A recente pandemia suscitada pelo novo coronavírus colocou a ciência no centro das notícias, da reflexão e da esperança. Discutem-se modelos e curvas epidemiológicas, estatísticas e previsões, tecnologia dos ventiladores, diagnósticos, novos tratamentos e fases de desenvolvimento de vacinas. Cientistas são chamados para entrevistas, artigos de opinião e debates. É na ciência e na tecnologia que confiamos para ultrapassar os desafios destes tempos.
Esta súbita visibilidade tem sido acompanhada por manifestações públicas do efeito de Dunning-Kruger [1], um viés cognitivo estudado no final do séc. xx que demonstrou como pessoas incompetentes ou com capacidade limitada para o desempenho de determinadas tarefas ou funções sobrestimam a sua capacidade para o desempenho dessas tarefas ou funções.
Os físicos profissionais estão familiarizados com o efeito de Dunning-Kruger. Com frequência recebem textos “científicos” que, com argumentos simplistas, álgebra rudimentar e alguns conhecimentos científicos elementares, resolvem os maiores mistérios da física, apresentam novas equações para descrever os mais diversos fenómenos ou apresentam novas descobertas que violam as mais fundamentais leis da física. Exemplos clássicos, bem conhecidos dos avaliadores de patentes, são as máquinas de movimento perpétuo que violam a primeira lei e a segunda lei da termodinâmica (conservação de energia e evolução da entropia) [2].
No caso de pandemias, as consequências destes devaneios são significativamente mais perigosas. A informação que está publicamente disponível é limitada e nem sempre devidamente estruturada. No entanto, quando combinada com conhecimentos elementares de estatística e de matemática, leva à construção de modelos, ao desenvolvimento de teorias rebuscadas e ao avançar de previsões sobre a evolução da pandemia, a sua importância comparada com outras infeções e até possíveis medidas de saúde pública.
O fenómeno é sociologicamente fascinante, um misto de voluntarismo com a necessidade de controlar e prever um fenómeno inesperado e desconhecido. Sendo desejável procurar conhecer e compreender melhor algo sobre o qual ainda se sabe pouco, o que torna este efeito particularmente perigoso são as manifestações públicas de superioridade ilusória de altos dirigentes políticos ou de académicos e cientistas não especialistas nos temas.
O combate a estas desinformações é crítico. Um artigo recente na New Yorker [3], citando o programa de treino dos melhores epidemiologistas dos Estados Unidos, explicita que “… a pandemic is a communications emergency as much as a medical crisis” e também reforça que o porta-voz oficial da comunicação tem de ser cientista e especialista, única forma de ultrapassar a desconfiança relativamente aos políticos.
Em Portugal, a reação da sociedade tem sido exemplar e a comunidade científica tem estado empenhada em contribuir ativamente com soluções para os diferentes desafios. No entanto, na ligação ao poder político, seria importante identificar e valorizar quem desempenha o papel de chief scientist, o nosso dr. Anthony Fauci, o cientista ou conjunto de cientistas que providencia e credibiliza as informações fornecidas ao poder político para as tomadas de decisão e que as comunica regularmente de forma clara, transparente e direta. Numa altura em que tentamos recuperar alguma normalidade, será de novo a ciência a ajudar-nos a compreender a nova realidade e a desenvolver as estratégias para ultrapassarmos os desafios que se avizinham. Nesta fase será ainda mais importante que as decisões, necessariamente complexas e envolvendo fontes muito distintas, sejam comunicadas de forma credível e baseadas em evidências e estudos científicos. Será ainda mais importante fazer valer o poder dos cientistas e a esperança e o conforto que a ciência e a tecnologia nos transmitem de que conseguiremos ultrapassar os desafios desta pandemia.
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Dunning–Kruger_effect
[2] Os curiosos podem consultar o repositório de preprints viXra.org, o simétrico de arXiv.org, para compreender o fenómeno
[3] https://www.newyorker.com/magazine/2020/05/04/seattles-leaders-let-scientists-take-the-lead-new-yorks-did-not
Professor catedrático do Departamento de Física
Presidente do Conselho Científico Instituto Superior Técnico
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