João Neto. “Esta separação social vai ter de se manter”

João Neto. “Esta separação social vai ter de se manter”


Podemos ter as visitas virtuais, mas nada que se compare com o embate com as obras de arte, lembra o presidente da Apom, que acredita que o reencontro ainda vai demorar.


Nestes dias suspensos, é difícil pensar os impactos da pandemia no futuro. Os museus fazem parte desta equação feita de dúvida, e é sobre o futuro e os desafios destes guardiões da História e do património que falámos com João Neto, presidente da Apom – Associação Portuguesa de Museologia. Pelo caminho, o historiador da saúde, que é também diretor do Museu da Farmácia, lembra o que a História nos ensinou: em média, as pandemias duram dois anos. Mas, hoje, há novas armas para encurtar distâncias.

Como antevê o futuro dos museus após esta pandemia?

Julgo que há várias dimensões. Os museus enquanto instituição cultural, ligada ao conhecimento, não vão ser atacados. Os museus vão-se manter – e aqui abro um parênteses para aqueles museus que são totalmente privados, e aí pode acontecer que essas instituições, sem terem uma boa almofada financeira, possam estar neste momento em situações muito complicadas. Claramente, é um daqueles setores que terá e que poderá pedir ajuda, porque claro que há muitos museus cujas coleções são importantes na nossa dimensão. O outro lado, talvez mais complicado, são os recursos humanos. Já temos recursos humanos escassos e há parte desses recursos humanos que são, vá lá, a tropa de elite da cultura: os funcionários que têm contratos. O que me preocupa é, claramente, todo aquele conjunto muito vasto de pessoas que estão a recibos verdes. Muitos deles são monitores ou estagiários e, além disso, há uma outra camada feita de todas aquelas empresas que são constituídas por pessoas da área da arte, do património, da História, que tinham uma vida equilibrada exatamente por fazerem visitas comentadas aos museus através das suas empresas. Claramente que, neste momento, essas pessoas e as suas famílias estão numa situação que me preocupa bastante. Como sabemos, este é um setor às vezes um pouco esquecido e a nossa sustentabilidade económica provém muitas vezes destes eventos, da compra dos bilhetes, das compras nas lojas. 

Temos visto muitos museus a abrir visitas virtuais, um caminho que já tinha começado a ser percorrido. E até começámos a ver exposições a abrir em streaming. Pensa que irá ser uma tendência no futuro? 

Pode ser uma boa arma de aproximação. Se há algum lado positivo no meio desta grande causa emocional e de vidas, que não podemos esquecer, é talvez essa aproximação que os museus estão a ter usando estas plataformas. Estando as pessoas confinadas em casa, pode ser que isto seja uma forma de cativar essas pessoas a conhecer os museus. Mas não podemos esquecer-nos de que os museus vivem da sociabilidade, e vivem da sociabilidade presencial. É muito bom vermos o filme, o vídeo, o que seja nas redes sociais ou na televisão, mas nada se compara com o embate que é a pessoa chegar a uma obra de arte e respirar fundo. Isso faz parte do género humano. Agora, sabermos utilizar esta situação como uma outra forma de criar algum elo para que as pessoas vão depois ver estas exposições e ver os museus ao vivo, acho que também é importante. E pode ser que as pessoas até fiquem com mais à-vontade, com mais alguma sensibilidade e curiosidade e, quando isto passar, possam querer ir aos museus para perceber: “Deixa cá ver o que é que eles tem mais”. Mas os museus vivem da vida presencial das pessoas dentro deles. Não estou a falar da sociabilização do croquete, mas sociabilização de viver e sentir o que é património cultural, o que são as peças.

As medidas que têm vindo a ser anunciadas, que também, dado o estado precoce da pandemia, ainda são muito poucas, vão ser suficientes para fazer face ao que se vai viver nos próximos meses?

As incertezas são muitas. Enquanto historiador da área da saúde, penso que não podemos esquecer-nos de que, quando estas doenças que vêm por vírus chegam ao ponto de pandemia, infelizmente, tal tem uma duração de dois anos. Também temos de ter esperança que, hoje, a inteligência artificial possa dar uma resposta mais rápida, e ainda temos os cientistas de todo o mundo vocacionados para a descoberta de um medicamento para tratar a doença ou de uma vacina que acabe com ela. Isso dá-nos esperança, mas tal não vai acontecer em três meses. Portanto, o meu receio é o prolongamento desta situação. E estou preocupado com os trabalhadores dos museus, do teatro ou de outras áreas. O prolongar de uma situação destas pode ser catastrófico.

As medidas de segurança dos museus por estes dias são adequadas?

Perante situações como esta, e sobretudo com o menor número de pessoas, maiores são as trancas à casa.

Quais são as principais preocupações que os seus colegas de outros museus têm partilhado consigo? 

A preocupação transversal é um bocadinho aquela que já disse: todos nós temos andado com uma felicidade natural que era a de vermos os nossos museus com muitas pessoas, com esta nova descoberta do mundo. E também se estava a fazer uma nova descoberta do património português. Sendo Portugal um país que sempre foi ligado ao turismo, havia um aspeto interessante nos últimos tempos: os turistas que começaram a vir para Portugal, sobretudo os franceses, alemães e até alguns americanos, eram turistas que não ficavam pela cervejaria. Iam aos restaurantes, mas viviam dentro dos museus. E por isso é que os números dos visitantes dos museus estavam sempre a subir. A maior tristeza é a solidão, quando entramos dentro dos nossos museus e vemos realmente todo aquele vibrar da História sem ninguém. E eu e todos os colegas sentimos isso. Agora, a maior preocupação é pelas pessoas e pelas suas famílias, pelos funcionários, pelos investigadores e por todos os empregos-satélite que viviam exatamente do que é o museu e daquilo que o museu consegue transmitir.

Entre as últimas grandes pandemias, penso que só a gripe espanhola terá ocorrido numa altura em que os museus já se aproximavam do museu dos nossos dias. Sabe como essa pandemia os afetou na altura?

Foi tudo fechado. Enquanto historiador, estou preocupado efetivamente com o delay que houve, com o atraso em tomar medidas. O que nos disseram as outras pandemias? A primeira coisa a fazer quando se começa a perceber o contágio rapidíssimo, assombroso, e sobretudo com esta globalização, é tomar medidas. Percebeu-se logo que isto ia bater. Claro que na i Guerra Mundial aconteceu tudo ao mesmo tempo. Não podemos esquecer-nos de que a pandemia da gripe espanhola, da influenza, teve três tipos diferentes em dois anos, porque quanto maior for o número de corpos em que o vírus entra… Isto são fábricas para eles, eles conseguem mudar, e eles querem mudar, fazem o possível para mudar. Por isso é que se vão alimentando e mudando para continuarem vivos. Claro que naquela altura houve o final da guerra, as comemorações, portanto estava tudo a mexer-se para um lado e para o outro. Acabou. O que aconteceu foi fechar tudo, não havia outra hipótese. Agora houve outras questões, como a peste do Porto, que durou tanto tempo que os próprios comerciantes ficaram com a corda na garganta e depois quiseram abrir. O risco disto tudo, para todos nós, é se houver um abrandamento e as pessoas não perceberem que durante o abrandamento e mesmo próximo do final da pandemia tem de haver algum cuidado.

Com base na sua experiência de investigação como historiador da saúde, acha que é isso que vai acontecer nos próximos tempos?

O problema é que, quando se dá uma perspetiva de que já acabou, vêm os anos loucos. Por isso é que a influenza durou quase três anos, começou no final de 1917 e só acabou em 1920. As pessoas têm de perceber que terão de manter todos os cuidados de saúde. Esta separação social vai ter de se manter. Agora, claro que a pouco e pouco as coisas vão ser abertas, mas tem de ser com muito cuidado, senão apanhamos com outra a seguir.

Depois de tanto as estudar, alguma vez pensou viver uma pandemia deste género?

Sim, era mais do que uma história anunciada. Não estou a dizer que tenho aqui as cartas e que sou um sabichão, mas quando vemos que em 2002, em 2004 e, depois, em 2006 começam a aparecer todos estes vírus… E os laboratórios são sempre os mesmos: animais, sempre. Não quero ser igual ao Trump, mas vêm sempre de longe. Só que a gripe espanhola veio dos EUA, e é bom que aquele senhor não se esqueça de que a pandemia que gerou mais mortalidade da História começou nos EUA, no Kansas. Já se estava mais do que a ver que viria alguma coisa muito forte. Agora, as pessoas dizem assim: ‘Então mas a ciência não consegue estar um passo à frente disto?” Não, porque os vírus são como nós, eles mudam. Pode haver uma aproximação, mas nunca sabemos com que força vêm.

Mas com a evolução da ciência e da medicina podemos arranjar mecanismos muito mais rápido do que no passado.

Temos os antibióticos, temos os antivirais, temos a inteligência artificial e temos aquilo a que estou a chamar “liga dos campeões da ciência”: os grandes cientistas e grandes laboratórios que estão a fazer tudo por tudo. Isso dá-me esperança de que esta pandemia não dure os habituais dois anos, mas sim muito menos.

O Museu da Farmácia vai ter um espaço no futuro dedicado à covid-19?

Já tem. As coisas vão acontecendo e o Museu da Farmácia tem pedido certos elementos. Neste momento, já temos peças que marcam os momentos importantes da pandemia em Portugal. Por exemplo, a histórica declaração de emergência do senhor primeiro-ministro ou o primeiro cartoon do Vasco Gargalo sobre a epidemia. Sentimos a história presente, e o Museu da Farmácia é sobretudo um museu da ciência – e esta ciência que está a ser feita tem de ser marcada com peças.