A pandemia e o problema da proximidade


Exigia-se à UE proximidade do sofrimento e do esforço de milhares de europeus para socorrer quem precisa de cuidados médicos, em vez de indiferença perante milhares de vidas perdidas e em risco de se perderem.


Somos gente de proximidades. Gostamos de estar próximos uns dos outros, de conviver, de estar onde estão os outros. Faz parte da nossa natureza como seres gregários, aditivados pelos impulsos do sul da Europa, do sol, da gastronomia e da vivência do espaço público.

A pandemia coartou-nos essa proximidade, impôs-nos um recato doméstico e uma distância social de 1,5, dois, três, quatro ou cinco metros, consoante a evolução dos estudos e das orientações sobre a disseminação do vírus pela emissão de gotículas humanas.

A pandemia suspendeu a proximidade e limitá-la-á num horizonte tão longínquo quanto o da disponibilização universal da vacina, pressuposto benevolente da imunização à covid-19. A proximidade estava inscrita no nosso ADN, mas vai ter de ser reconfigurada. Os temores e os défices de confiança que acabarão por se instalar no consciente e subconsciente de muitos cidadãos vão determinar a necessidade de encontrarmos novos modelos de relacionamento pessoal, cívico, político, comercial e institucional.

Alguém acredita ser possível repor, sem constrangimentos, grandes concentrações de pessoas, grandes mobilizações para fins específicos, ou continuarmos a propalar uma transição digital, com Web Summits e afins, sem assegurar a sustentação digital do acesso a bens e serviços essenciais?

O mundo mudou mesmo e vai continuar a ter de mudar. Asseguram-nos que sem austeridade, receita errada de outros tempos, mas vamos ter de reinventar muitos comportamentos individuais e comunitários para resgatar a confiança e salvaguardar uma resiliência que vai existindo por agora, uma vez mais, à conta do desenrasca e do esforço de última hora.

A emergência exige integração, rotinas e confiança. Lamentavelmente, começam a surgir expressões contrárias destes pressupostos que são lesivas do êxito no combate ao maior desafio de saúde pública de muitas gerações. Ninguém que esteja na linha da frente da resposta da saúde e da emergência merece que caprichos, incompetências ou ingenuidades coloquem em causa o esforço coletivo em curso.

Em qualquer organização, da escala regional à global, a proximidade é um elemento de ligação à realidade decisivo para a decisão, a monitorização e a concretização de objetivos. Mesmo havendo desvios de protagonismos mediáticos, não é sensato colocar em causa o acesso à informação dos autarcas que, para além de terem responsabilidades máximas de proteção e emergência civil, são facilitadores de soluções no terreno, junto das populações. Mesmo que quem mais protesta seja do partido que, no Governo, erradicou da realidade, não da Constituição, o governador civil como elemento de coordenação supramunicipal. A cada dia confirma-se o disparate, sob o ponto de vista da organização das respostas para as pessoas e para os territórios. Precisamos de confiança nos números, nos processos e na explicação dos acontecimentos. Se a realidade da circulação de informação tem a velocidade das redes digitais ou das sessões contínuas televisivas sobre o tema, não se pode estar à espera do briefing da DGS do dia seguinte.

A proximidade dos autarcas com as populações, nas expressões institucionais e de campanhas eleitorais, vai ter de ser repensada em função da pandemia, dos riscos de novas vagas e dos receios das pessoas de contactar com outros em território não controlado.

Depois da emergência da resposta médica, teremos de adotar medidas de reposição da confiança na proximidade, além de uma panóplia de respostas para apoiar que precisa, relançar a economia e construir soluções focadas no quotidiano e na emergência de riscos similares.

É proximidade que falta a alguns decisores, mas falta com certeza a quem tem responsabilidades atuais no projeto europeu. Não é possível, depois de tanto imobilismo, insensibilidade e falta de foco nos valores do projeto europeu, ter uma emergência pandémica com esta dimensão e, além de expressões intoleráveis perante tragédias humanas individuais e comunitárias, andarem dias após dias para chegar a vitórias de Pirro, sem rasgo, sentido de urgência ou compromisso com os valores humanitários. O preconceito exalado por alguns, a norte, está no limiar da tipificação dos crimes contra a humanidade; falta-lhe em dolo o que sobra em desprezo, sendo, no mínimo, negligência contra a humanidade europeia. É que enquanto os Wopke Hoekstras do euroburgo exercitavam as suas reservas, entre o Conselho Europeu de 26 de março e o Eurogrupo de 9 de abril morreram na Europa, na nossa Europa, mais 50 mil cidadãos vítimas da covid-19. E só lá para 23 de abril é que o Conselho Europeu volta a reunir-se para agilizar as medidas do Eurogrupo. Se não fosse trágico, pela perda de milhares de vidas humanas ao compasso da burocracia e da teimosia europeias, era a expressão suprema da degradação tecnocrática. Exigia-se proximidade do sofrimento e do esforço de milhares de europeus para socorrer quem precisa de cuidados médicos, em vez de indiferença perante milhares de vidas perdidas e em risco de se perderem.

A proximidade está posta em causa. Agora, é tempo de ficar em casa. Depois, será tempo de reinventar a proximidade, na certeza de que, mesmo com maior influência do digital, ninguém poderá ficar para trás, em quarentena perpétua, sem os afetos que nos caracterizam e as convergências que estão no nosso ADN de gentes do sul da Europa.

Sem proximidade física, não deixemos de manter a proximidade possível, sobretudo digital, telefónica ou visual, pelas janelas e varandas das casas. É preciso manter a proximidade, agora à distância. A proximidade distanciada. Alô, enter, vai começar a videochamada.

NOTAS FINAIS

SINAIS DE FUMO Não cheira a esturro, mas a confiança nas vacas que voam já não é o que era. É óbvio que BE e PCP não contam para nenhuma vaca magra, porque apenas estiveram para a ordenha das vacas gordas. É obvio que o quadro pós-pandémico terá dificuldades que nenhum BE ou PCP aceitarão, entre derivas ideológicas e preconceitos maniqueístas. “Não temos novos programas de austeridade e novas troikas”, António Costa, PM.

POMBO-CORREIO Com Trump, o mundo deixou de contar com os Estados Unidos, mas os próprios norte-americanos deixaram de contar com os Estados Unidos. É uma tragédia pegada.

 

Escreve à segunda-feira