Nós, os Jovens. Discurso aos vindouros

Nós, os Jovens. Discurso aos vindouros


No meio da tragédia que vemos ser representada por figuras de opereta, ainda temos de levar com a propaganda das boas almas. E nunca isto é mais evidentente do que quando ocorrem celebrações encomendadas. Como essa que, por ocasião dos 30 anos do jornal Público, viu um escritor envergar a sua juventude como um diploma ou bandeira e debitar em jeitode…


 

E talvez vós sejais um pouco parecidos connosco,

vós que eu vejo a vir, vós os novos filósofos

Nietzsche

 

Estão constantemente a dar-nos lições, estes velhos de todas as idades. Com os seus discursos carregados de sabedoria, a transbordar de saber, dizem-nos que a juventude é coisa de futuro, de esperança, de luta, que o amanhã é nosso, deles, desses jovens que eles sonham – mas que sonho tão pobre, tão curto, sem nenhum delírio, sem nenhum excesso –, desses jovens de quem falam como se falassem por eles.

Estamos já tão fartos desta lição, de todas estas lições, destes conselhos, de todas estas palavras que neles, nesses velhos de qualquer idade, sabem sempre a peça de antiquário, mesmo quando se querem novos, jovens, como nós. Não se fartam, eles? Não se fartam da esperança – mas nunca leram Kafka, esse jovem sem saída, esse riso que salta do inferno do século XX: “Há muita esperança – mas não para nós” –, não se fartam do futuro, não se fartam do progresso que, dizem-nos, nós teremos que transportar, que seria a nossa responsabilidade, nós que, segundo eles, estamos sempre do lado certo, do lado do futuro? Não se fartam de toda esta sabedoria prêt-à-porter com que estão constantemente a dar-nos lições?

Estamos já fartos, nós – mas quem é esse “nós”? Quantos são, quem são, como os contar, onde os encontrar, o que é dito neste “nós”, neste “nós” que começo por invocar, que chamo como fantasma, delírio ou promessa? Não diz nada, nunca disse, não existe. Não há “nós”, nunca houve, há apenas esses amigos espalhados pela terra, como dizia o filósofo Wittgenstein, cada um com a sua pobreza, o seu desespero, cada um com as suas guerras, as suas lutas, as suas derrotas – e são tantas que somos sempre derrotados. Acontece, por vezes, algum desses chamar pelos outros, convocá-los ou invocá-los, fazer ouvir a sua voz do outro lado da terra. Dá-se então uma breve troca de palavras, uma guerra partilhada, uma luta a dois ou a mais, um momento em que nos cruzamos para logo nos separarmos. Mas nunca mais do que isso, acima de tudo nunca um “nós” se forma – é sempre em bando que nós, os jovens, andamos. Estes nossos velhos lembram-nos sempre Nietzsche, aquela criança feroz, intempestiva em todos os momentos, aquela fúria de pensamento que será sempre novo – e nenhum dos nossos jovens velhos poderia alguma vez dar como título de um capítulo “Porque sou tão sábio” ou “porque escrevo tão bons livros”. São sempre demasiado sensatos, demasiado cautelosos, e mesmo nos seus vícios são moderados. Estão de tal forma cheios de sensatez, a transbordar de boa vontade, que até acontece serem críticos do seu tempo; preocupados, interessados com o mundo, gostariam de mudar uma ou outra coisa, mais igualdade, mais felicidade para todos, certamente, objectivos sensatos de pessoas sensatas – mas nós nada sabemos de mudanças nem queremos mudar nada; bastar-nos-ia destruir umas quantas coisas, não muitas, certamente. É por isso que estes novos são já tão velhos, tão cansados, que Nietzsche os conhecia tão bem: são os “livre pensadores”, esses “plumitivos ágeis ao serviço do gosto democrático e das «ideias modernas», homens desprovidos de solidão que lhes seja própria, bravos rapazolas a quem não se pode denegar nem a coragem nem a boa conduta”.

Conhecem eles o intolerável, esses novos velhos que nos dão lições? A sua infinita sabedoria está constantemente a dizer-nos: isto, o mundo, está melhor, há menos pobres, mais democracia, mais riqueza, o mundo está mais pequeno, há mais informação, cada vez se viaja mais, cada vez há mais livros, cada vez se lê mais, cada vez há mais pessoas nos museus. Velha sabedoria – já com uns séculos, na realidade –, astúcia de professor público. Mas estes novos velhos não sabem, nem podem saber, que o intolerável não é uma questão de factos, não é uma questão de economia, de sensatez (“vejam como, apesar de tudo, o mundo está melhor.” Mas o problema, para nós, será sempre esse “apesar de tudo”, essa economia da miséria que nos impõem, esse cálculo a que nos querem obrigar); o intolerável é uma questão de percepção. O velho Deleuze, filósofo francês infinitamente novo, dizia, relativamente a Maio de 68, que nada tinha mudado, que as condições permaneciam as mesmas, mas que, a determinada altura, a sociedade viu o que havia nela de intolerável. Mudança de percepção, apenas: o que antes era normal já não se podia agora tolerar – e terminava com esta velha lição, com este grito filosófico: “o possível, senão sufoco”. E os nossos novos velhos, conseguirão eles gritar? Ou até nisso serão moderados, sensatos, a transbordar de sabedoria? Greta Thunberg, por exemplo. Ela grita porque conhece o intolerável, porque o viu. É uma jovem como nós, toda ela acusação e afronta – e que interessa, a nós, os jovens, que ela não tenha razão, que tenha atrás de si interesses económicos? Fiquem com os vossos cálculos, que nunca nos interessaram. Não é, nunca foi, uma questão de urgência, nem de emergência, nem de medidas mais ou menos sensatas e razoáveis: o intolerável é um outro tempo que estes nossos velhos não conhecem, que a sua boa vontade não pode aceitar, é aquele travão de mão de que falava Walter Benjamin. Também não é uma questão de futuro – não queremos, nós, os jovens, o vosso futuro, nunca o quisemos, nunca tivemos futuro algum; aliás, é essa a grande acusação que vos fazemos: vocês só têm futuro, vivem a longo prazo, tiram um pouco do futuro para poder viver o presente, tiram um pouco do presente para salvaguardar o futuro e é toda esta economia, toda esta miséria de pensamento que para nós sempre foi intolerável; para nós sempre foi uma questão de agora, de presente, se conseguirem perceber. As nossas guerras, as nossas misérias, todas as nossas derrotas – e são tantas – só conhecem a louca decisão do presente, o louco momento da decisão, sem futuro algum.

Na última entrevista que dá, gravemente doente e a meses de morrer, Jacques Derrida afirma algo que, para os nossos novos velhos, é e será sempre: “eu nunca aprendi a viver”. Recusa de qualquer lição, vinda de um filósofo (não é isso que se espera dessa espécie, que nos ensine a viver?), vinda de quem, numa outra entrevista, dizia je ne suis pas de la familie – que é também uma acusação: eu não vos quero como iguais, não contem comigo como um de vós. Conseguirão eles perceber isso, essa última grande lição de nós, os jovens? Grandeza da recusa. Porque o grande problema deles é saberem demasiado: aprendem, ensinam, querem aprender, querem ensinar, têm sede de conhecimento, querem mudar o mundo, melhorá-lo – nós, pelo contrário, somos tão mais modestos, queremos sempre tão pouco: basta-nos destruir uma ou outra coisa, não mais do que isso. É por isso que nós, os jovens, lançamos contra eles, os nossos novos velhos, essa frase do sage: não, nós não aprendemos nem queremos aprender, nós não aprendemos a viver, nunca iremos aprender, não queremos as vossas lições, a vossa sabedoria, o vosso cansaço, a vossa sensatez, não queremos o vosso futuro, a vossa contabilidade, os vossos balanços, a vossa moral de registo civil.

Não ouvem já um lamento à distância? Dizem-nos então, os nossos novos velhos: todo esse teu discurso é uma velharia, cheira a mofo, tem 50, 100 anos, ou mais ainda. Nada há nele de novo, já o ouvimos de tantas formas e com tantas declinações tão mais interessantes que a tua. Fazes-te passar por um jovem, mas és tão ou mais antigo que nós e esse teu discurso meio inflamado, meio irónico, mais não é que uma peça de teatro já vista, já gasta. Não valeria a pena deixares-te disso, deixares de estar preso a essas coisas que ficaram lá atrás?

Aos nossos queridos novos velhos gostaríamos de responder, nós, os jovens, com o velho Nemésio: “a minha vida está velha/ mas eu sou novo até aos dentes”.