Exercícios espirituais com língua


Agora que a proibição dirigida aos pestíferos reduziu os usos públicos da língua, cresce o desejo, a desobediência comicha, e o português revela-se.


A língua, perseguida, foge a esconder-se onde melhor a tratem. Escapa de casa sua e muitas vezes a encontro amancebada com estranhos, de quando em vez estrangeiros, com quem se enrola para se mostrar ainda mais bela no contraste de um silabar coxo, com as tónicas fora do sítio e as conjugações a forçarem, por via do erro, a igualdade de género. Mas o estrangeiro que se afeiçoa à língua que não era sua acaba por tratá-la com desvelo, dando-lhe mimos de atenção que por vezes escapam ao lusitano apressado.

Antes de o Bairro Alto se ter transformado numa Disneylândia para turistas adultos, havia por lá fartura de alfarrabistas e – pasme-se – de gente que os frequentava e lhes comprava os livros. Por entre os mercadores de palavras impressas, alguns tinham dado à costa em Lisboa como Ulisses, fugindo a pugnas várias, uns vencedores, outros vencidos, muitos fugidos. Um estrangeiro amante de livros começa por conhecer a língua portuguesa na versão escrita, como quem pretendesse conhecer o vocabulário íntimo dos cônjuges pela leitura de uma certidão de casamento. Já a descoberta da língua falada passa da surpresa ao gozo e culmina na partilha. Recordo um teutónico, cafralizado por muitos anos de Lisboa, que discorria por entre pilhas de livros no bairro ortogonal em sobe-e-desce: “Português, muito simpático. Fala doce, sem avisos a vermelho, quem ouve tem de conhecer a estrada. Quando português diz de alguém não desfazendo, pessoa já está feita em merda”. Este hermeneuta deliciava-se com as equações linguísticas portuguesas, enxameadas de sinais contraditórios, precedidas de negações que só reforçam o efeito que anunciam pretender, ardilosamente, afastar, absolutamente incompreensíveis para os que ousem fazer uma tradução literal, longe do espírito da língua e da alma lusa.

Uma outra variante, em modo breve, de uma equação linguística lusitana é todo um catecismo: “Não lhe quero bem nem mal”. Eis o eufemismo para o desfolhar lento de um manual dos inquisidores, numa dedicação atenta ao herege a quem foi lançada a frase.

O supracitado teutão aprendeu a alargar o conhecimento da língua portuguesa à circunstância falada, dando-lhe a marca do uso social adequado. “Português, muito simpático, mas precisa conhecer a fala. ‘Com licença!’ não é sempre uma coisa bonita, educada. ‘Com licença!’ é o grito de guerra dos portugueses, é o novo ‘Por Santiago, aos Mouros!’ No metropolitano, quando português diz ‘Com licença!’, depois sai armado de cotovelos e não escapa ninguém!”

A espiritualidade da língua irmana os falantes. “Temos de ser uns para os outros”, dito num misto de cumplicidade, brandura e modéstia, vai muito mais longe do que o imperativo categórico da filosofia moral kantiana. Na ultrapassagem tentada por George Bernard Shaw (“Não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. O gosto deles pode não ser o mesmo”) há uma intenção conservacionista, procurando não desperdiçar o bem com quem poderá não o apreciar (até porque, empoleirado no livre-arbítrio, o outro poderá – hélas! – ter uma diferente concepção do bem). Já o lusitano epílogo “temos de ser uns para os outros” é anunciado depois de uma acção exemplar em que o português, sempre crente mas ainda mais prudente, se substitui à divina providência e, discretamente, age, distribuindo justiça como se usava fazer no Tribunal da Relação de Lisboa.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Exercícios espirituais com língua


Agora que a proibição dirigida aos pestíferos reduziu os usos públicos da língua, cresce o desejo, a desobediência comicha, e o português revela-se.


A língua, perseguida, foge a esconder-se onde melhor a tratem. Escapa de casa sua e muitas vezes a encontro amancebada com estranhos, de quando em vez estrangeiros, com quem se enrola para se mostrar ainda mais bela no contraste de um silabar coxo, com as tónicas fora do sítio e as conjugações a forçarem, por via do erro, a igualdade de género. Mas o estrangeiro que se afeiçoa à língua que não era sua acaba por tratá-la com desvelo, dando-lhe mimos de atenção que por vezes escapam ao lusitano apressado.

Antes de o Bairro Alto se ter transformado numa Disneylândia para turistas adultos, havia por lá fartura de alfarrabistas e – pasme-se – de gente que os frequentava e lhes comprava os livros. Por entre os mercadores de palavras impressas, alguns tinham dado à costa em Lisboa como Ulisses, fugindo a pugnas várias, uns vencedores, outros vencidos, muitos fugidos. Um estrangeiro amante de livros começa por conhecer a língua portuguesa na versão escrita, como quem pretendesse conhecer o vocabulário íntimo dos cônjuges pela leitura de uma certidão de casamento. Já a descoberta da língua falada passa da surpresa ao gozo e culmina na partilha. Recordo um teutónico, cafralizado por muitos anos de Lisboa, que discorria por entre pilhas de livros no bairro ortogonal em sobe-e-desce: “Português, muito simpático. Fala doce, sem avisos a vermelho, quem ouve tem de conhecer a estrada. Quando português diz de alguém não desfazendo, pessoa já está feita em merda”. Este hermeneuta deliciava-se com as equações linguísticas portuguesas, enxameadas de sinais contraditórios, precedidas de negações que só reforçam o efeito que anunciam pretender, ardilosamente, afastar, absolutamente incompreensíveis para os que ousem fazer uma tradução literal, longe do espírito da língua e da alma lusa.

Uma outra variante, em modo breve, de uma equação linguística lusitana é todo um catecismo: “Não lhe quero bem nem mal”. Eis o eufemismo para o desfolhar lento de um manual dos inquisidores, numa dedicação atenta ao herege a quem foi lançada a frase.

O supracitado teutão aprendeu a alargar o conhecimento da língua portuguesa à circunstância falada, dando-lhe a marca do uso social adequado. “Português, muito simpático, mas precisa conhecer a fala. ‘Com licença!’ não é sempre uma coisa bonita, educada. ‘Com licença!’ é o grito de guerra dos portugueses, é o novo ‘Por Santiago, aos Mouros!’ No metropolitano, quando português diz ‘Com licença!’, depois sai armado de cotovelos e não escapa ninguém!”

A espiritualidade da língua irmana os falantes. “Temos de ser uns para os outros”, dito num misto de cumplicidade, brandura e modéstia, vai muito mais longe do que o imperativo categórico da filosofia moral kantiana. Na ultrapassagem tentada por George Bernard Shaw (“Não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. O gosto deles pode não ser o mesmo”) há uma intenção conservacionista, procurando não desperdiçar o bem com quem poderá não o apreciar (até porque, empoleirado no livre-arbítrio, o outro poderá – hélas! – ter uma diferente concepção do bem). Já o lusitano epílogo “temos de ser uns para os outros” é anunciado depois de uma acção exemplar em que o português, sempre crente mas ainda mais prudente, se substitui à divina providência e, discretamente, age, distribuindo justiça como se usava fazer no Tribunal da Relação de Lisboa.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990