que existe uma boa relação entre os dois e que o senhor Presidente já teria desistido das funções presidenciais para ser a muleta do Governo. Todavia, sempre mantiveram as aparências, como se compreende.

Mas, agora, o Presidente da República evocou uma relação de equipa que no presente e no futuro guiará a governação do país, isto é, diferentemente de todos os anteriores Presidentes da República, Marcelo Rebelo de Sousa colocou o Palácio de Belém ao serviço do Governo, ou seja, deixámos de ter alguém que defenda a Constituição e seja o árbitro da governação. Por sua vez, o primeiro-ministro retribuiu lançando a campanha de Marcelo Rebelo de Sousa para as próximas eleições presidenciais e afirmou, preto no branco, que essa candidatura será vencedora, comprometendo os socialistas do PS nessa decisão, sem sequer se dar ao trabalho de convocar a comissão nacional – a menos que a declaração tenha o mesmo valor da promessa feita recentemente a Catarina Martins na Assembleia da República.

Por sua vez, o Presidente da República retribuiu o favor e afirmou o impensável: que o primeiro-ministro fez bem em mentir à líder do Bloco de Esquerda, afirmando que não haveria cheque para o Novo Banco antes da famosa auditoria pedida um ano antes, cheque que já estava no Novo Banco, entregue no último dia do prazo legalmente estabelecido. Nesta farsa, recheada de meias verdades, o senhor Presidente da República retirou o tapete ao ministro das Finanças, que se limitou a cumprir a decisão do contrato assinado pelo primeiro-ministro com os compradores do banco e inscrita no Orçamento do Estado, aprovada em Conselho de Ministros e na Assembleia da República.

Em qualquer país com instituições medianamente democráticas, nada disto poderia acontecer sem uma enorme penalização na opinião pública. Não em Portugal. Aqui temos um primeiro-ministro compulsivamente mentiroso e um Presidente da República com uma longa história de malandrices, que ele acha divertidas e que são parte integrante do seu currículo. 

Já escrevi num outro jornal que o ministro das Finanças é o único adulto do Governo e repito-o agora. É o único que tem alguma consciência da penosa situação financeira do país, pelo que há anos anda a desagradar ao primeiro-ministro, desejoso de ser o Pai Natal dos portugueses, conseguindo no processo o apoio do Bloco de Esquerda e do PCP. A ideia é a detenção do poder e estar em condições de fornecer algumas mordomias do Estado à grande família socialista. É, como no metro, uma estratégia circular.

Pessoalmente, se estivesse no lugar do ministro das Finanças, ter-me-ia demitido na hora e mandava às urtigas a direção do Banco de Portugal. Seria, aliás, o que faria um qualquer homem livre que não deva nada a ninguém. Todavia, compreendo o sentido de responsabilidade de Mário Centeno, seja como presidente do Eurogrupo, seja quando estão a ser decididos os apoios europeus às finanças dos países em crise, sem o que Portugal ficará bastante pior do que já está. Se dependesse de mim, Mário Centeno seria primeiro-ministro e António Costa iria à vida. Como não tenho esse poder, a farsa continua.

E, a propósito de farsa, uma palavra sobre a intervenção de Rui Rio nesta enorme ausência coletiva de sentido de Estado. Ao acusar o ministro das Finanças de todas as maldades, sem olhar aos factos e à verdade objetiva, Rui Rio esqueceu as suas promessas de objetividade e de seriedade para defender o poder, isto é, o Presidente da República e o primeiro-ministro. Não é, infelizmente, a primeira vez que o faz, no que já escrevi ser o “erro de Rui Rio”. Tenho de reconhecer que, contrariamente às minhas expetativas, Rui Rio não aprendeu grande coisa desde que saiu da autarquia do Porto. Infelizmente para Portugal. 

 

Empresário

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade